Opinião
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13 de setembro de 2019
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11:00

Bacurau: uma narrativa do fascismo social (por Roger Flores Ceccon)

Por
Sul 21
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Bacurau: uma narrativa do fascismo social (por Roger Flores Ceccon)
Bacurau: uma narrativa do fascismo social (por Roger Flores Ceccon)
Cena de Bacurau (Reprodução)

Roger Flores Ceccon (*)

Bacurau é um filme que invade e atordoa. Desacomoda. É um filme atual, embora se passe no futuro e remonte o passado brasileiro. É um filme sobre pobreza, violência, cidadania, ética, raça, exploração, miséria e opressão. Um filme sobre relações sociais, sobre afetos e potências. Mas é, antes de tudo, um filme sobre os efeitos devastadores do fascismo.

Um povoado sem riquezas, sem água e sem comida, moradores de uma terra improdutiva e infértil do sertão pernambucano, em meio à docilidade e à miséria, sem afrontar interesses, passa a ser exterminado pelas formas mais cruéis. Seus moradores são assassinados brutalmente, sem motivo algum. Mortos por constituírem um conjunto de vidas sem valor, vidas precárias, elimináveis, matáveis, pelo simples fato de existirem. Mortos por serem negros, pobres, retirantes, nordestinos.

No filme, vimos a narrativa de um povoado que passa a sofrer a total ausência de humanidade, mais do que até então sofria. Vão sendo mortos, um a um, com requintes de ódio e crueldade. Crimes fascistas, pois em sociedades fascistas não basta excluir, oprimir, violentar. O fascismo social precisa eliminar, caracterizar uma sub-humanidade. Não basta empobrecer, há de matar. A simples existência da vida outra não é suportada. No filme, a exclusão é radical, uma vez que os moradores de Bacurau não são considerados sequer candidatos à inclusão, vivendo em uma sociedade que separa os grupos por um apartheid social. Há uma sub-humanidade destinada ao sacrifício, condição que faz com que a humanidade composta pelos incluídos se afirme como universal e, portanto, se sintam no direito de excluir, violentar e assassinar.

A história de Bacurau remonta o conceito de fascismo social descrito pelo professor Boaventura de Souza Santos, que o trata como um regime de relações de poder desiguais, que concede à parte mais forte a prerrogativa de veto sobre a vida e decide o modo de existência dos mais fracos. O fascismo social não é um regime político, mas um sistema social e civilizacional. É um tipo de ordem produzida pela sociedade e não pelo Estado, sendo este apenas uma testemunha complacente, em um período em que os Estados democráticos coexistem com sociedades fascizantes. Assim, o fascismo social agudiza os processos de subordinação, diferenciação social e desproteção político-jurídica, determinada pelo absentismo do Estado e atuação predatória de agentes não estatais.

O fascismo social constitui um estado de exceção que opera usando a violência como mecanismo de controle, disciplinamento e submissão. Uma violência naturalizada e banalizada, obstaculizando seu enfrentamento. Mantém a linha abissal entre as pessoas que serão protegidas e cuidadas e aquelas cujas vidas são elimináveis, invisíveis e descartáveis.

Bacurau representa e simboliza uma sociedade desigual, violenta, classista, capitalista, homofóbica, sexista e usurpada pelo poder dos grupos mais abonados historicamente. Mas Bacurau resiste e sobrevive. Bacurau é o Brasil.

(*) Pós-doutorado em Saúde Coletiva.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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