Opinião
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9 de julho de 2019
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18:05

O poder Judiciário e a serpente que ajudou a criar. A batalha decisiva se aproxima (por Edson Luís Kossmann)

Por
Sul 21
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Foto: Agência Brasil

Edson Luís Kossmann (*)

A crítica social de Eduardo Galeano de que “La justicia és como las serpientes, sólo muerde a los descalzos”, pode levar a conclusão de que a Justiça e a serpente, nunca se agrediriam mutuamente, já que as duas tem em comum o fato de só picarem “los descalzos”. Porém essa compreensão é equivocada – não a de Galeano, mas de quem assim conclui.

Convivemos com um réptil peçonhento que já há algum tempo envenena nossa sociedade, sucumbindo gradativamente com a democracia. Essa serpente só existe porque o ovo, que possibilitou a sua gênese, foi chocado e depois alimentado no próprio seio das instituições que deveria servir como grades de proteção democrática. Entre elas e, principalmente, o Judiciário.

Atualmente é uma tarefa hercúlea – para não dizer impossível – à qualquer pessoa de mediano conhecimento, principalmente, por quem se interessa um pouco ao menos pelo direito praticado em um país democrático, justificar racionalmente o entendimento de que o Poder Judiciário brasileiro não teve (tem) participação decisiva nos processos que levaram a atual crise política-moral-jurídica-democrática que atravessamos.

Num período recente se pode identificar alguns estágios pelos quais passou (e passa) a justiça brasileira, quanto a sua participação no processo de chocar o ovo da serpente (que também pode ser denominado de golpe contra a democracia), assim como, na sua transformação de cocriadora, para vítima desse réptil amplamente alimentado.

O primeiro estágio, denomino de ativa participação no processo golpista. Como marco principais dessa fase, pode-se identificar o julgamento, por parte da Corte Suprema, da ação penal 470, o processo do chamado Mensalão. Neste se destacou como novidade “jurídica”, para julgamentos de ações daquela espécie, a chamada Teoria do Domínio do Fato, bem como, o argumento de que se pode condenar alguém, mesmo sem ter prova, isso, porque a literatura jurídica assim permite.

Daquele malfadado processo para a operação lava jato foi apenas um pequeno percurso, sem esquecer do atalho golpista legitimado pelo STF, que foi o processo de impeachment de 2016. Entre as ilegais conduções coercitivas (inclusive do ex-presidente Lula), prisões (in)temporárias e delações sob encomenda, destaca-se a decisão limiar concedida pelo STF, que suspendeu a nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil, pela então presidente Dilma, no início de 2016, fundamentado em um diálogo entre os dois, vazado seletivamente para a imprensa, após uma interceptação (gravação) telefônica ilegal.

Condenações sem provas; celeridade desproporcional e seletiva de processos; julgamentos midiáticos sumários, possibilitados por vazamentos ilegais e seletivos; articulações jurídicas-políticas para perseguir adversários e favorecer aliados políticos; são apenas alguns exemplos de ilegalidades que (parte d) o judiciário brasileiro se submeteu e praticou para fins meramente políticos. Ocorre que as consequências sempre vem depois (sic), e chega o momento em que a serpente rasteja por conta própria, a ponto de ameaçar a picar no sólo los descalzos, mas também seus próprios criadores. E com isso, passa-se ao segundo estágio.

Identifico essa segunda fase como sendo de uma certa expectativa preocupada. Ou seja, momento em que algumas figuras do próprio judiciário passam a ver que a travessia do Rubicão sempre tem consequências, e muitas vezes, não previamente calculadas. As últimas informações tornadas públicas, estão a demonstrar que os abusos autoritários foram longe demais, e que o conluio resultante de tudo isso, se mostra disposto a fazer qualquer coisa para que o poder – conquistado por meio desse processo ilegal e antidemocrático – não seja ameaçado.

A hora derradeira se aproxima, e esta é a terceira fase. Uma decisão sobre para que lado seguir exige coragem e discernimento. Ou uma forte retomada ao caminho do Estado democrático e de direito, tendo a Constituição como farol norteador a ser seguido; ou uma capitulação definitiva, permitindo que a serpente do fascismo se instale de vez e aqui faça sua morada: seja pelo sufocamento das instituições por meio da violência contra seus agentes; seja pela definitiva cooptação política, tornando as instituições da República, meros elementos a seu serviço, contando com sua cumplicidade, tolerância e leniência acovardada.

O próprio judiciário precisa enfrentar a criatura que ajudou a criar. Não há mais tempo; ou inicia logo o processo de decapitação desse ser, ou será, por ele, definitivamente picado, talvez com o auxílio de um soldado e um cabo.

(*) Doutor em Direito Público

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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