Opinião
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17 de junho de 2019
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15:36

O Bará vai ao museu: Pó de pemba, poesia e performance (por Duan Kissonde)

Por
Sul 21
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Charlene Bicalho e Jéssica Porciúncula hastearam bandeira branca, com a frase: “Mate o branco dentro de você”, palavras de desordem anticolonial, (Foto: Pedro Ermida Cruz)

Duan Kissonde (*)

“Bará matou um pássaro ontem, com a pedra que atirou hoje.”
Ditado iorubá

Aconteceu em Porto Alegre, no último dia 8 de junho, no Museu de Artes do Rio Grande do Sul, a fala pública da performer mineira Charlene Bicalho, que foi uma das artistas residentes do Programa Público de Performance Península (PPPP). Nos dias que esteve aqui em Porto Alegre, Charlene Bicalho, foi arrebatada pela força das presenças negras que transitam pela nossa cidade, o centro histórico, principalmente. O mosaico de pedras irregulares do Bará do Mercado, a Igreja das Dores, a Esquina do Zaire, a Pegada Africana, o Tambor na praça Brigadeiro Sampaio e tantos outros lugares, não hegemônicos. O museu a céu aberto do percurso do negro, a cidade não oficial, aquilo que não está dado e que é preciso desvendar. Derivas submersas de um território repleto de chaves e correntes, talvez, um pouco daquilo que Leda Maria Martins, chama de Afrografias da memória.

E foi a a partir destas chaves, exusiácas, que Charlene Bicalho, conduziu sua fala (axé) , tão firmemente, diante do auditório lotado. Porém, antes disso, ainda do lado de fora do museu, ocorreu a primeira intervenção daquele dia. O prelúdio, a semiótica da rebelião, a subversão do sentidos. No mastro vazio, onde habitualmente, triunfa soberana a bandeira do Brasil, com seu bordão lacônico e positivista: “ORDEM E PROGRESSO”, Charlene Bicalho e Jéssica Porciúncula, também artista residente, hastearam uma bandeira branca, na qual estava escrita a seguinte frase, grafadas com letras pretas, cor de petróleo : “MATE O BRANCO DENTRO DE VOCÊ!”, palavras de desordem anticolonial, trabalho da artista Bruna Kury (frase de Lorenzo Komboa, anarquista, ex-membro dos Panteras Negras).

Bandeira hasteada, estava instalada a transnegressão (Arnaldo Xavier). Eis o primeiro golpe de capoeira no corpo todo duro da cultura peninsular, que não parou por aí, seguiu para o auditório do museu, local onde Charlene Bicalho, fez a sua fala e nos mostrou um pouco do seu trabalho, intitulado Gazua/Bará do Mercado de Porto Alegre(2019), vídeo-performance produzida durante a sua residência no PPPP. Com maestria de griot, Charlene Bicalho agradeceu a todos artistas negros, presentes naquele espaço, não sem antes perguntar ao público “ Por acaso, alguém , conhece os artistas negros e negras, dessa cidade, que estão aqui, presentes?”. Silêncio. Constrangimento, talvez. Indiferença de alguns. Olhares se cruzam, perdidos. Duas mãos brancas, erguem-se, timidamente, em sinal de positivo. O debate estava aberto, mas o silêncio persistia. O desconforto, a tensão dialética. Corpos negros, sem máscaras de ferro, falando e pensando a arte, os rumos e os muros da arte.

Mironga, mandinga e patuá, um punhado de pó de pemba, na mão de cada negro que ali estava, um verdadeiro percurso do negro no MARGS. (Foto: Pedro Ermida Cruz)

O lugar do negro na arte, o ser e conceito eurocêntrico de performance, uma problematização da espetacularização narcísica, e ao mesmo tempo, a negaça com o espaço privilegiado que os museu e galerias, ocupam na manutenção desse sistema colonial. Charlene Bicalho, ralava a pemba no ralador, enquanto falava o que queria falar. Tranquila sabedoria das iabás. Ela não maquinava, por que não é máquina, e sim corpobra. E assim arquitetava a sua próxima intervenção, enquanto, o TOC, racista, alucinado, pela limpeza e pela brancura, queria manter o museu limpo, o mais limpo possível, um brinco da brancura, mantido por mãos negras. As palmas ritmadas de Charlene Bicalho, ecoavam pelo auditório, numa espécie de encantamento ancestral (sagradosegredo), ondas sonoras que conversavam intimamente com aquilo que o filósofo Renato Noguera, chamou de “cosmosensação”. Pois, não basta só ver, sentir também é umas das chaves.

Pó de pemba, poesia e performance, estava acontecendo. Primeiro, na mesa do auditório, composta, apenas por pessoas negras (raridade na história do museu). Estavam lá, a artista Renata Sampaio, o curador Igor Simões, a curadora Izis Abreu, o ator André de Jesus, a própria Charlene Bicalho e eu. Viramos a mesa, ou melhor, compomos.

Encerrada a nossa fala, partimos para a intervenção, eu disse nós, porque todas as pessoas negras, que estavam presentes, participaram, ativamente, daquele assentamento. Mironga, mandinga e patuá, um punhado de pó de pemba, na mão de cada negro que ali estava, um verdadeiro percurso do negro no Museu de Artes do Rio Grande do Sul. “Do pó se faz cipó” [¹], o sopro vital em cada fechadura, das portas, que sempre nos fecharam, e ainda tentam fechar. Em cada pemba, soprada, magia assentada, o poder do simbólico, momento de poder, a poemística.

Rumo a rua, rumo ao último rito, um sopro coletivo sobre a Fuga [²], e Charlene, se foi pelo ar, junto com a pemba, sumindo pelas ruas da cidade, de mãos dadas com o dono da rua, pesados demais para a ventania (Ricardo Aleixo). Se eu pudesse exprimir esta experiência em uma única palavra, eu escreveria, gazua [³]. Mas me enfezei em escrever mais, porque, acho que um momento tão marcante como este, não pode ficar, apenas na memória de cada um que vivenciou aquele momento, e nem só no campo da oralidade (que para nós é tão importante). Também, precisava ser registrado historicamente em texto, aqui e agora, hoje, urgentemente. Pois já dizia o antropófago, Oswald de Andrade “ quem conta com a posteridade, é como quem conta com a polícia”. E de posteridade e polícia, já estamos cansados. Alupô, Bará!

Notas

[¹] “Do pó se faz cipó” , título de um poema meu, em alusão ao pó de pemba( Pemba, giz em forma esférica,usado ritualmente em cultos de matriz africana) e nome da intervenção realizada no dia 08/06/ 19, no MARGS durante a residência da artista Charlene Bicalho no PPPP ( Programa Público de Performance Península).

[²] Escultura, obra da artista Miriam Obino, Trata-se, de uma figura antropomórfica feminina, de formas voluptuosas, fora do padrões de beleza vigentes na nossa sociedade, esta figura projeta-se para a frente, com um objeto nos braços, como se estivesse correndo, em direção a entrada do museu. É a única obra externa do acervo do MARGS.

[³] Desdobramento do conceito Gazzua elaborado pelo artista Vermelho (MG) que um dia foi Rafael Ribeiro. Gazua ou chave-mestra, é o termo usado para referir-se a uma ferramenta qualquer, que tenha por função fazer funcionar fechaduras e (ou) cadeados. Por ser instrumento usualmente empregado na prática do crime de furto, a sua fabricação, cedência e venda são proibidas no Brasil, com pena de prisão simples de dois meses a um ano, além de multa. Na época do Brasil Império era proibido até mesmo portar uma, sob pena de prisão.

(*) Duan Kissonde é poeta. Estudante de História pela UFRGS, bolsista de IC, pesquisa as territorialidades negras em Porto Alegre. Já publicou poemas nas seguintes antologias Pretessência (2017), Antologia Literária Jovem Afro (2017), Cadernos Negros 41 (2018), o seu livro de estréia Água de meninos, será lançado em setembro.

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