Opinião
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16 de junho de 2019
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18:13

Para que Constituição se somos servos dos manuais? (por Ramiro Goulart)

Por
Sul 21
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Para que Constituição se somos servos dos manuais? (por Ramiro Goulart)
Para que Constituição se somos servos dos manuais? (por Ramiro Goulart)
Ramiro Goulart foi preso e algemado. (Reprodução/Youtube)

Ramiro Goulart (*)

Enquanto marco regulatório do Estado de Direito, a Constituição tem duas missões: dividir, limitar e conter o exercício do poder, e declarar os direitos e as garantias fundamentais. Ademais, são os seus princípios que orientam toda a legislação infraconstitucional – até mesmo os manuais. No caso concreto, é o princípio da proporcionalidade que deve garantir a adequada aplicação da lei ou mesmo a não aplicação – a exceção à regra – quando da sua aplicação advir uma injustiça. Tal princípio desdobra-se em necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito e, não pode – não deveria – ser sua aplicação suprimida por manuais de conduta. A saber, a Convenção Americana de Direitos Humanos aboliu o desacato. Ademais, o estatuto da ordem dos advogados prevê que no exercício profissional, o advogado tem sua conduta inviolável, e não pode ser preso e algemado senão por crime inafiançável, sendo que a utilização de algemas, atualmente, está restringida aos casos que fogem à súmula vinculante nº 11 do STF. Ante a total ausência de resistência e o fim da agressão, as algemas não podem ser empregadas.

De outra parte, a norma penal ou funciona como privilégio ou funciona como exceção. Ou ela se aplica aos detentores do poder, ou ela deixa de ser aplicada àqueles que dela mais precisam, os que vivem à margem, os necessitados, os hipossuficientes. Para estes, tudo justifica o arbítrio e a violência, tudo justifica o desrespeito à norma constitucional em prol do manual, ou mesmo em prol do exercício do poder. O poder desumaniza e o poder imbeciliza e para que isso não aconteça é necessário freá-lo, é necessário sopesar valores constitucionais e aplicar a força no mínimo necessário.

No dia 14 de junho de 2019, dia de greve geral que paralisou todo o país, dia de defesa da educação e protestos à reforma da presidência, a AJURD – Associação de Juristas pela Democracia – deslocou, desde a madrugada, mais de duas dezenas de advogados populares para atender a ocorrências policiais envolvendo barricadas nas garagens das empresas de ônibus de Porto Alegre, ocorrências estas que foram registradas todas na 2ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, em prédio localizado no Bairro Menino Deus. A atuação dos delegados de Polícia com atribuição no feito foi impecável. Das 8h30min, quando começaram as oitivas, às 16h30min, quando encerrou-se a última delas, pesem as dificuldades em decorrência do contingente de pessoal envolvido, tudo permanecia sob controle. Todos os 51 detidos foram liberados sem qualquer incidente digno de nota.

Mas, entre as manifestantes, havia duas que solicitaram exame de corpo de delito e, mesmo liberadas, determinou-se que elas fosse conduzidas pela Brigada Militar no cachorreiro do Camburão, sem qualquer negociação com os advogados que, por outro lado, disponibilizaram um veículo particular para leva-las, já que haviam sido liberadas. A despeito dos pedidos realizados pelos diversos profissionais, elas foram – por ordem de um Capitão – arbitrariamente empurradas para dentro de uma S10 e deslocadas para o DML. Naquele momento, passado das 17hs, e sem que muitos tivessem sequer almoçado, foi declinada pelos advogados presentes a realização do exame, que – ante o arbítrio – e, por uma questão de humanidade e respeito às liberdades, porque as detidas já não eram detidas e, porquanto poderiam ir quando, se e como quisessem realizar o exame, requerido a dispensa do exame. Entretanto, não foi possível qualquer argumento. Contra a opressão, o abuso de autoridade e a prevaricação, infelizmente, argumento não há.

Pouco antes, e em meio a uma turba de policiais, cercados por advogados, houve um momento de tensão em que o advogado Jorge Garcia, inconformado com a forma como se conduzia o encaminhamento das jovens ao DML, deu voz de prisão ao capitão responsável por abuso de autoridade, o que, logicamente, não foi cumprido, mas acirrou ainda mais os ânimos e, a partir do momento em a S10 arrancou cantando pneu, e sem a presença de um advogado, fui obrigado a reagir, e, bradando em frente à delegacia de polícia, distanciei-me cerca de 10 metros do batalhão de choque e proferi as seguintes palavras: “Isso é um absurdo, um desrespeito, uma violação às liberdades, ao estado democrático de direito, um abuso de autoridade, podem me filmar, quem é a autoridade responsável por este ato, quem determinou este arbítrio” e, incontido, no estrito exercício da profissão, quase em um ato de retorsão imediata em defesa de terceiros, bradei “cambada de cachorros” e, ao perceber que mais de vinte brigadianos se aproximavam rapidamente de mim, tendo alguns gritado “o que foi que tu disse, repete”.

Minha reação imediata foi o silêncio e as mãos postas atrás. Eu simplesmente percebi que seria preso, que havia me excedido e calei, imóvel, completamente entregue. Mesmo com os braços para trás, rendido, fui algemado, tive um dos braços torcidos e fui violentamente levado para o interior do prédio. Não mais era possível qualquer resistência, por isso somente o que eu disse é que era Conselheiro Estadual de Direitos Humanos, e isso a despeito das provocações por parte de alguns policiais.

Uma vez desalgemado e na sala onde ocorreram as oitivas, o escrivão cobrou dos policias declinassem a razão para tamanho arbítrio, ao que responderam apenas que “seguiram o manual” o que foi, pelo escrivão redarguido “e a lei? ”. Essa conduta, logicamente, deixou-me à vontade para dar as minhas explicações quando foi-me dada a palavra. Após as oitivas dos militares, ambas de acordo com a realidade fática, e após conversa em particular com meu advogado, Márcio Augusto Paixão, expliquei calmamente o ocorrido e sequer neguei que tivesse dito o que disse.

Dito isso, ficou evidenciado não somente a prática de abuso de autoridade, mas prevaricação, quando se determinou fossem as jovens conduzidas em camburão estando elas liberadas e, da minha parte, ante o abuso e o desrespeito, não pude me calar. Advogar não é para os covardes. Meu excesso está legitimado seja pela CADH, seja pelo Estatuto da OAB, ou mesmo pela Constituição. Não pode ser freado pela utilização de um manual. É importante, ao final deixar muito claro que a exceção no caso fere a própria advocacia e o Estado Democrático de Direito, não se limitando à conduta legal por parte deste advogado e, se assim as coisas manterem, com os manuais sendo mais importantes do que a Constituição, então rasguemos e queimemos a Constituição e fiquemos com os manuais.

(*) Advogado, integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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