Opinião
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9 de setembro de 2019
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13:46

O silêncio dos arquitetos (por Anisio Pires)

Por
Sul 21
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Venezuela constroi 3 milhões de moradias, confortáveis e de qualidade. Para 2025 está previsto chegar a 5 milhões.

Anisio Pires (*)

O presente artigo foi publicado originalmente em castelhano. Dada a pertinência das questões abordadas neste mundo interconectado, julgamos válido atualizá-lo para que o público de língua portuguesa pudesse participar destas reflexões onde os 100 anos da Bauhaus, os problemas mundiais da falta de moradia e as interpretações sobre o que acontece na Venezuela sejam debatidas.

Com espírito ucrônico, o Uruguai progressista e de esquerda, e muito além, festeja com entusiasmo os 100 anos da Bauhaus. Enquanto isso, a experiência viva e exitosa na Venezuela de construção de moradias ao povo parece não interessar. Não se sabe se negam as conquistas habitacionais por aderirem à midiática da Venezuela “ditadura” ou se a condenação política é consequência da condenação estética de que as casas pudessem parecer “populistas”.

Este ano alcançaremos na Venezuela a meta de um Uruguai. Chegaremos a 3 milhões de moradias, confortáveis e de qualidade. Para 2025 está previsto chegarmos a 5 milhões. Além disso, segundo o Ministro do Poder Popular Para a Moradia e Habitação, Ildemaro Villarroel, 72% dos beneficiados obtiveram o título de propriedade e 28% possui o título de benfeitoria.

O Manifesto da Bauhaus (Walter Gropius, 1919) diz: “Esse mundo de desenhistas e artistas deve, por fim, tornar a orientar-se para a construção. ” Parece que o demonizado projeto da Revolução Bolivariana da Venezuela tomou a sério essa ideia, logrando este milagre negado por crentes e não crentes. São “puras maquetas”, dizia um criminoso da direita venezuelana, hoje “refugiado” na Colômbia.

Quando o presidente Chávez lançou em 2011 a Gran Misión Vivienda Venezuela – GMVV (Grande Missão Moradia Venezuela), o fez a partir de uma premissa muito clara: “No capitalismo, o drama da moradia não tem solução”. A consequência foi, como disse o ex-ministro e arquiteto Farruco Sesto, “assumir como política de Estado a totalidade do déficit de moradia nacional. ” Pô-lo em prática foi o resultado da vontade revolucionária e da razão amorosa, como se diz na Venezuela. Chávez defendia o direito de todos à cidade, não aceitava que se continuasse “escanteando o povo”. Deu claras instruções para que se construíssem sobre o tecido urbano tantas moradias quanto possíveis, ocupando terrenos abandonados ou subutilizados. Isso expôs velhos problemas e revelou outros novos, aproveitados por críticos sem alma querendo que as pessoas seguissem esperando pelos planificadores. Como disse Abner Colmenares, ex-decano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Central da Venezuela (UCV), “… não se pode esperar ter primeiro os serviços e o transporte para depois fazer as moradias. Não entender essa situação evidencia uma insensibilidade social abismal frente ao drama dos compatriotas que vivem em condições desumanas. ”

A Bauhaus compreendeu a importância da industrialização para baratear o custo da moradia social, experimentando o domínio e aproveitamento dos novos materiais, mas sempre com aquela preocupação artística pela qualidade e a diversidade das edificações. Se a Gran Misión Vivienda Venezuela estará logrando ou não a “Unidade na Multiplicidade” que defendia Gropius, é algo para os experts. O que resultará indiscutível, percorrendo o país ou visualizando as redes sociais, é a qualidade e a multiplicidade de tamanhos, formas e cores das moradias construídas. Restaria ver se isso responde a um projeto preestabelecido ou se é o resultado da multiplicidade de atores. São empresas venezuelanas, chinesas, iranianas, russas, bielorrusas, turcas e por suposto, a autoconstrução devidamente assessorada, a expressão mais direta do que é “orientar-se para a construção.”

A medida que a Grande Misión Vivienda Venezuela – GMVV foi se desenvolvendo, foram se incorporando outras variáveis, tomando a ideia de Chávez do “ponto e círculo”, isto é, que para cada ação do Estado em matéria urbanística deveria gerar outras que reordenassem as áreas adjacentes, incorporando além disso, os espaços sócio-produtivos. Em certa medida, a Misión Barrio Nuevo, Barrio Tricolor – MBNBT (Missão Bairro Novo, Bairro Tricolor) criada por Chávez em 2009 vinha atendendo essa questão com o objetivo de transformar todo o sistema de vida, o habitat e as moradias das comunidades venezuelanas. Porém, chegando ao ano 2013 se percebeu que ainda seguia pendente uma renovação profunda do habitat dos bairros e urbanizações populares que representam mais de 60% do território de nossas cidades. Foi quando o presidente Nicolás Maduro decidiu elevar a MBNBT à categoria de Gran Misión como forma de atender um maior número de famílias. Contabilizando unicamente o aspeto construtivo, dado que não se limita a isso, essa Gran Misión (GMBNBT) tem reabilitado, de 2009 a 2019, mais de 1 milhão 230 mil casas que se somam às quase três milhões já construídas. É fácil dizer.

Essas e outras respostas sociais, silenciadas pela mídia, ocorrem na Venezuela apesar do ataque constante que vimos sofrendo por parte dos EUA. Como se não bastasse, neste 5 de agosto enfrentamos uma nova escalada de Donald Trump com a assinatura da ordem executiva que busca o bloqueio total de nossa economia. Isso se soma às reiteradas ameaças de intervenção militar e à campanha mundial total contra a Venezuela. Buscam nos render por asfixia com a mesma ordem aplicada no Chile contra Allende: “fazer chiar a economia”.

O tremendo esforço de justiça social concreta que a Venezuela desenvolve no plano da moradia deveria ser objeto de debates apaixonados entre estudantes, urbanistas, arquitetos, engenheiros e construtores progressistas e de esquerda. Supõe-se que em algum momento de sua carreira e de seu trabalho refletiram sobre o papel social de sua profissão num continente tão injusto e desigual como o nosso. No entanto, só se escuta o incompreensível silêncio dessa parte de nossos irmãos da Pátria Grande.

Como formação e sensibilização para as velhas e novas gerações, a experiência da Bauhaus é inegavelmente importante. No entanto, desde uma perspectiva contemporânea de compromisso, é bom lembrar que essa escola de criação não fechou suas portas porque quis. Tampouco foi porque uma empresa melhor e mais competitiva a tenha derrotado no mercado do desenho. Foi perseguida e fechada pelos nazistas e alguns de seus membros morreram nos campos de concentração.

Memorial da revolução em homenagem a Rosa Luxemburgo, Karl Liebnecht e outros. Desenhado por Mies van der Rohe, segundo diretor da Bauhaus, e construído em 1926 no cemitério de Fiedrichsfelde de Berlin. Destruído pelos nazistas em 1935.

Existe algo mais parecido com aqueles nazistas que o racista, supremacista e guerreirista Donald Trump? Um personagem tão grotesco, amigo de governos como o da Arábia Saudita, Israel e o Brasil de Bolsonaro, que se assanha contra o governo venezuelano, acusando-o de “ditadura” e de “violador dos Direitos Humanos”, deveria, pelo menos, gerar uma dúvida razoável entre pessoas que, por força de sua formação, necessitam ser críticas e racionais. Em castelhano, as expressões “Pós verdade” e “mentira emotiva” são sinônimas. Teriam essas pessoas se deixado emocionar contra a Venezuela?

A cegueira com relação à terra de Bolívar também não se explica por uma questão de idade. O argentino Atilio Borón, que já fora acusado no passado de encontrar-se numa “improdutividade de subjetividades”, é capaz de refletir aos seus 76 anos e dizer:

“Eu não posso entender que tem uma esquerda que se entretém falando de Maduro e não diz nenhuma palavra das crianças refugiadas que Donald Trump põe em gaiolas e separa da família. Gostaria de me encontrar com algum deles e dizer: «Isso não te comove? Não é um problema de Direitos Humanos, a esquerda não deve dizer nada de crianças enjaulados na fronteira norte-americana? Não deve dizer que matam, a cada dois dias, um líder indígena, negro, mulato ou suposto guerrilheiro na Colômbia, numa operação de limpeza étnica brutal? »”.

Atilio Borón opina de passagem sobre o Pepe Mujica que também catalogou a Venezuela de “ditadura”, somando-se ao coro progressista uruguaio que inclui, entre outros, a Mario Vergara, Danilo Astori e a Daniel Martínez, candidato a presidência da república. O álibi de todos foi o “Informe Canalha” (https://bit.ly/2U7U7T7) cheio de mentiras e tergiversações que a ex-presidenta Michel Bachelet, Alta Comissionada da ONU para os Direitos Humanos, apresentou contra a Venezuela. Esse informe, refutado pelo Governo Bolivariano, atreveu-se a emitir graves acusações em termos de Direitos Humanos a partir de testemunhos, dos quais, 82% foram obtidos de pessoas que não vivem na Venezuela. Mesmo assim o próximo presidente dos uruguaios, Daniel Martínez, o considerou “lapidar”. A esse respeito, comentou Borón:

“Bom, tem que ganhar as eleições e tem medo que o eleitorado de classe média do Uruguai lhe dê as costas (…) Os que dizem que a Venezuela é uma ditadura estão falando bobagens ou fazem um cálculo para ficar bem com os poderes dominantes. Por que a esquerda adere a essa campanha? Gostaria que essa esquerda confundida que tem em toda a América Latina deixe de repetir o discurso da direita. Eles pensam que sendo bonzinhos com a direita, vão deixá-los governar. É de uma inocência… está bem para uma criança de creche. Eles têm o poder firmemente em seus punhos, dominam o capital financeiro, os meios de comunicação e têm a justiça no bolso. É de uma ingenuidade terrível. ”

Que conste, que no recente Foro de São Paulo, ocorrido em Caracas de 25 a 28 de julho, as infaustas punhaladas progressistas contra a Venezuela já eram conhecidas. Mesmo assim, todos os delegados, sobre tudo os venezuelanos, sem vacilação, assumimos o compromisso de trabalhar pela vitória da Frente Ampla do Uruguai. Na resolução final se lê: “Apoiar a fórmula de Daniel Martínez para presidente e Graciela Villar para vice-presidenta do Uruguai, cujo triunfo vai garantir a continuidade das políticas em favor do povo uruguaio e das leis que beneficiam a setores historicamente deixados pra trás, como as trabalhadoras domésticas, os peões rurais e as pessoas trans. E a defesa da soberania e a democracia no Uruguai que vêm levando adiante os governos da Frente Ampla. ”

No Brasil, os silêncios, as dúvidas e análises de alguns democratas que disputavam e disputam com a direita a obsessão pela Venezuela, foram atropeladas pelo choque de realidade do bolsonarismo. Enquanto persistem nessa confusão que os mantem presos, no Foro de São Paulo de Caracas, nós, os acusados de “ditadura” aprovamos sem vacilações: “Exigir a liberdade imediata de Lula, vítima de um abusivo, ilegal e indignante exercício do poder judiciário contra ele. ”

Temos aprendido a lição da unidade. Sempre lembramos que durante a guerra de independência Bolívar lamentou que a alguns dos seus “faltou grandeza”. Os bolivarianos do século XXI, isto é, os chavistas, sabemos o que está em jogo e nos esforçamos por ser consequentes nessa América Latina que, como disse o ex-presidente Equatoriano Rafael Correa, “não vive uma época de mudanças, mas sim uma mudança de época”.

Os arquitetos progressistas e de esquerda não têm o monopólio do silêncio e da confusão nesta controvérsia. Mas devem assumir que, por agora, não têm questionado essa deslealdade de seus dirigentes com relação a Venezuela. Não é aconselhável se deixar levar por ideias não verificadas: “durante minha vida, tenho achado que as palavras e, particularmente, as teorias não colocadas a prova pela experiência, podem ser muito mais prejudiciais que os fatos”. (W. Gropius)

Por certo, que mediando entre ideias e realidade, tem uma máxima pedagógica da Bauhaus muito cultivada entre os acadêmicos, sobre tudo na modalidade de oficina: “aprender fazendo”.

Se conjugarmos o aprender fazendo com o conceito de “Obra de arte total”, também caro à Bauhaus, se pode estender a modalidade de oficina ao funcionamento de uma sociedade que se quer transformar.

Aqui cabe recordar a autocrítica de Fidel Castro quando disse: “entre os muitos erros que temos cometido todos, o mais importante erro foi crer que alguém sabia de socialismo, ou que alguém sabia como se constrói o socialismo…”

Na Venezuela bolivariana estamos fazendo nosso socialismo e aprendendo. Cometemos erros, mas também semeamos muitos acertos. Cultivando virtudes, temos procurado enriquecer nossas práticas com uma pluralidade de pensamentos, enfatizando as ideias e tradições de luta de nosso continente e de nosso país. Milhões de venezuelanos conhecem e repetem a divisa de que “Nosso Norte é o sul”. Acreditam que é uma frase de Chávez. Um mal-entendido que não ofenderá a nossos irmãos do Uruguai, pois reconhecerão que o Comandante foi seu mais claro e entusiasta promotor. A frase pertence na verdade ao Maestro uruguaio Joaquín Torres García e está ilustrada na sua obra “América invertida”. Mas Torres García disse muito mais: “Tenho dito Escola do Sul, porque na realidade, nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, senão por oposição a nosso Sul. Por isso, agora pomos o mapa ao avesso e, então, já temos justa ideia de nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, desde agora, prolongando-se, assinala insistentemente o Sul, nosso norte.”

Construindo nosso socialismo do século XXI, de maneira soberana, segundo nossos códigos e tradições e “não como querem no resto do mundo”, também nos inspiramos no peruano José Carlos Mariátegui e no venezuelano Simón Rodríguez, mestre do Libertador. O primeiro nos aconselhava a ser originais, “nem decalque nem cópia”. O segundo, vendo nos independentistas um imitar de ideias e instituições que queriam deixar para trás, nos alertava, “ou inventamos ou erramos”. Por tanto, na oficina Venezuela sabemos o que é aprender fazendo, embora não nas calmas condições da academia, senão nas mais difíceis, e as vezes dolorosas, que enfrenta um povo atacado sistematicamente pela maior potência da história. Se fôssemos essa repetição fracassada e autoritária do passado com a qual nos querem associar, há um bocado de tempo teríamos sucumbido com todos os problemas que temos -e que seguiremos tendo- dada a vontade destrutiva do imperialismo.

Essa obra de horror total que enfrentamos, tem contado por sorte com a solidariedade internacional e com a compreensão sensível dos povos. A maior empatia e apoio tem vindo, compreensivelmente, dos homens e mulheres do mundo que não tem tido uma vida fácil. Suas duras vivências fazem que entendam melhor o que está acontecendo na Venezuela. Estamos aprendendo junto a eles e com nossa história a ser resilientes. Bolívar catalogava a si mesmo como “O homem das dificuldades”.

Por isso, como disse nosso Comandante Chávez, “aconteça o que acontecer, seguiremos tendo Pátria” e Venceremos!

Leais sempre, traidores nunca!

(*) Anisio Pires é venezuelano, Sociólogo (UFRGS/Brasil), professor da Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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