Opinião
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20 de agosto de 2019
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18:30

A mudança no licenciamento ambiental ignora a legalidade e o cenário crítico do RS (por Paulo Brack)

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Sul 21
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A mudança no licenciamento ambiental ignora a legalidade e o cenário crítico do RS (por Paulo Brack)
A mudança no licenciamento ambiental ignora a legalidade e o cenário crítico do RS (por Paulo Brack)
Eduardo Leite apresentou proposta de nova legislação ambiental para lideranças políticas. (Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini)

Paulo Brack (*)

O governo de Eduardo Leite anunciou na manhã desta terça-feira (20), para lideranças políticas, a sua intenção em flexibilizar a legislação ambiental do Rio Grande do Sul, em evento no Palácio Piratini. Como de praxe, a área ambiental acabou sendo a “culpada” pelo atraso nos negócios. Por outro lado, a proposta foi uma incógnita, pelo menos até seu anúncio, pois não foram consultados os técnicos do quadro da Fepam e SEMA e também não foi consultado o próprio Conselho Estadual de Meio Ambiente, órgão superior da política ambiental do Estado. O CONSEMA sequer foi comunicado ou convidado para o ato do lançamento da nova política ambiental. O que se soube, via meios de comunicação, foi que o governo “prepara uma revisão completa do Código Estadual do Meio Ambiente, que inclui a proposta de implementação do Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), o chamado autolicenciamento ambiental”.

Cabe lembrar que para a construção do atual Código Estadual de Meio Ambiente (Lei Estadual 11.520/2000) ocorreram debates intensos, aprofundados e foi apresentada uma série de proposições representativas de vários setores da sociedade, ao longo de alguns anos, logo após a criação da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, em um período efervescente na área. Infelizmente, hoje a Secretaria está subjugada à Infraestrutura, inclusive no nome, incorporando uma guerra fiscal entre os Estados e uma pressa irracional que desconsidera que o debate ambiental é um processo que não deve ser atropelado. A situação ambiental piorou. A extinção de espécies, como um dos principais efeitos colaterais da economia dominante, é para sempre, e vem crescendo no Estado, no País e no mundo. Provavelmente, o governo do Estado, espelhado em distorções de outros Estados, acredita que a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal 6.938/1981), que define o papel de licenciamento restringido aos órgãos públicos governamentais, não vale mais.

O que desejamos dizer, também, e vamos apelar para Justiça se necessário, é que no atual cenário de bombardeio de retrocessos contra a legislação ambiental, também em nível federal, perdemos resiliência ou margem de sustentabilidade, apesar da economia convencional não enxergar. O quadro atual ambiental é pior do que há quase 20 anos.  Faltam monitoramentos da qualidade ambiental. Exemplo: a poluição do ar da Região Metropolitana de Porto Alegre conta com a rede de equipamentos que aferem a qualidade do ar na Região totalmente sucateada e sem funcionamento, apesar das denúncias das ONGs gaúchas. A qualidade do ar não é a mesma do início da década passada. Hoje, percebe-se espessa faixa acinzentada na atmosfera da região metropolitana, nas manhãs de inverno, quando ocorrem as chamadas inversões térmicas. Como agravante, cresceram as fontes de poluentes do ar (ampliação do Polo Petroquímico, REFAP, Celulose Riograndense quadruplicada, frota de automóveis multiplicada, etc.). E, ainda por cima, corremos o risco da implantação da maior mina de carvão a céu aberto do Brasil, o Projeto Mina Guaíba, equivalente a produção de todas as 12 minas da Região Carbonífera de Santa Catarina, e da possibilidade da implantação de um Polo Carboquímico associado à mina e desejado pelo governo.

Temos no RS os dois biomas mais degradados do Brasil, entre os seis brasileiros, neste caso Mata Atlântica e Pampa, com menores áreas de cobertura original, atualmente: 7,9% e 36% de áreas remanescentes. O RS é o único estado do Brasil que tem o bioma Pampa, com menor percentual de áreas protegidas (2,7%), mas o governo anterior e o de agora não se lembram de promovê-lo e tentam de todas as formas flexibilizar a proteção do mesmo, favorecendo ainda mais as monoculturas de soja e eucalipto sobre o bioma mais desprotegido do Brasil. Existe inclusive uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 5 de 2009, do senador Paulo Renato Paim, que incluiria o Pampa e outros dois biomas como Patrimônios Nacionais na Constituição, mas os governos e os demais parlamentares gaúchos nunca fizeram o menor esforço para a sua aprovação.

O Rio Grande do Sul é o estado da Região Sul que possui menor área de unidades de conservação entre os três estados (2,6% do território do Estado) enquanto as Metas da Biodiversidade 2020, da Convenção da Diversidade Biológica, assinada pelo Brasil, preveem que se atinjam pelo menos 17% da superfície todos os territórios terrestres protegidos por essas áreas. Temos 1084 espécies ameaçadas de flora e fauna (804 de plantas e 280 de animais), com número de espécies da flora ameaçada que cresceu 33% entre 2002 e 2014. E não dá para esquecer que, apesar disso, os governos e o parlamento gaúcho estão extinguindo a Fundação Zoobotânica, que coordena estas pesquisas legalmente e que mais gabarito técnico tem para este tema. O governo Sartori fragilizou o processo de elaboração da Lista da Fauna Ameaçada e, até agora, não se cumpriu o Decreto Estadual 52.109/2014 que previa a atualização da Lista da Flora Ameaçada ainda no ano de 2018.

Possuímos três dos dez rios mais poluídos do Brasil (Gravataí, Sinos e Caí) e faltam políticas para enfrentar este problema que interfere inclusive no abastecimento de água de cerca de quase 1/3 da população do Estado. Cada vez mais, como fenômeno novo, a água potável de Porto Alegre e região apresenta gosto ruim decorrente de desenvolvimento explosivo de cianobactérias que liberam toxinas hepatotóxicas e que crescem em águas com excesso de fósforo, nitrogênio e outros nutrientes decorrentes da poluição do Guaíba proveniente de esgotos não tratados ou pelos adubos da agricultura e outros poluentes na bacia.

Cabe lembrar também que muitos dos nossos rios já estão saturados de hidrelétricas. Há 4 anos tínhamos registrado, com base em registros na ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), a existência e 278 projetos futuros de hidrelétricas somente na bacia do rio Uruguai. E, claro, peixes como o dourado e o surubim estão desaparecendo, pois precisam da piracema para sua reprodução, sem falar nos pescadores que vêm perdendo fonte de renda e sustento. Entretanto, o governo do Estado tenta ampliar a liberação de outras centenas de hidrelétricas, em sua maioria PCHs, sem se ter o conhecimento da capacidade de suporte que possa aferir o limite necessário para evitar a extinção de espécies e das últimas matas ciliares por atividades como estas, que confrontam o inciso VII, do parágrafo 1º do Art. 225 da Constituição Federal.

No que se refere ao Zoneamento, a Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA) (Patrimônio da Unesco) e as Áreas Prioritárias para a Biodiversidade (Portaria n. 9/2007, do Ministério do Meio Ambiente) nunca foram incorporadas como políticas públicas pelos governos nos licenciamentos, com a necessária restrição de atividades de grande impacto e, por outro lado, a promoção de outras compatíveis e harmônicas. Da mesma forma, o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) do Estado, que se iniciou há mais de dois anos e que é fundamental para dar as diretrizes às atividades, não está finalizado e encontra-se “em manutenção” na página eletrônica da SEMA, sem a disponibilização de nenhum documento técnico ou diretrizes afetos ao assunto nas páginas oficiais do órgão.

O Rio Grande do Sul é um dos três Estados do Brasil que mais consomem agrotóxicos e com os maiores registros de mortes de muitos milhões de abelhas, 80% dessas mortes advindas de agrotóxicos usados na soja, inclusive com prejuízos ao mel exportado. Temos os maiores índices de câncer em hospitais na região noroeste do RS, em grande parte decorrentes de produtos utilizados no plantio de soja (que supera 5,5 milhões hectares no RS), com uso de agroquímicos muito tóxicos, como o caso do 2,4 D que vem interferindo negativamente na fruticultura, principalmente vitivinicultura, por sua deriva (espalhamento a grandes extensões). No que se refere aos extensos plantios de eucalipto, pinus e outras monoculturas arbóreas, defendidas pelo governo, é bom lembrar que desde 2009 não houve atualização e avaliação dos plantios prevista na Resolução Consema 227/2009, a fim de se aferir as áreas de plantios e as áreas já saturadas por unidades de paisagem como estabelecia o Zoneamento Ambiental da Silvicultura. Já temos mais de 800 ou 900 mil hectares com extensos plantios de eucalipto, pinus e acácia-negra, e proprietários cobram as promessas de ganhos com a silvicultura, situação que não ocorreu. Por outro lado, os técnicos da Sema e do Ibama vêm verificando, mesmo assim, um aumento de conversão de remanescentes de Pampa e Mata Atlântica em monoculturas arbóreas, mesmo em pequenas áreas, mas esta fiscalização está desestruturada e enfraquecida.

Poderíamos destacar também outros graves problemas ambientais que não eram tão dramáticos como agora. Um deles, as mudanças climáticas, consideradas a maior ameaça à humanidade, segundo o Secretário Geral da ONU, António Guterres. Alguém sabe o que os governos estadual e federal vêm fazendo para dirimir este problema? Outro problema é a expansão descontrolável das espécies exóticas invasoras, a segunda causa da perda da biodiversidade, como no caso do mexilhão-dourado, do pinus e do capim-braquiária, por exemplo. Eucalipto e pinus são espécies invasoras, mas estão sendo promovidas por flexibilização legal e por outras políticas públicas.

O imediatismo dos negócios (insustentáveis) de sempre e a conjuntura de enfraquecimento dos órgãos ambientais, coroados pela guerra fiscal entre os Estados, são o caldo de cultura para setores governamentais e empresariais promoverem o laissez faire econômico de retomada das tentativas de derrubada das conquistas históricas na legislação ambiental no território gaúcho.

Somos ainda reféns de uma economia convencional imediatista, via empreendimentos em geral insustentáveis (monoculturas de soja, eucalipto, pinus, carvão mineral, fumicultura, setor automotivo de veículos particulares com obsolescência planejada, megaempreendimentos de centros comerciais de consumo, entre outros) e a infraestrutura governamental, com raras exceções, vem realimentando o círculo vicioso.

Em resumo, qualquer flexibilização, se fosse justificável, deveria ter como base a atual qualidade ambiental que assim o permitisse. Mas tudo indica que não temos mais a “margem de gordura” que poderia existir há quase 20 anos, quando do lançamento do Código Estadual de Meio Ambiente, e a economia hegemônica é insustentável. Portanto, sem se incorporar os diagnósticos atualizados e o conhecimento dos limites mais estreitos do contexto presente, os riscos são crescentes, sinérgicos e cada vez mais de grande magnitude.

Infelizmente, estamos longe de enxergar as vocações regionais (pecuária familiar e produção de gado em pastagens naturais bem manejadas, produção de erva-mate e derivados, indústria de produção de equipamentos paras usinas eólicas e placas solares, indústria de produção de veículos de transporte coletivo sem óleo diesel, produção de bicicletas e pequenos veículos de menor pegada ecológica, fruticultura com plantas nativas, turismo rural, comunitário e ecológico, tecnologias sociais, entre outras). Frente à visão convencional, o potencial da biodiversidade como elemento estratégico para o desenvolvimento (local, comunitário e vocacional) acaba indo para o ralo.

Assim, qualquer projeto de autolicenciamento, gestado sem a participação da expertise dos técnicos da FEPAM, da FZB e da SEMA, do CONSEMA, das universidades, dos centros de pesquisa e da sociedade organizada, carece de legitimidade. E se visar a simples aceleração das licenças, sem o “diagnóstico do paciente” (a qualidade ambiental do RS) e sem visão de futuro sustentável, correremos um alto risco, potencialmente catastrófico para o pouco que resta dos ecossistemas que dão suporte a uma economia que, ademais, deveria ser sustentável, mas está longe disso.

(*) Professor do Departamento de Botânica, do Instituto de Biociências da UFRGS, coordenador geral do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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