Opinião
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20 de setembro de 2019
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15:11

Relato e desabafo de um professor da rede municipal de educação (por Márcio Cabral)

Por
Sul 21
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Relato e desabafo de um professor da rede municipal de educação (por Márcio Cabral)
Relato e desabafo de um professor da rede municipal de educação (por Márcio Cabral)
Márcio Cabral (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Márcio Cabral (*)

A realidade das comunidades escolares na periferia de Porto Alegre tem sido, cada vez mais, marcada pela ausência de uma rede eficaz e pública de proteção social da infância e da juventude e, também, de um completo descaso com população mais pobre de nossa cidade, o que tem ocasionado situações de vulnerabilidade que acabam trazendo para o interior da escola situações que estão longe do pedagógico e mais próximas do cuidado com a população carente.

Muitas crianças não estão na escola para aprender, e sim para comer, e também para passarem o tempo necessário para liberar as famílias do cuidado e da proteção que estes lhes devem.

Eis aqui que preciso fazer um relato e um desabafo.

Após mais de 1 mês evadido, um dos meus alunos que enfrenta uma situação familiar bem complicada retornou para a escola. Observei que ele estava bem agressivo, talvez pela sua  revolta com a sua situação familiar e porque os colegas, sabedores dos problemas, ficaram o tempo todo caçoando com ele.

Não deu outra! Passou aquela manhã toda envolvido em conflitos com outros colegas ao ponto de se pegar aos tapas e palavrões com outra criança. A questão foi tão pesada que tive que pedir auxílio da direção da escola.

Fiquei muito transtornado com este fato porque sei que ambas as crianças vivem situações de vida agravadas por problemas que não são deles, mas sim deste mundo tão desigual que já aparta na infância as pessoas da promessa de uma vida digna.

Depois que ambos foram retirados da sala de aula, eu tentei seguir minha rotina levando a turma para o almoço no refeitório. Mas da cabeça não saía a dor e a convicção que a agressividade era a forma dele se defender da pobreza e da vulnerabilidade. Na minha escola são vários os relatos diários de situações cruéis com crianças, marcadas pela desigualdade e pelo descaso do Estado. As vezes eu penso que, para a imensa maioria dos meus alunos, eu sou a única ponta de acesso ao Estado, aos direitos sociais que lhe são devidos. E mesmo que eu me esforce muito como o faço, isto é muito pouco.

No caminho do refeitório encontrei uma colega da SIR, setor da escola que atende as crianças de inclusão. Eu meio sem dar muita atenção por estar com o problema da sala na cabeça a vi me pegar pelo braço e dizer:

– Hoje falei com a mãe do A. (O menino estava de mãos dadas comigo naquele momento). Ela elogiou muito o teu trabalho com o filho dela. Disse que tu és um excelente professor!

Neste momento eu não aguentei e de mãos dadas com as crianças na entrada do refeitório eu cai num choro copioso. Foi assim mesmo, como um desabafo eu chorei na frente de colegas e dos meus alunos. Senti orgulho  e me senti mais  convicto que fiz a escolha certa de ser professor da rede pública. Não quero perder nunca isto dentro de mim. Me emocionar com cada momento na escola.

(*) Professor do 1º ciclo da EMEF Saint Hilaire, pedagogo especialista em alfabetização, mestre em Geografia e presidente do Partido Comunista do Brasil

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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