Opinião
|
15 de agosto de 2019
|
18:05

A MP 881, o trabalho aos domingos e o cristianismo. Bolsonaro é pior que os reis medievais (por Ramiro Castro)

Por
Sul 21
[email protected]
Foto: Marcos Corrêa/PR

Ramiro Castro (*)

Vendida como “moderna”, como “liberdade econômica” pelos “cristãos neoliberais” do governo Bolsonaro, na prática o que vemos é uma Lei que é inconstitucional, pois vai de encontro ao exposto na Constituição no artigo 7º, XV- Repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos ( Aliás, ah! como eles odeiam o artigo 7º, não?). Na prática estamos voltando aos tempos de Washington Luís, quando, mal afamado, foi atribuído que teria dito “a questão social é caso de polícia.”

Mas o texto de hoje remonta à tempos muito mais longínquos, e demonstra a hipocrisia de quem se denomina cristão mas escolhe obedecer apenas os ensinamentos que lhes são convenientes e realizar uma exegese torta que não procura uma interpretação sistemática dos valores ali expressos, mas sim uma leitura isolada e literal de versículos escritos há milhares de anos.

Não é incomum falarmos que estamos retomando à períodos anteriores ao iluminismo, ou mesmo ao medievo. Como figura de linguagem e expressão, aponta mesmo para tempos sombrios. Mas a realidade é que a MP 881 consegue superar a era medieval em termos de crueldade com o trabalhador.

No nosso retorno ao pré-capitalismo com a retirada de direitos básicos do trabalhador e do cidadão, podemos dizer que sim, Ricardo Coração de Leão era mais pró- trabalhador que Bolsonaro. E com que propriedade afirmo isso? Pois estes cristãos, ao menos, garantiam folga ou menos trabalho aos domingos.

Vejamos alguns estatutos legais da época, pois o direito canônico era a principal fonte de organização da sociedade à época, e os códigos se confundiam entre os seculares e religiosos, com uma mútua interdependência do Rei e do Clero, com uma proposta universalidade daquilo que era proferido oficialmente pelo Papa em Roma.

O concílio de Chalons, um dos diversos sínodos francos que ocorreram para organizar os sistemas de governo e Estado à época, claramente já colocava o descanso como prioridade (ano 644):

É geralmente admitido por todos os católicos que temem a Deus que os convém a observar o dia do Senhor (que é o primeiro dia da semana), como foi decretado em todos os antigos cânones: não instituímos nada novo, mas renovamos o antigo – que ninguém concebe a idéia de realizar o trabalho rural no dia do Senhor, como arar, ceifar, colher a colheita, desmembrar novas terras ou fazer qualquer outra coisa relacionada ao trabalho rural. Se alguém for encontrado fazendo isso, será endireitado por severo discípulo de todos os tipos.

O Rei Ine ( 688-726) dos Saxões, na Inglaterra pré- Normanda, estabeleceu a primeira Lei “terrena” ( monárquica, não espiritual) que proibia expressamente:

Eu, Ine dos saxões ocidentais, com o conselho de Cenred, meu pai, e Hedde e Erkenwald, meus bispos, com todos os meus anciãos e sábios mais ilustres, e também com uma grande assembléia do servos de Deus, considerando a saúde de nossas almas e a estabilidade de nosso reino. . . Fiz várias atos, dos quais este é o terceiro: Se um escravo trabalhar no domingo pelo comando de seu senhor, seja livre; e deixe o senhor pagar trinta xelins bem (wite); mas se o servo não trabalhar sem o seu conhecimento, que sofra em seu esconderijo ou pague um resgate. Mas se um homem livre trabalhar naquele dia sem o comando de seu senhor, deixe-o perder sua liberdade ou sessenta xelins; se ele for sacerdote, dobre ”.

Diga-se de passagem, que era tão importante o descanso familiar no domingo, que nem casar-se o cristão poderia no Domingo, uma vez que era dia de descanso e reflexão. O Papa Gregório III ( 731-741), em seu Judiciis Poenintent colocou que:

qualquer um que se casar no dia do Senhor, pedirá misericórdia a Deus e fará penitência de um a três dias.

Ainda, o todo poderoso Carlos Magno, Imperador do Sacro Império Romano Germânico:

Ordenamos, como é exigido pela lei de Deus, que nenhuma obra servil seja realizada nos dias do Senhor. . .que os homens se abstenham de trabalhos de lavoura, isto é, trabalhando nas vinhas, arando em seus campos, cortando grama ou fazendo, cercando ou cercando, arrancando ou derrubando árvores, cavando nas minas, construindo casas, trabalhando no jardim, indo à lei ou caça. Somente em três casos é permitida a entrada no dia do Senhor, ou seja, em tempo de guerra, para provisões e, se for necessário, levar um cadáver para o túmulo. Além disso, as mulheres não devem tecer, vestir tecidos, fazer bordados, cardar lã, bater cânhamo, lavar roupa pública ou tosquiar ovelhas: para que em todas as coisas a honra e o descanso do dia do Senhor sejam servidos. Mas o povo deve ir a toda a parte para a igreja, para assistir à santa missa e louvar ao Senhor por todas as coisas boas que Ele nos conferiu neste dia.

No Concílio de Paris, em 829, a Igreja praticamente implorou aos poderes terrenos dos príncipes que utilizassem das forças de manutenção da ordem para fazer cumprir com o descanso:

Portanto, os sacerdotes imperiais, especialmente e humildemente, exortam os poderes superiores para que usem o poder ordenado a eles por Deus para instilar em todos os temores, com respeito à reverência e honra destes grandes dias, que neste dia santo e venerável eles não mais mantenham mercados ou tribunais, ou realizem qualquer trabalho rural ou qualquer tipo de transporte, sob qualquer condição que seja. Para quem faz isso ofender Christina decorum; e enquanto eles professam o nome de Cristo, ainda assim eles depreciam-no muito mais por suas blasfêmias. Portanto, o cristão deve, neste dia, reservar tempo para louvores divinos, mas não para o desempenho do trabalho rural.

Os Decretos de Gregório IX, de cerca de 1230, uma das obras mais importantes de Direito canônico, também conhecido como Liber Extra, e obedecidos por toda a Cristandade, por ser considerado infalível como Bispo de Roma e Papa, fala várias vezes sobre o dia de domingo e a necessidade de descanso e de não ocorrer serviços privados, tampouco públicos. Notem que nem mesmo a justiça poderia funcionar, sendo a única exceção, celebrar tratados de PAZ:

Nós decretamos que em todos os dias do Senhor será observado de noite à noite, com toda a veneração devida, e que deverá abster-se de trabalho ilegal, Negócios e processos judiciais não deverão ocorrer, ou qualquer um ser condenado à morte ou punição ou qualquer juramento ser administrado com exceção de paz, ou outra razão necessária”.

Mesmo Lutero e os protestantes, considerados o berço do capitalismo, valorizando o trabalho, aboliram e reformaram diversas questões, mas não ousaram mexer no domingo. Vejamos o comunicado do próprio Lutero em 1520 aos príncipes germânicos protestantes:

Artigo 18. Todos os dias e festivais de todos os santos devem ser abolidos, mantendo-se apenas domingo. Mas se fosse desejado para manter os sagrados festivais e aqueles que honram Nossa Senhora, todos eles devem ser transferidos para os domingos, ou apenas na parte da manhã com a Missa; o resto dos dias devem ser dias de trabalho. Os feriados causam nossos atuais abusos de beber, jogos de azar e todo tipo de pecado, e a ira de Deus se acendeu por eles. E a questão é que temos feito invertido; temos feito dias e semanas santas, profanos, ao não realizar nenhum serviço ( nota de tradutor: aqui entendido serviço como missa); causando grande desonra a Deus e Seus santos com todos os nossos dias santos. Há alguns prelados tolos que pensam que têm feito uma boa ação, ao estabelecer um festival de St. Mary Otilia para St. Barbara, e assim por diante, cada um à sua maneira cega, enquanto ele estaria fazendo um trabalho muito melhor fazendo virar um dia santo em um dia de trabalho em honra de um santo.

Toda a discussão sobre a leitura e interpretação da bíblia proposta por nomes como Calvino, John Knox e outros não alterou o fato de que a tradição de domingo continuaria.

Ainda, na Confissão de Augsburgo (1530):

“Além disso, as três ordenações mais antigos da igreja, ou seja, os dias de jejum, etc. A observância do domingo e similares, foram inventados por uma questão de boa ordem, unidade e paz, etc., o que observamos com bons olhos“.

Calvino, inclusive achava que somente domingo era pouco! Que tal dois dias?

“O Dia serve como um meio de chamar-nos em conjunto para que possamos aprender, na medida em que somos capazes de nos aplicar mais plenamente ao serviço de Deus. Devemos nos dedicar neste dia inteiramente a ele, para que possamos nos retirar completamente do mundo e e para que possamos ter um bom começo para o restante da semana.

Também devemos considerar que não o suficiente para nós meditarmos sobre Deus e suas obras, somente no dia do Senhor, por nós mesmos. Pelo contrário, devemos nos reunir em um dia específico para realizar a confissão pública da nossa fé. Na verdade, como disse antes, isso deve ser feito todos os dias, mas por causa da imaturidade espiritual do homem e sua preguiça é necessário ter um dia especial dedicado inteiramente para esta finalidade. É verdade que não se limitam ao sétimo dia, nem nós, na verdade, mantivemos o mesmo dia que foi nomeado para os judeus, já que este era sábado. Mas, para mostrar a liberdade dos cristãos, o dia foi mudado porque a ressurreição de Jesus Cristo nos libertou da escravidão da lei e cancelou a obrigação. É por isso que o dia foi mudado. No entanto, devemos observar a mesma regulação de ter um dia específico da semana. Quer se trate de um dia ou dois é deixado à livre escolha dos cristãos”.

Portanto, a tradição de domingo remonta à milênios, perpassa diversas religiões, unifica continentes e tem um peso e um costume cultural, social imenso. Longe de ser uma tradição “comunista”, está na base do cristianismo. Biologicamente e psicologicamente está comprovado que a folga durante a semana não supre o descanso feito em jornada extraordinária, tampouco é tão aproveitado como nos finais de semana, já que a socialização fica prejudica, pois família e amigos estarão laborando enquanto o trabalhador descansa.

Se estamos voltando séculos para atrás, ao menos esta norma poderia ter sido observada, mas o cristianismo presidencial é apenas de ocasião.

(*) Ramiro Castro é advogado.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora