Opinião
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10 de julho de 2019
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13:23

A política de externalização: vivendo além dos meios dos outros (por Jorge Barcellos)

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Sul 21
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A política de externalização: vivendo além dos meios dos outros (por Jorge Barcellos)
A política de externalização: vivendo além dos meios dos outros (por Jorge Barcellos)
Foto: Luiza Castro/Sul21

Jorge Barcellos (*)

O sociólogo Stephan Lessenich, da Universidade de Munique, Alemanha, cunhou o termo “sociedade de externalização”. Com isso ele queria criticar o lugar comum neoliberal que diz aos outros “não viverem além de seus meios”. Governos neoliberais agem assim, criticando todos os que lutam por seus salários, por suas aposentadorias, “todos são lembrados regularmente de que os tempos da abundância acabaram e foram confrontados a acusação de não ter percebido os sinais dos tempos.” É o discurso da autonomia e da auto-responsabilidade dito “a boa e velha metáfora da “mão invisível””. Lessenich, paradoxalmente, afirma que esta narrativa está certa, mas os neoliberais não sabem disso.

O raciocínio é o seguinte. O modelo capitalista não é sustentável, sua dinâmica de crescimento está chegando ao fim porque é exploratória, gananciosa, usa recursos naturais, explora o ar e a água, extermina a natureza. Basta olhar Brumadinho, onde o modo de produzir riqueza destruiu quase tudo. Em economia, significa que o norte global produz e consome porque outros não podem fazê-lo. É daí que nasce o conceito de sociedade de externalização de Lessenich, aquela que vive da riqueza e recursos dos outros, da força de trabalho alheia, extraindo riqueza daqueles que estão em pior situação.

Ora, vivemos a política da externalização. A reforma da Previdência proposta pelo governo Jair Bolsonaro é essa tentativa de alienar a riqueza acumulada por décadas de contribuição, essa tentativa de extrair riqueza a qualquer preço da massa da população. Não exatamente isso que está ocorrendo nesse exato momento? Não é um dos efeitos da reforma da Previdência que haverá pensões inferiores ao salário mínimo? Não é verdade que benefícios previdenciários poderão ter cortes de até 40%? E isso é feito no exato momento em que ruralistas, ricos, e todos os privilegiados não são afetados? Ora, se as economias do norte são sociedades de externalização, vivendo da riqueza dos outros, das forças de trabalho de outros, nossa política e nossos políticos realizam a política da externalização, em termos comparativos fazem exatamente o mesmo, apenas estamos todos em pior situação que aquelas sociedades.

O alerta de Lessenich para os neoliberais do norte deve valer para os capitalistas do sul: viver além dos meios mata, viver dos outros, de todos aqueles que trabalham, conquistaram direitos, contribuíram para uma aposentadoria digna, é uma indignidade. O servidor público, o trabalhador, já há muito tempo está sobrecarregado, exatamente como as economias do sul exploradas pelo Norte. Diz Lessenich: “Pense apenas na constelação global de extrativismo e turismo de resíduos: os recursos naturais são arrancados da terra, fazendo uso de formas pré-industriais ou pré-industriais de exploração do trabalho e deixando para trás um território devastado (para não falar da comunidade social), que é, então, usado novamente para implantar e armazenar os resíduos frequentemente perigosos produzidos por aqueles que arruinaram a terra (ou em cujo nome e por quem foi arruinada) em primeiro lugar.” Podemos dizer o mesmo da sociedade brasileira, que vê nesta noite de terça-feira, a esperança de uma aposentadoria justa ser arrancada de si. Fazendo uso de formas ilegítimas de negociação política – o governo se empenhou e autorizou 2 bilhões e meio de reais em emendas – o que o governo conseguiu não foi apenas arruinar o futuro da sociedade, mas também o futuro das instituições políticas nacionais.

Se a sociedade da externalização, para Lessenich, não é sequer o futuro, porque já é o presente, a política da externalização é uma prática nefasta porque atua justamente no presente para privar o futuro. O sociólogo Maurizio Atzeni, pesquisador do Centro de Relações Trabalhistas da Argentina afirma que, contra esse tipo de política que termina na precarização do trabalho, é preciso reagir para aumentar a consciência social e produzir um conhecimento contra hegemônico. A questão chave é denunciar, nesse modelo de política de externalização, a relação entre as estruturas institucionais e as condições materiais da classe dominante e dominada que estão em andamento: como se sabe, bastaria a taxação de grandes fortunas para ampliar a arrecadação de impostos e resolver o déficit previdenciário.

Por outro lado, apontar a fragmentação da luta política, da luta social, significa mostrar o que vem afastando trabalhadores entre si de suas lideranças políticas. Ora, o contexto desejado pela direita vive da fragmentação da esquerda: não é à toa que a bandeira da unidade nacional de esquerdas, é uma agenda não resolvida pelos partidos de esquerda. Isso explica as dificuldades vividas para trabalhadores.

É preciso pesquisar mais, estudar os setores sociais inexplorados e invisíveis a partir da instalação dos aplicativos, a composição do capital por região do país, o que pode explicar porque o Norte tem se saído melhor politicamente neste jogo. A nova agenda política de esquerda envolve o estudo do ideal de trabalho precário que está em expansão para todas as categorias sociais, professores, policiais, servidores públicos, porque é preciso estabelecer as possibilidades de novas alianças políticas para lutar contra o avanço da direita. É preciso descrever os modos como a direita tem se organizado, suas ligações com instituições e poder do Estado, como novas identidades de classe de origem na direita estão sendo construídas no espaço público e o que significam para a corrosão dos direitos sociais conquistados a partir da Constituição de 1988. Diz Atzeni “devemos, seguindo David Harvey, entender como o consumismo e os estilos de vida ditados pela forma de urbanização são importantes na criação de novas necessidades, novas demandas e novos interesses por parte dos trabalhadores e, portanto, como se locomover com formas de organização que realmente reconhecem essa mudança na dinâmica da luta de classes”.

Não há solução para a política de exteriorização se não aquela que investiga a questão do trabalho precário como ideal universal do neoliberalismo. A dimensão política da prática de nossos governantes é movida por uma dimensão econômica cínica – um político, disse ao Jornal Nacional desta quarta-feira, que foi uma “coincidência” a liberação de 2 milhões e meio de reais para emendas parlamentares. A análise da dimensão econômica política ampla, a análise do contexto de precarização de todo o trabalho existente levará a reflexão de novas formas de organização para servidores, sindicatos, atuação local, nacional. A descoberta da política de exteriorização na qual uma classe social vive do trabalho alienado transformado em precário é, no máximo, uma atualização do velho e bom Marx como o conhecemos: mas a verdade é que ninguém parou para estudar o problema das relações do capital com nossas instituições democráticas no sentido da reorganização dos trabalhadores públicos e privados frente ao avanço do capital. O processo é rico e complexo em mediações, formas de organizar o coletivo, mas é preciso em primeiro lugar, identificar as forças coletivas capitalistas que fazem com que decisões políticas ajam sobre maiorias indiferenciadas, pois é preciso, no meio da dor, encontrar as possibilidades concretas de reagir. Caso contrário, no futuro, todos seremos trabalhadores precários.

Exteriorização e precariedade são duas faces da mesma moeda. Qualquer discussão emancipatória, no exato instante em que estamos, terá de enfrentar a questão de até que ponto nossas instituições políticas estão a serviço da atual dinâmica capitalista. Isso exigirá uma abordagem que ultrapasse a abordagem dividida entre, de um lado, servidores públicos, e de outro lado, trabalhadores da iniciativa privada. Isto porque é preciso reconectar ambas categorias, fazendo-as reconhecer aquilo que as une, a vitimização de mulheres e crianças dentro deste regime de reprodução social. Como afirma Sassen, o que precisamos é um “ponto de inflexão”, um lugar a partir do qual mudanças mais amplas nas condições gerais de trabalhadores, sejam eles públicos ou privados, possam surgir para emergência de novas esperanças e possibilidades de emancipação do jugo capitalista que tomou posse do Congresso Nacional.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018, é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

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