Opinião
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7 de setembro de 2019
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18:51

Pontuações sobre o lembrar, o ensino e espirais (por Pedro Osorio)

Por
Sul 21
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Pontuações sobre o lembrar, o ensino e espirais (por Pedro Osorio)
Pontuações sobre o lembrar, o ensino e espirais (por Pedro Osorio)
Praça da Alfândega, Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Pedro Osorio (*)

I.

Foi lá pelo final de junho desse ano que ocorreram os dois eventos que foram gatilho dessa reflexão rápida sobre a importância do conhecimento sobre o passado. Desde então, tenho maquinado e digerido os dois eventos, sempre pensando em transformá-lo em texto público, mesmo sem ter muito costume ou talento para isso. Ainda assim, achei mais do que justo compartilhá-los na forma desse, uma vez que ambos os eventos ocorreram durante o exercício do trabalho, também, público.

Quem passa pela Praça da Alfândega, na frente do Santander Cultural (hoje Farol Santander), deve ter percebido – possivelmente não – que uma escultura de ferro brota do chão até a copa de uma árvore, que, em parte, a esconde. Na frente, um pequeno púlpito de concreto explica que aquilo é a “Torre do Petróleo”, dada de presente à Petrobras no aniversário de 10 anos pelo Grêmio estudantil do Julinho e pelo DA do Direito da UFRGS. Isso era 1963, e não tardaria um ano para mais um golpe mudar os rumos da história política, social, econômica e cultural brasileira. Instaurada a Ditadura Civil-Militar, a Torre serve de ponto para manifestações contra o regime, e durante as décadas seguinte, foi retirada e recolocada na Praça repetidas vezes pela administração municipal.

Exercendo minhas atividades de estagiário na Ação Educativa do Memorial do Rio Grande do Sul, passei por ali com a turma que eu estava atendendo, como é de praxe na mediação que fazemos na Praça. A turma era de adultos, imagino que universitários, uma vez que a atividade foi agendada pela UERGS, mas não haviam estudantes de História e a grande maioria não era da cidade. Comentava o vai-e-vem da Torre, quando uma das pessoas levanta a mão e pergunta sobre a disputa entre manter e retirar a tal da Torre do centro da cidade. Nesse momento percebi que eu mesmo tinha dedicado pouco tempo a refletir sobre essa questão. Afinal, que disputa era essa?

Na mesma semana, cumprindo as atribuições do estágio curricular em uma turma de 3º ano do Ensino Médio no Instituto Estadual Rio Branco, estava trabalhando com a turma uma aula um tanto complexa, tentando ligar doutrina positivista, Pós-Abolição e a reorganização urbana, focando Porto Alegre. Já havia trabalhado virada do Império ara República, falei por alto sobre positivismo, mas nessa aula relacionei a abolição institucional com a pós-abolição real, por assim dizer, tendo em vista que os ideais republicanos de outrora não são os mesmo de hoje. A saber, a república do século XIX não é o que se possa realmente chamar de pública nos moldes atuais.

Abolição sem reparação. Não bastasse, foi necessário ignorar e apagar os trezentos últimos anos da escravatura brasileira. E que modo melhor do que dizer, no próprio Hino Nacional, que “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”? Afinal, segue o Hino, “hoje o rubro lampejo da aurora acha irmão, não tiranos hostis”. Um passado escravocrata não condiz com a nova condição de República iluminada pela modernidade. Pergunto aos alunos: qual é, então, o sentido de querer esquecer toda essa memória da escravidão? Quem responde, depois de alguns segundos, é um dos alunos mais quietos que senta ao fundo: “Criar um novo passado”. Risadas altas da turma ecoam na sala. Parece inconcebível que o passado possa ser criado, por que, no fim das contas, o que passou, passou, não há como ser modificado.

Ou será possível modificar o passado? O que expliquei para essa turma, buscando reconhecer a razão que esse aluno possuía na tímida resposta, foi explicar como o passado, na realidade, é criado e reafirmado no presente. Por somente podermos acessar o passado através de narrativas – do professor, do mediador, do historiador, das fontes – é relativamente fácil criar novas narrativas para deixar para o presente e para o futuro a ideia do passado que queremos construir. Se aquele ou aquela que desejar criar a narrativa estiver em uma posição de poder político-institucional, tanto mais fácil será essa criação.

A disputa entre retirar e manter a Torre do Petróleo na Praça da Alfândega é a disputa entre o apagamento e o reconhecimento de uma parte das lutas contra a violência da Ditadura Civil-Militar em Porto Alegre. Esse lugar de memória nos permite contar e materializar nossa narrativa histórica, eminentemente voltada para a educação do público e reflexão crítica sobre a cidade. Retirar a Torre é impedir o acesso à essa memória. Manter é reconhecê-la. É a própria existência da Torre no espaço que permite que façamos as dinâmicas que fazemos. Muitos dos que passam conosco por ali, garantem que nunca havia percebido o monumento.

O “novo passado” que os republicanos queriam construir é o passado de uma nação que acabava de nascer. Em 1888 a escravidão legal foi abolida. Não há mais escravizados no presente. Mas não também não é possível criar uma República com escravizados no passado. E como, pela lógica positivista, eram os intelectuais que deveriam ditar o que é melhor para o povo – essa massa amorfa e alheia, em certo sentido, às disputas do alto escalão político à época – também se esforçaram para apagar da memória da Nação essa dura realidade, que não poderia ser benéfica para o desenvolvimento e felicidade geral da República.

Ora, tanto a Torre do Petróleo quanto o passado escravista foram retirados por planos da cúpula política. No segundo caso, existem cientistas das humanidades metidos no meio, mas não é essa a discussão desse texto. Por alguma coincidência, ou alguns podem acusar alinhamento cósmico, ambas as questões surgiram um dia após o outro. O questionamento sobre as disputas acerca do passado estão presente, e essa disputa é reconhecida pela população. Mais do que narrar duas passagens pessoais nos caminhos pelos trabalhos de educação, a ideia é dar voz aos que questionaram, porque estão fora do que poderíamos chamar de “público especializado”. Pelo contrário: são leigos. Mas mesmo leigos – e talvez por isso – foram capazes de perceber detalhes que, por vezes, nós mesmo, supostos detentores do conhecimento especializado, não nos damos conta. A pergunta – “qual é a disputa?” – e resposta – “a criação de um passado” – se complementam.

A História não é domínio exclusivo do historiador há muito anos – e talvez nunca tenha sido. E também não se trata disso. A educação em História é a busca pela crítica, pelo questionamento. A cidade pode gerar o questionamento. A aula pode gerar o questionamento. E, a partir do questionamento, vem a possibilidade de crítica. E a crítica, orientada, fundamentada e dialogada, gera o conhecimento. A população pode e deve questionar-se em perspectiva histórica, entender suas raízes e pertencimentos, e o educador ou educadora têm a possibilidade de auxiliar nessa orientação, fundamentação e diálogo a partir da sua expertise como “especialista”, sem nunca desconsiderar a experiência e percepção do outro, leigo. Acredito impossível, ou ao menos muito difícil, pertencer-se cidadão com plenitude sem entender sua posição – atravessada pelos seus marcadores sociais – nas diferentes narrativas e nos diferentes espaços que ocupa na sociedade.

Por fim, essa é uma reflexão pessoal que parte de alguém que não trabalha diretamente com os temas de memória e esquecimento, e tampouco domina a discussão especializada na área. Nesse sentido, recomendo os textos de Caroline Silveira Bauer, especialmente os não acadêmicos que têm sido publicados internet afora, assim como as atividades do Laboratório de Estudos sobre os Usos Político do Passado (LUPPA/UFRGS). Sobre História ensinada, papel do professor e docência, leituras atentas nos últimos escritos do lúcido Nilton Mullet Pereira, também os não acadêmicos. Ambos meus professores, sem desconsiderar a vasta produção acadêmica, acredito que urge mais, no momento em que nos encontramos, os trabalhos de ampla divulgação.

II.

Enquanto a parte acima estava sendo escrita, outra mediação aconteceu, dessa vez no Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. Parados na frente da Igreja Nossa Senhora das Dores, bem lembrou o professor da turma que a História não se repete, mas retorna em forma de espiral, para o bem e para o mal: ainda que determinados eventos pareçam voltar de tempos em tempos, nunca serão iguais, e apresentarão diferenças, ainda que as mais sutis. Falávamos, nesse momento, sobre a história do negro Jósimo, que amaldiçoou a construção da Igreja, por ser injustamente condenado por roubo e, logo depois, sobre o pelourinho de Porto Alegre, onde se açoitavam escravizados que ousassem resistir ao sistema escravagista – e não foram poucos.

Falávamos do pelourinho um dia depois de uma criança ser torturada na base do chicote por furtar um chocolate em um supermercado de São Paulo. Em tal humilhação e desrespeito à vida humana, infelizmente, não surpreende o fato de o menino ser negro e morador da comunidade, e a não-surpresa, além do próprio ato, causa maior indignação.

Se a História retornou em espiral, esquecemos do último ponto de partida, algumas voltas antes de nós. É preciso lembrar, ainda que nos cause angústia, que poucos mais de 150 anos atrás essa mesma prática de tortura era comum, permitida e reproduzida pelo próprio Estado, e feita em praça pública com caráter educativo: eis a função do pelourinho. Ensinar que o lugar da pessoa negra escravizada era sob o mando do branco, e se recusasse, sofreria consequências. Como os seguranças do supermercado gravaram o crime, eles queriam que o vídeo fosse visto. Queriam mostrar a própria barbárie e assumir a posição de justiceiros, defensores da moral contra o crime do menino pobre, sem família, sem estudo, sem perspectivas. A entrevista do delegado responsável para o Estadão é esclarecedora [1].

Se a História retornou em espiral, me é realmente difícil apontar onde estão as diferenças. Isso porque a lógica de funcionamento da sociedade que o período escravagista nos deixou é muito forte e, apesar da palavra da lei constitucional de 1988, o que é velado é mais difícil de controlar. São nesses episódios extremos que paramos para pensar em outros, menos extremos, mas tão problemáticos quanto. Um segurança seguindo um jovem negro num shopping, remete às leis de vadiagem do século XIX. A dificuldade de se acessar o centro da cidade, quando vindo da periferia, faz jus à lógica higienista do início do século XX – que, em Porto Alegre, o prefeito faz questão de manter viva quando “reduz” a passagem de R$4,30 para R$4,70. A exclusão social dessa parcela importante da sociedade é um reflexo claro do racismo que estrutura a nossa própria vida na sociedade, há, pelo menos, 300 anos. Não digo nenhuma novidade para os inteirados do assunto, mas, enquanto essa for a lei velada regente paralela aos direitos constitucionais e altamente segregadora, nunca será demais denunciá-la.

Para encerrar com indicações novamente: a opinião da advogada Monique Rodrigues do Prado à Carta Capital [2] e o texto de Thiago Amparo para o site do Geledés [3]. Ambos tocam em pontos cruciais, que só podem ser escritos a partir de sua trajetória particular de vida, e tocam nesses pontos de maneira precisa e pungente.

Notas

[1] https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,e-uma-barbaridade-que-remonta-aos-idos-da-escravatura-diz-delegado-que-investiga-chibatadas,70002999476

[2] https://www.cartacapital.com.br/opiniao/racismo-estrutural-dos-troncos-aos-supermercados/

[3] https://www.geledes.org.br/essas-e-as-outras-6-800-chicotadas/

(*) Graduando em História na UFRGS e estagiário da Ação Educativa do Memorial do Rio Grande do Sul.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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