Opinião
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6 de agosto de 2019
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13:20

A importância do silêncio (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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A importância do silêncio (por Jorge Barcellos)
A importância do silêncio (por Jorge Barcellos)
“Le_Silence”, obra de Auguste Preault (Reprodução)

 Jorge Barcellos (*)

Meu vizinho do apartamento de baixo está fazendo uma reforma. Há, é claro, muito barulho. Minha esposa trabalha em regime de plantão e por esta razão precisa dormir durante do dia. É o que basta para criar um conflito no meu condomínio. Como pedir para o empreiteiro fazer silêncio? Como fazer uma obra sem barulho algum se, ao contrário do que objetiva a lei, a pessoa necessita de silêncio de dia e não de noite? Afinal, porque precisamos de silêncio e damos tão pouco valor a ele nas cidades?

O silêncio é a ausência total ou relativa de sons audíveis, repercutindo na comunicação, na criação artística e nos modos de vida. O silêncio está na fala pela hesitação, gagueira ou pausas que tem o objetivo de clarear as ideias. É associado, na maioria das vezes, a algo positivo, como nas ordens religiosas que fazem do voto de silêncio, o caminho para redimir a vida e adentrar no mundo sagrado. Na arte, Antoine Augustin-Preaut (1809-1897) criou a escultura “O silêncio”, instalada na tumba de Jacob Roblès, que opera como uma exortação ao respeito, um chamado à renúncia. O apóstolo Pedro confessou a Judas Iscariotis o que sentia saudade de seu oficio de pescador “o silêncio dos peixes quando morrem. O silêncio durante o dia. O silêncio ao entardecer. O silêncio da pesca noturna. ” O compositor John Cage, numa anedota, diz que ficou isolado numa câmara na esperança de ouvir o silêncio, mas só ouviu um som agudo e outro grave que lhe disseram ser, respectivamente, o ruído de seu sistema nervoso e de seu coração “por mais que tentamos fazer silêncio, não conseguimos”.

Na origem latina de silêncio encontra-se a expressão “silere” um verbo intransitivo que se aplica ao homem e a natureza para significar a tranquilidade que se obtém da ausência de ruídos e “tacere”, verbo ativo dirigido ao sujeito que não diz uma palavra. Enquanto que a primeira se refere ao silêncio como expressão da serenidade, a segunda noção afirma o silêncio como produto da vontade. Ambas se referem a uma qualidade que o silêncio possibilita, a tranquilidade de espirito. O silêncio é uma necessidade humana primordial: sem ele não descansamos, não vivemos a vida. Não é possível viver a vida totalmente rodeado de ruído: por esta razão, os barulhos, como a privação de sono, são considerados equivalentes da tortura.

Nosso mundo é altamente urbanizado e conectado. Faz barulho e fala-se em abundância. As cidades não nos permitem mais experimentar o silêncio. A ausência de silêncio é o primeiro sinal de que vivemos mal o mundo globalizado. O capitalismo sobrevive com a circulação de mercadorias que fazem barulho em primeiro lugar: carros, mas também aparelhos de som, o universo da produção cultural é barulho. A cidade é obra da construção civil organizada, e portanto, a ocupação de espaço urbano é, em primeiro lugar, uma operação barulhenta. Vivemos o barulho, acostumamo-nos a ele, retirando com isso a possibilidade de condições de vida melhor. Olhamos ao nosso redor e vemos o caos barulhento de nosso capitalismo avançado no trânsito que produz o barulho dos motores e depois, o barulho dos vendedores ambulantes que ocupam nossas ruas e avenidas.

A consequência subjetiva desse capitalismo ruidoso é que ele nos levou a nos tornamos imunes ao silêncio, a ignorá-lo frente a nossas urgências e a deixamos de nos interrogar sobre as razões de tanto barulho. Diz Danilo Miranda em O desafio do silêncio necessário: ”não nos cabe a prerrogativa de ignorar o silêncio a subsistir por trás de atrocidades, injustiças, tampouco esquecimentos deliberados, vigentes no âmbito político e social”. Quando meu vizinho autoriza o barulho de uma reforma num período que deveria haver silêncio, temos exatamente isso, a produção de violência. Pois meu problema da vida prática impõe uma questão filosófica: qual a importância do silêncio para a garantia do direito à vida? Como enfrentar o paradoxo de que se é graças ao silêncio que podemos repousar, se vivemos num mundo sem silêncio ainda podemos garantir o direito à vida, a existência plena?

O barulho dói, aumenta os hormônios do estresse enquanto o silêncio cura, é reconfortante, nutritivo e acolhedor. Isso é demonstrado cientificamente, o silêncio é o que precisamos para regenerar nossos cérebros e corpos exaustos. Ruído vem da palavra latina “nausia”, que significa nojo ou náuseas e da palavra latina “noxia”, que significa dor, dano ou lesão. Pesquisas mostram que o ruído está associado ao aumento da hipertensão arterial, doenças cardíacas, zumbido e perda de sono. Por isso todos sentimos os efeitos da poluição sonora, o barulho é uma afronta aos sentidos físicos e não é à toa que nas cidades mais pessoas estão sensíveis a ambientes barulhentos.

O poder curativo do silêncio é mostrado no relato que aponta o seguinte “Em 2011, a Organização Mundial da Saúde (OMS) examinou e quantificou sua carga de saúde na Europa. Ele concluiu que os 340 milhões de habitantes da Europa Ocidental (em torno da população dos Estados Unidos), estavam perdendo um milhão de anos de vida saudável a cada ano, devido ao barulho. A OMS também disse que a principal causa de 3.000 mortes por doenças cardíacas foi devido ao barulho excessivo.” Gary W. Evans, professor da Cornell University, publicou estudo na Psychological Science onde traçou os efeitos do ruído em crianças em idade escolar perto do aeroporto de Munique e mostrou que elas desenvolveram uma resposta ao estresse que as fez ignorar o ruído ao mesmo tempo que ignoravam ruídos mais cotidianos como a fala. Já os efeitos positivos do silêncio foram demonstrados pelo professor Luciano Bernardi estudando efeitos da música em 2006 quando descobriu que os intervalos de silêncio entre as músicas eram relaxantes, daí ser uma prática constante da meditação, como demonstra a monja Monja Coen. Outro pesquisador, Imke Kirste, da Universidade de Duke, aponta que duas horas de silêncio por dia desenvolvem o hipocampo, região relacionada à formação da memória.

Da ciência à filosofia oriental, o silêncio tem poder curativo. Não é possível recusar isso. O barulho constante dá menos tempo para o cérebro funcionar porque é muita informação, exerce pressão no córtex pré-frontal que nos impossibilita de relaxar e nos impede de dar sentido a vida, algo vital para o bem estar porque nos faz perder a concentração, produz desmotivação e reduz o funcionamento do cérebro, como provam as pesquisas sobre ruído. O silêncio cura. O barulho adoece. Se falamos em silêncio é porque desejamos fazer o elogio da boa vida, o elogio da vida tranqüila. É certo que o barulho nos cerca, inclusive, no momento exato em que datilografo estas linhas. O silêncio é origem de uma ética, construção de sentidos de mundo.

Há muitas formas de se deparar com importância do silêncio. A minha foi a pior possível, através de uma obra de construção civil onde havia muito barulho. No mundo real lidamos com barulho e silêncio através da lei. Para meu vizinho, basta o horário da convenção de meu prédio que estabelece horário de silêncio tradicional, mas é um documento com mais de cinquenta anos, época em que se quer se cogitavam essas considerações. Fiz pesquisas e descobri que a Lei do silêncio não está prevista no Código Civil, e no máximo o Art. 1.277 pode ser aplicado, e olhe lá “ O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”. Já a Lei da Contravenção Penal diz no seu artigo 42 que é contravenção “Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheio com gritaria, exercendo profissão ruidosa ou abusando de instrumentos que façam barulho”. É o caso. Parece que usa britadeira no apartamento.

Tentei convencer os demais condôminos que meu vizinho está errado, sem sucesso. O placar ficou dividido: quem mora longe do apartamento em obras tolera, quem mora perto rejeita. Me chamou a atenção os vizinhos que acham natural o barulho, não consegui convencê-los de que é mito dizer que alguém tem direito de fazer barulho até as 22h. Pela minha pesquisa, a maioria desconhece que segundo a lei, o barulho que incomode o sossego superior a 70 decibéis é proibido. Diz a advogada Mônica Balzanello Freitas “fazer barulho durante o dia também é uma contravenção e, como toda, está sujeito à pena”. A pergunta é: quem fiscaliza o limite do barulho durante o dia?

Minha conclusão: é preciso que a lei estabeleça limites sonoros para obras prediais no caso de haver no local pessoas que trabalham no turno inverso. Pois a Lei do Silêncio foi criada por legisladores que, em primeiro lugar, queriam proteger o descanso dos cidadãos, o que inclui seu sono. Em Porto Alegre, onde está sendo feita a obra, o Código de Posturas (Lei Complementar 12, de 7.1.1975) diz em seu artigo 83 que “É vedado perturbar o bem-estar e o sossego público, ou de vizinhanças, com ruídos, barulhos, sons excessivos ou incômodos de qualquer natureza, produzidos por qualquer forma e que ultrapassem ou não os níveis máximos de intensidade fixados nesta Lei” E adiante, o artigo 85, diz que esse horário é o compreendido entre 22h e 6h. Quer dizer, o legislador esqueceu de quem trabalha a noite e precisa descansar de dia. Legislações de outras capitais estabelecem que no período diurno como o das 7h às 19h e o barulho não pode ultrapassar 70 dB.

Ora, para quem necessita descanso, sons ou ruídos estridentes durante o dia provocam o incômodo, tiram o sono, e, portanto, interferem na saúde e no bem-estar das pessoas. Descobri que a falha da lei é não levar em consideração medidas para as pessoas que necessitam dormir durante o dia, ou pelo menos, parte dele, no caso, a manhã. No meu caso, fazer silêncio duas ou três manhãs na semana bastaria para resolver nosso conflito. Fiz acordo de cavalheiros com proprietário e empreiteiro. Deu pouco efeito prático, pois em se tratando de barulho, basta pouco para o despertar. Por isso eu apelo aos políticos que introduzam na lei dispositivo que contemple as pessoas que cumprem o papel fundamental de trabalhar enquanto dormimos. Elas estão nos hospitais, nos postos de saúde, nos abrigos públicos, nos bombeiros, nas polícias. São atividades cada vez mais comuns, não é pouca gente e foram esquecidos pela Lei e precisam serem respeitadas. A decisão do horário de trabalho para uma obra num condomínio deveria levar em consideração as características de trabalho destas pessoas, mas não as leva. São cidadãos com direitos, que tem direito à saúde, mas este direito é desrespeitado porque o barulho a deixa doente. A pessoa que infringir uma indicação condominial de silêncio deveria ficar sujeita às penalidades da lei, como se tivesse violado o horário normal de silêncio. Pois se não transformamos nossas relações sociais, se não transformamos a base de nossas crenças sobre o mundo, o capitalismo venceu. Pedi várias vezes para meu vizinho e seu empreiteiro fazerem silêncio, de forma amigável. Talvez lendo este artigo eles se conscientizem.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018, é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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