Opinião
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29 de julho de 2019
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11:53

O Incra RS vai mudar de nome? (por Jacques Távora Alfonsin)

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O Incra RS vai mudar de nome? (por Jacques Távora Alfonsin)
O Incra RS vai mudar de nome? (por Jacques Távora Alfonsin)
Fachada do prédio do Incra em Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos

Jacques Távora Alfonsin (*)

O novo superintendente do Incra no Rio Grande do Sul é Tarso Teixeira, vice presidente da Federação de Agricultura do Estado (Farsul), um ruralista, presidente do Sindicato Rural de São Gabriel há 15 anos, segundo noticia a Zero Hora de 25 deste julho. Ele “já tem definida a sua primeira ação: passar um pente-fino nos 345 assentamentos rurais no Estado”. “Há denúncias de irregularidades em boa parte deles. Vou regularizar isso, com diálogo”. “A ideia do novo superintendente é promover reassentamento de famílias em lotes que estiverem com irregularidades – como arrendados, vendidos ou em uso para outras atividades.”

O homem já deixou bem claro, portanto, ao que veio. Trata-se de um rigoroso fiscal do que julga ter dado errado em quanto o povo sem-terra conquistou neste Estado, a custa do sacrifício de vidas, como testemunha o próprio município onde ele é presidente do sindicato rural. Em 2009, foi em São Gabriel que Elton Brum da Silva, um agricultor solidário com uma ocupação de terra promovida pelo MST, foi assassinado pelas costas por um brigadiano, na execução de uma das muitas reintegrações de posse propostas contra sem-terras neste Estado. Não consta que a Farsul tenha posto luto por isso, nem tenha ficado envergonhada pelo fato de um sindicato rural ter organizado uma carreata para homenagear o assassino antes de ele cumprir a sua pena na prisão.

Agora um dos seus vice-presidentes vai assumir o cargo de superintendente de uma autarquia federal, a qual cabe executar uma política pública de reforma agrária, sabidamente aquela que a Farsul sempre ofereceu fortíssima oposição. Tão poderosa que, bem examinado o passado de muitos dos assentamentos rurais hoje garantindo casa e comida para ex sem-terras, só alcançaram reconhecimento oficial pelo Incra depois de ocupados por iniciativa desse grupo de gente pobre, vencendo campanhas massivas de crítica midiática da entidade do seu vice presidente, contra esse mesmo povo e contra o próprio Incra.

Obrigações constitucionais e legais, exigindo providências públicas de muito maior importância e urgência do que as referidas pelo novo superintendente na Zero Hora, como as de vigiar e reprimir o descumprimento da função social da propriedade rural – justamente o principal motivo de as leis terem  previsto a sua desapropriação para a reforma agrária – não passou pela lembrança dele. Ora, até o Estatuto da Terra, uma lei de 1964, diga-se de passagem, bem afinada com a ideologia da ditadura militar que hoje inspira o governo da nossa vitimada República, só reconhece cumprida a função social da propriedade da terra, em seus  artigos 2º e 12, se houver prova bastante, a cargo do seu titular, de vários pressupostos capazes de garantir que a dita função está, de fato, sendo respeitada e cumprida.

A Constituição Federal 1988, igualmente, em seus artigos 184, 185 e 186, sublinha entre os tais pressupostos o dever de a/o proprietária/o de terra rural preservar o meio ambiente, uma das mais óbvias condições de exercício lícito desse direito, típica de uma função social a ser cumprida por ele. No território gaúcho, atualmente, não faltariam motivos para o novo superintendente do Incra preocupar-se prioritariamente com isso.

O Pampa gaúcho, um conhecido e extenso espaço de terra, por muitos considerado único no mundo, está sendo assaltado pela monocultura do eucalipto em grande parte da sua extensão; a região dos vinhedos está sendo atacada violentamente pela deriva de venenos utilizados em propriedades vizinhas, comprometendo as uvas e a produção de vinhos, historicamente  responsáveis pela economia de inumeráveis famílias que vivem desse trabalho; venenos matando a terra e sua flora, igualmente, estão matando milhões de abelhas em diferentes lugares do Estado, e isso só tende a se agravar já que mais de duas centenas deles já foram licenciados para comercialização pelo (des) governo vigente desde janeiro deste ano; o risco iminente de o Mina Guaíba se instalar na região metropolitana, um empreendimento que vai  soterrar um assentamento inteiro conquistado pela reforma agrária, e situado quase à margem do rio Jacuí, capaz de poluir a sua água e comprometer o meio ambiente de toda a mesma região. Será que o Incra não tem nada a fazer sobre tudo isso e em nenhum desses espaços de terra a função social da propriedade está sendo ameaçada ou até já desrespeitada?

Se o pente fino do novo superintendente vai se limitar a fiscalizar os assentamentos resultantes da reforma agrária neste Estado, e a outras medidas paliativas por ele reveladas em sua entrevista para a Zero Hora, o Incra deveria, pelo menos no Rio Grande do Sul e  por uma questão até de honestidade, mudar de nome. Em vez de Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, adotar a denominação de Instituto Nacional Contrário à Reforma Agrária. Aliás, assim o seu novo superintendente se alinharia a todo o modelo de gestão administrativa do (des)governo federal. O do presidente da República e seu ministro da cidadania, o primeiro afirmando não existir fome no Brasil e o segundo desafiando um repórter a lhe apresentar um faminto já que diz não conhecer nenhum. O do ministro do meio ambiente e da ministra da agricultura, ele passando pela vergonha de ter de corrigir uma afirmação anterior sua, segundo a qual a Amazonia tinha “desmatamento zero”, e ela, que já era conhecida como musa do veneno antes de sua investidura, vem confirmando essa fama com extraordinária desenvoltura. O do ministro da justiça, que precisa fugir para os Estados Unidos, buscando socorro de fora para enfrentar o recente escândalo revelado pelo Intercept, de lá trazendo uma portaria para impedir que a verdade sobre o que vem sendo revelado seja punida e não encorajada.

Vai muito mal um país e um dos seus Estados sob administradoras/es “públicos” (?) tão fiéis aos lugares, às posições, aos tempos e aos interesses de uma classe social rica, cujo passado cúmplice do colonialismo, escravocrata e entreguista, intervém periodicamente na vida socioeconômica e política do país. Parece mentira que em pleno século XXI, ainda haja quem considere Estado de direito e democracia, aquele e aquela onde, para se garantir a repetição dessa injustiça, a dominação se faça sacrificando exatamente os direitos sociais do povo pobre vítima dessa injusta opressão. É obrigação inadiável de quantas/os sabem muito bem disso, como os movimentos populares por exemplo, juntar-se a ele na inadiável missão de conscientizar-se das causas responsáveis pela exclusão social que sofre, assim organizando-se coletivamente para uma decidida resistência contrária aos (des)mandos do poder oficial vigente.

(*) Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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