Opinião
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31 de julho de 2019
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14:23

O festival de hipocrisia que assola o Brasil miliciano (por Adriano Marcello Santos)

Por
Sul 21
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O festival de hipocrisia que assola o Brasil miliciano (por Adriano Marcello Santos)
O festival de hipocrisia que assola o Brasil miliciano (por Adriano Marcello Santos)
Reprodução/Youtube

Adriano Marcello Santos (*)

Demorou pouco mais de sete meses para uma parte do eleitorado, que apoiou aberta ou discretamente o candidato de ultradireita Jair Bolsonaro, desse sinais de desapego. Governadores e deputados que surfaram na onda fascista já não querem saber de alinhamento com o político do baixo clero que se elegeu presidente sem plataforma para governar. Parcela significativa da imprensa brasileira, propriedade de poderosas famílias com relações políticas históricas com a direita nacional, segue de olho nas próprias pesquisas internas, para calibrar suas opiniões sempre relativísticas e baseadas em declarações oficiais.

Precisou que um jornalista estadunidense, do calibre de Glenn Greenwald, vencedor do Pulitzer, fundador da revista virtual The Intercept, com versão em português e inglês e total independência editorial, passasse a divulgar o conteúdo de conversas obtidas por uma fonte anônima, para que uma fração da sociedade brasileira, fora da esquerda, aceitasse a evidência de que o Brasil é objeto de disputa geopolítica multipolar envolvendo, sobretudo, Estados Unidos, China e Rússia. As nuances dessas conclusões estão cada vez mais evidentes na coincidência de datas entre agendas do juiz, transformado em herói nacional pela imprensa familiar e a equipe de procuradores do Ministério Público sediados em Curitiba.

De olho na crescente autonomia do Brasil como potência emergente, principalmente a partir da descoberta das jazidas de petróleo abaixo do leito de sal oceânico, e aproveitando-se do desleixo e da soberba das autoridades em proteger segredos de Estado, não foi difícil encontrar fissuras que permitiram a construção de uma operação geopolítica de obliteração das pretensões brasileiras.

Um princípio elementar do pensamento estratégico aplicado foi mais do que suficiente: apostar na divisão interna. Com uma oposição de direita inconformada pelas sucessivas performances bem sucedidas dos governos de esquerda e incapaz de lhes fazer frente, foi preciso apelar para as velhas oligarquias e corporações estatais, especialmente as do Judiciário.

Das tantas distorções do Estado brasileiro, o sistema judicial de castas, cargos vitalícios e inatacáveis, é um dos mais incompetentes do mundo. Começa na polícia militar, que liga o Brasil democrático ao Brasil dos tiranos militares e acaba nas associações de poderosas famílias, que fazem uso de seus privilégios medievais para proteger-se, garantir proventos aos seus e impunidade em troca de poder ilimitado.

Só não tem produção para justificar tanto apanágio. Mais de 40% da comunidade carcerária, presa pelo critérios racistas de uma polícia autoritária, que se mistura com o crime que deveria combater, sequer foi julgada. Não por acaso, com a série de evidências de corrupção, uso das leis para favorecer aliados políticos e até prestação de consultoria para agentes dos mercado financeiro, não houve qualquer manifestação de repúdio das categorias superiores do Judiciário. Quem cala é cúmplice. Uma demonstração incontestável de que o corporativismo de castas se protege, se tolera e está bem distante dos discursos sobre transparência, honestidade e isonomia proferidos em jantares suntuosos, longe da sociedade.

O inesquecível discurso do senador Aécio Neves na Tribuna, prometendo transformar o Brasil num país ingovernável para a adversária que o derrotou nas urnas, não é só falta de espírito democrático, é pequenez de caráter de um filho das famílias que enriqueceram espoliando a riqueza nacional enquanto mais de 50% da população vive na pobreza.

Sem projeto político para o país, que não a manutenção de seus próprios negócios privados, os 10% considerados ricos, decidiram arruinar o Brasil, aumentando o volume do ódio, patrocinando movimentos civis e entidades obscuras para assassinar reputações, espalhar mentiras e distorcer fatos.

Com uma imprensa panfletária, sem qualquer respeito ao método jornalístico, não foi difícil emplacar uma grande campanha para o Brasil voltar a ser o que sempre foi: um quintal das oligarquias, um território com instituições de fachada, comandadas por verdadeiras gangues familiares. Uma presidente foi deposta por agir em interesse dos mais necessitados, sem que até hoje, qualquer crime lhe tenha sido imputado. Mas é tabu para os jornalistas mainstream dizerem que houve um golpe.

A linguagem e a semântica do jornalismo brasileiro – no pouco que pode ser definido como tal – é um caso à parte, embora siga a tendência das grandes agências que cobrem conflitos armados ao redor do mundo. O maior de todos os correspondentes de guerra vivo, o inglês Robert Fisk, do jornal The Independent, dedicou sua participação numa conferência da Rede Al-Jazeera, em 2010, a demonstrar como conceitos e frases disparadas pelas forças militares dos EUA e União Européia são repetidos sem qualquer questionamento pelos repórteres.

Aqui, na aldeia, um dos exemplos mais bem acabados desse fenômeno é a expressão “família brigadiana” utilizado toda vez que um policial militar de baixa patente é morto em combate, em alguns casos por ação mal-sucedida, sem que os oficiais que ordenaram a tarefa sejam sequer citados. Troca-se uma comoção hipócrita, que mistura público com privado, por questionamentos e busca de responsáveis na cadeia hierárquica.

Também é comum no jornalismo brasileiro, considerar como polêmica, declaração sem qualquer base científica ou factual. Para não desagradar parte dos leitores menos críticos e mais fundamentalistas, se opta por sacrificar a verdade, que deveria ser a bandeira do jornalismo.

Nessa linha, além do relativismo, se inscreve também o democratismo. Trata-se de dar espaço para fanáticos divulgarem ideias e discursos de ódio, como a ingênua desculpa de ouvir todas as partes. Curiosamente, só utilizada quando é para promover figuras e discursos alinhados aos interesses dos donos da emissora ou do jornal. Assim, põe-se de um lado, um cientista, um doutor ou um historiador para debater com alguém intelectualmente despreparado. Foi assim que um garoto com ensino superior incompleto foi posto para debater com uma doutora em Filosofia e historiadora, numa rádio local.

A promessa de retomada do crescimento econômico e da geração de empregos, justificativa política repetida inúmeras vezes, para abafar o dano do golpe contra a democracia em 2016, até hoje não se concretizou. De lá para cá, como não poderia deixar de ser, a imprensa familiar, não publicou um editorial cobrando a promessa da classe política, quiçá reconhecendo que errou.

O macartismo doentio e anacrônico, que trouxe de volta os militares à cena pública do país, somado ao fundamentalismo religioso, não poderia ter outro resultado que não fosse o mesmo de 20 anos de ditadura militar no Brasil: estagnação, subdesenvolvimento, dependência econômica e miséria. O grande legado dos ditadores militares e seus apoiadores civis, de quem nunca foi cobrada autocrítica.

Agora os responsáveis por empurrarem o Brasil para o submundo das republiquetas subdesenvolvidas demonstram surpresa e, estarrecidos, escrevem colunas em seus jornais, diante das imposturas de um presidente eleito por um processo altamente suspeito, envolvendo caixa 2, abuso de poder econômico e venda de dados particulares de cidadãos por empresas.

Seria uma demonstração de coragem e independência se os jornais pelo menos investigassem o mega-esquema que elegeu Jair Bolsonaro e muito outros anônimos que viraram parlamentares da noite para o dia. Infelizmente, a grandeza não virá de quem apoiou uma figura vil, torpe, mesquinha e intelectualmente indigente. Preferem o teatro da hipocrisia, a falsa indignação dos sabujos, as mãos lavadas, como se ninguém soubesse de sua participação na derrota do Brasil.

Foi para fechar mais de 350 mil empresas, comprar gasolina de refinarias estadunidenses, entregar o petróleo nacional, arruinar a pesquisa e a ciência nacional, arrebentar as reservas ambientais e promover o genocídio indígena, preto e pobre que se abandonou a convivência democrática entre diferentes linhas políticas? Quem aceitou isso não se deu conta que a queda virá para todos? Que não se engane os 40% de classe média que bate palmas e relativiza o fascismo cada vez mais em ascensão, inventando justificativas cada vez mais torpes e hipócritas para manter impune um criminoso no poder!

(*) Jornalista

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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