Opinião
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23 de julho de 2019
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12:55

O Holocausto nosso de cada dia (por Mauro Nadvorny)

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O Holocausto nosso de cada dia (por Mauro Nadvorny)
O Holocausto nosso de cada dia (por Mauro Nadvorny)
Advogado e ativista de direitos humanos Eitay Mack vem questionando vendas de armas israelenses para países que praticam o genocídio. (Reprodução/Youtube)

Mauro Nadvorny (*)

Há muito se fala sobre o comércio de armas israelense. Um assunto tabu em Israel, ele assombra até os mais céticos com relação a intocável moral do exército. Não que um país fabricante de armas não possa vendê-las para outros países, o problema é para que tipo de regimes e com que finalidade este armamento será utilizado.

Em Israel existe um advogado militante dos direitos humanos chamado Eitay Mack que vem peticionando à Suprema Corte de Israel sobre as vendas de armas israelenses para países que praticam o genocídio. Estas vendas acontecem há muitas décadas e sempre foram uma verdadeira caixa preta fechada a sete chaves.

O exemplo mais recente, existem muitos outros, é Myanmar (antiga Birmânia), uma nação do sudeste asiático com mais de 100 grupos étnicos, que faz fronteira com a Índia, Bangladesh, China, Laos e Tailândia. No ano passado o país foi manchete de jornais pela prática de genocídio contra a minoria Rohingya. As Nações Unidas apontaram indícios de “genocídio intencional” e criticaram a passividade da líder do país exigindo que comandantes das Forças Armadas fossem julgados por tribunal internacional. Israel fornece armas para Myanmar.

Existe aqui uma questão ética e moral: como é possível um país que nasceu nas cinzas do Holocausto, um genocídio cuja brutalidade e especificidade gerou uma denominação única para ele, que suspende todas as atividades no dia da sua lembrança, durante um minuto, ao som das sirenes antiaéreas, pode vender armas para países cujos governos praticam genocídios.

Quando se fala de Israel, atualmente, não há como se deixar de mencionar o conflito com os Palestinos, ainda sem solução. Também com relação a ele começam a surgir provas de que na Guerra da Independência teriam sido cometidas atrocidades para ocupação das terras destinadas ao então Estado Palestino, expandindo as fronteiras e gerando um êxodo de cerca de 600.000 pessoas no que ficou conhecido como a Nakba (catástrofe ou desastre).

Novamente temos aqui o mesmo povo que havia acabado de ser massacrado na Segunda Guerra Mundial, lutando para obter seu Estado Independente, praticando crimes de guerra como o massacre de populações civis. Crimes estes que permanecem impunes até o os dias de hoje e sobre os quais o Estado procura ocultar as provas.

Eu acredito que os acontecimentos históricos sempre precisam ser contextualizados e colocados dentro da sua linha de tempo. As coisas precisam ser estudadas sob duas perspectivas, a do vencedor e a do vencido. Só assim podemos compreender o que de fato aconteceu.

Não conheço nenhuma guerra onde não sejam cometidas atrocidades, algumas das quais até perfeitamente evitáveis, algo que os militares costumam chamar de danos colaterais. Um estranho preço a pagar para se obter uma vitória com menos baixas de seus comandados.

Sem querer entrar no mérito do que é certo e errado, mas apenas falando um pouco daqueles dias e dos tristes acontecimentos, relembro que a ONU aprovou a criação de dois países, um judaico e outro palestino. Um dos lados não aceitou a divisão e não pretendo discutir as razões que levaram a isso. Os palestinos não queriam um Estado Judaico no que acreditavam ser a sua terra. Nem eles e nem tampouco todos os países árabes do Oriente Médio. Tanto assim que imediatamente à declaração da independência, Egito, Iraque, Jordânia, Líbano e Síria declararam guerra a Israel.

Atrocidades foram cometidas pelos dois lados. Soldados judeus foram encontrados mortos com a genitália cortada e enfiada em suas bocas. Corpos de soldados árabes também sofreram mutilações. Não existia ainda um exército israelense de fato. A maior parte era composta por cidadãos que se alistavam para ajudar na guerra sem nenhum treinamento militar, cidadãos que eram transformados em soldados da noite para o dia.  Ainda assim combateram e foram o lado vencedor.

Documentos da época mostram que algumas tropas receberam ordens para entrar em aldeias palestinas, matar todos os homens e expulsar as mulheres e crianças. Isto foi realizado e, em alguns informes dos comandantes, consta também o estupro de mulheres e meninas. Foi desta maneira que parte do Estado foi formado.

Falo sobre estes fatos, porque acredito que sejam importantes serem mencionados e que remetem novamente à questão da venda de armas para países que desrespeitam os direitos humanos. Não podemos nos omitir diante disso e precisamos encarar a verdade de frente, com humildade e retidão.

Os psiquiatras há muito informam que uma pessoa que sofreu violência na infância tem muito mais tendências a repetir esta violência na fase adulta do que uma criança que teve um desenvolvimento amoroso e respeitoso.

Às vezes me pergunto se o fato de sermos um povo que sofreu tanta violência na sua história, se uma parcela do nosso povo carregaria consigo que a violência se combate com mais violência e somente os mais violentos e aqueles dispostos a ela sobrevivem.

É conhecido hoje que as atrocidades cometidas em guerras ocorrem pelas mãos de soldados que tinham uma vida civil simples. Desta maneira, um jornaleiro, um encanador, um entregador de mercadorias são aqueles, dentre outros, os que cometem atrocidades. Infelizmente, os responsáveis pelos crimes de guerra em nome do Estado de Israel são pessoas que convivem conosco no dia a dia.

Hora dizem que somos o povo do livro, hora que somos o povo escolhido e sabemos que nossos profetas nos ensinaram acima de tudo preceitos de justiça. Ainda assim, muitos de nós, têm um comportamento que contraria tudo isso. Por que estas coisas acontecem? Uma resposta simplória seria de que somos um povo como qualquer outro. Será verdade?

O Holocausto ainda é uma dor presente. A minha geração perdeu muitos familiares. Muita gente como eu não conheceu avós, pais, tios e primos que pereceram. Não podemos esquecer e não vamos perdoar, este é o meu mantra. Preciso dizer que se faz uso desta tragédia para outras finalidades que não seja a de ensinar a geração presente e futura do que o ser humano é capaz de fazer contra outro ser humano, e obviamente para que nunca mais venha a se repetir com nenhum outro povo. Um dos usos frequentes desta imensa tragédia é o vitimismo.

Israel usa o Holocausto como uma maneira de lembrar ao mundo, para toda a eternidade, que fomos vítimas de um genocídio. Que em consequência dele é preciso perdoar, entre outras coisas, nossos erros e nossa maneira de agir com o povo palestino e para quem vendemos armas. Tudo que fazemos de errado se justifica como forma de impedir que o Holocausto se repita pelas mãos de outros povos.  Até a pouco eram os árabes que queriam nos destruir, hoje o Irã.  E sempre vamos continuar escutando que o mundo está contra nós.

Nem todos, é verdade. Somos aceitos e de certa forma idolatrados pelos evangélicos pentecostais porque eles acreditam, com toda sua fé, de que quando todo povo judeu retornar para sua terra de direito (neste caso estão incluídos os territórios ocupados), o filho de Deus, Jesus de Nazaré, voltará a terra e o povo judeu irá aceita-lo como o Messias. Por isso existem até mesmo grupos cristãos sionistas.

A antiga Terra de Israel se estendia também pelo que hoje é a Cisjordânia, território onde se encontram muitas localidades bíblicas onde viveram judeus. Mas isso não justifica, sob nenhuma ótica da Lei Internacional, a contínua ocupação destes territórios (há mais de 50 anos) e sua futura incorporação ao atual Estado de Israel. Ainda assim, de maneira lenta e inexorável, Israel vai ocupando estas terras, expandindo ou criando novas colônias e reduzindo a população local palestina que em breve se tornará os Bantus Sul Africanos. Hoje são cerca de 2.200.000 habitantes palestinos.

Evidentemente que existem forças no Oriente Médio que desejam ver Israel ser varrido do mapa, o que quer que isso signifique. Além do Irã, temos a Síria, o Hezbolah, o Hamas, etc. São países e organizações denominadas como terroristas com as quais o diálogo nas atuais circunstâncias é muito difícil, para não dizer impossível.

Assim, se forma dentro do país uma cultura de que precisamos sobreviver a qualquer custo em um mundo de violência que ameaça nossa existência como nação. Dentro deste pensamento, torna-se compreensível que a venda de armas para países que cometem genocídios, seja uma maneira de buscar apoio internacional em uma comunidade que a cada dia nos aponta mais o dedo e que apesar de ainda tolerar algumas de nossas políticas, começam a nos criticar abertamente. Aquela ideia de que o mundo inteiro está contra nós, e qualquer um que se disponha a ser nosso amigo receberá em troca tudo o que desejar, justifica a venda de armas.

Pessoalmente, eu acredito que do ponto de vista diplomático isto é um desastre. A União Europeia antes tão favorável a Israel, está agora cada dia menos. A tentativa de Trump de levar consigo as embaixadas de outros países para Jerusalém foi um redundante fracasso. O pior, entretanto, é ver como fruto desta diplomacia equivocada, a aproximação com países onde o poder se encontra na mão da extrema direita, alguns até com apoio de grupos neonazistas.

Talvez, o que tenhamos que fazer no próximo Dia do Holocausto, quando ascendermos cada uma das seis velas em memória dos seis milhões de judeus assassinados pelos nazistas, seja lembrar também os milhares de mortos com o uso das armas fornecidas por nós:

  1. Os milhares de assassinados pelas ditaduras militares latino-americanas.
  2. Os milhares de assassinados pelo regime de Anastácio Somoza na Nicarágua.
  3. Os milhares de assassinados na África do Sul combatendo o Apartheid.
  4. Os milhares de assassinados pelas milícias do Sudão do Sul.
  5. Os milhares de assassinados no Genocídio em Ruanda.
  6. Os milhares de assassinados da etnia Rohingya no Genocídio em Myanmar.

Ainda assim faltariam velas. A ocupação dos territórios palestinos causa uma mortalidade assustadora. Se fossem apenas fruto de embates militares, ou até mesmo de terroristas, alguém poderia talvez encontrar uma explicação. No entanto as mortes, em todas sextas-feiras junto a cerca da fronteira com Gaza, de crianças, médicos, jornalistas e outros civis afastados dos locais das manifestações, não encontram justificativa sob qualquer aspecto do bom senso humano. O uso de munição real quando não causa a morte, na maioria das vezes deixa os atingidos inválidos para sempre.

Creio que existe algo de podre no Reino de Israel. No entanto, em nenhum momento pode-se colocar em discussão nosso direito a um Estado Nacional na Terra de Israel. Este é um fato consumado. Nenhum fato passado, presente ou futuro pode colocar em dúvida de que somos um país no seio das nações com nossos acertos e nossos erros. Israel não pertence ao seu governo, pertence a todos os cidadãos que nele vivem.

Existe também uma outra Israel. Uma nação solidária em catástrofes em qualquer parte do mundo, que cria tecnologias que beneficiam toda a humanidade, que possui uma das medicinas mais avançadas do mundo que atende a todos os seus cidadãos e até mesmo feridos de conflitos além fronteira, onde a comunidade LGBT é plenamente reconhecida e aceita, e onde cidadãos como Eitay Mack, juntamente com organizações como Paz Agora, Gush Shalom, Rompendo o Silêncio, Mulheres pela Paz, Taiush, B’Tselem etc,  partidos como o Meretz, Hadash, Balad e milhares de companheiros da esquerda progressista que como eu, lutam para mudar tudo isso.

Esta Israel é quem pede a solidariedade internacional para se somarem a nós, e não nos isolarem. Somos agredidos pela direita radical israelense de forma sistemática. Nosso trabalho e dedicação a causa palestina cobra seu preço no dia a dia. Atacar Israel, ao invés de atacar seu governo é um erro estratégico. Ele somente fortalece esta direita radical e afasta qualquer solução pacífica do conflito. Mais que isso, ele ajuda a manter no poder a atual liderança que alimenta conflitos com a venda de armamento sem qualquer critério para quem se disponha a pagar por ele.

(*) Mauro Nadvorny é membro do Juprog (Judeus Progressistas), da Articulação Judaica e da J-Amlat (movimento em construção de judeus latinoamericanos de esquerda). Atualmente vive em Israel.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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