Opinião
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14 de junho de 2019
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14:29

Exceção contra o Estado de Direito (por Ricardo Zamora)

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Sul 21
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Exceção contra o Estado de Direito (por Ricardo Zamora)
Exceção contra o Estado de Direito (por Ricardo Zamora)
Reprodução
Carl Schmitt, o “jurista coroado” do Terceiro Reich. (Reprodução)

Ricardo Zamora (*)

“Soberano é aquele que decide sobre a exceção”
Carl Schmitt

São bastante conhecidas nos meios jurídicos as teorias de Carl Schmitt, também chamado “jurista coroado” do Terceiro Reich , como formulações que ofereceram o substrato jurídico e político para a ascensão de Hitler ao poder e o seu posterior domínio total sobre a Alemanha. Para Schmitt a ordem jurídica não deveria repousar na Constituição e nas leis, mas na decisão tomada pelo soberano.

O esquema teórico schmittiano é também, e principalmente, um discurso legitimador do rompimento da legalidade constitucional e democrática com um objetivo salvacionista. O soberano age na crise, uma crise que ameaça a nação, que põe em perigo os interesses do povo, de modo que se requer uma ação extraordinária, excepcional, por parte daquele que encarna a vontade majoritária.

No caso da Alemanha na década de 30, que vivia forte crise econômica e instabilidade política, o inimigo era o Tratado de Versalhes, que havia imposto pesadas indenizações ao país e a perda de vários territórios importantes.

No discurso dos nazistas a culpa por esta situação de fragilidade era da democracia parlamentar, responsável principal pelo enfraquecimento da Alemanha e o sentimento de humilhação de seu povo.

Nesta perspectiva, a ação excepcional é aquela fundada na decisão do soberano, à margem da constituição e das leis, para remover os inimigos da nação. Na época, o soberano de então (Hitler) destruiu a democracia, fomentou a guerra e concebeu um dos crimes mais bárbaros de toda a história da humanidade: o holocausto.

Joaquim Carlos Salgado resume com clareza: “em sua obra Teologia política, de 1922, Carl Schmitt, postula o anátema de que “soberano é aquele que decide sobre a exceção”, isto é, trata-se daquele que pode suspender a ordem jurídica posta como um todo, ou mesmo parcialmente, em um caso concreto, materializando a vontade e os valores do povo: sua vontade concreta e imediata, na forma de decisão, altera o que está colocado, de acordo com as circunstâncias avaliadas por ele, em nome da segurança pública, da ordem e de outros fatores de salvação nacional”

Não é preciso maiores esforços interpretativos para identificar o esquema teórico de Carl Schmitt na ação política da chamada operação Lava-jato, bem como no discurso político dos partidos e personagens da direita e da extrema direita brasileira.

A partir de ações cinematográficas protagonizadas pela equipe de procuradores de Curitiba, pelo então juiz Moro e pela Polícia Federal, com ampla cobertura da mídia nacional e entusiasta adesão dos políticos de direita – entre os quais grande número de corruptos notórios, criou-se um clima de salvação nacional. As operações policiais – que por definição jurídica devem evitar ao máximo a exposição de pessoas – eram espetáculos midiáticos. Vazamentos seletivos, conduções e prisões ilegais foram criando condenados antes mesmo que as ações fossem propostas.

A exceção, que é a supressão da proteção legal de um indivíduo ou grupo de indivíduos por decisão do soberano, é uma escalada. O clima de comoção e urgência políticas vai criando as condições para que as arbitrariedades se sucedam e comecem a ser naturalizadas, afinal, o que está em jogo é a salvação do país. A sociedade passa a conviver com os atropelos ao Estado de Direito como fatos normais.

Quando o jornal The Intercept Brasil publicou as primeiras matérias com os diálogos entre os procuradores da lava-jato e destes com o então juiz Moro, trouxe apenas provas cabais e irrefutáveis daquilo que já estava mais do que evidente: a força-tarefa havia se transformado numa máquina de exceção contra o Estado de Direito, uma verdadeira organização criminosa empenhada em atentar contra o direito para condenar e banir da vida política do país os seus adversários, com especial destaque para o ex-presidente Lula.

Em um dos primeiros diálogos divulgados pode-se ler Procuradores da República, que tem o dever da “defesa da ordem jurídica” e do “regime democrático” (Art. 127 da CF) sugerindo maneiras de descumprir uma decisão de juiz competente, em clara defesa do crime de prevaricação (art. 319 CP). No caso, o diálogo revela a intenção de descumprir decisão de ministro do STF que havia autorizado entrevista do ex-presidente Lula ao jornal Folha de São Paulo, porque a entrevista poderia favorecer Fernando Haddad. As sugestões eram claramente no sentido de desvirtuar a decisão, transformando a entrevista numa coletiva para causar “confusão” ou simplesmente orientar a Polícia Federal a agendar a entrevista “pra dps das eleições”. Curiosamente, quando ao fim e ao cabo, após as eleições, a entrevista foi autorizada, o delegado da Polícia Federal teve a mesma ideia: transforma-la numa entrevista coletiva.

Mas o mais estarrecedor, grave e criminoso, foram as sucessivas conversas entre o então juiz Moro e o Procurador Dallagnol. Não se trata de um mero despacho entre Procurador e Juiz, onde poderia haver eventualmente algum deslize, algum excesso. Longe disso. Trata-se de uma ação sistemática, racionalmente pensada e estruturada, ao longo de meses, para combinar iniciativas entre o juiz e a acusação para, primeiro, condenar sem provas o ex-presidente Lula (os diálogos deixam claro que ambos sabiam que não havia provas) e, depois, garantir um regime de exceção na execução da pena. O juiz claramente orienta o órgão acusador, este, por sua vez, faz consultas sobre iniciativas que pretende tomar, recebe conselhos e orientações. O juiz orienta a preparação de testemunhas: “…desculpa dizer isso, mas com discrição, tente dar uns conselhos a ela, para o próprio bem dela. Um treinamento faria bem”.

Um dos pilares fundamentais da Democracia e do Estado de Direito é o princípio do Juiz Natural. O Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, assegura que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” (XXXVII, do art. 5º); e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (LIII, do art. 5º). Quando a Constituição garante o julgamento por autoridade competente o que, na verdade, está garantido é o direito de ser julgado por um juiz competente, segundo regras de definição anteriores aos fatos em julgamento e, mais importante, ser julgado por um juiz neutro. Esta garantia fundamental foi claramente negada ao ex-presidente Lula e tantos outros réus.

Mas a exceção é uma escalada. Embora seja óbvia a prática criminosa revelada pelas gravações, setores da mídia, o governo, os militares e, pasmem, grupos de juízes e procuradores, vem emprestando ares de legitimidade para as conversas criminosas entre um juiz e procuradores. Não que as pessoas estejam dispostas a aceitar como natural combinações entre juiz e uma das partes dos processos. É que estes setores da sociedade brasileira cumprem o papel de normalizar a exceção, vale dizer, legitimar a perseguição e normalizar a prática criminosa contra os inimigos do soberano.

A apresentação de provas irrefutáveis, no entanto, impõe o restabelecimento da legalidade, sob pena de a exceção produzir fissuras nas instituições que nos levem para uma crise política aberta. A Lava Jato, este soberano contemporâneo, não pode estar acima da Lei.

(*) Ricardo Zamora é advogado, ex-Conselheiro da OABRS, mestre em direito pela Unisinos.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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