Opinião
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17 de junho de 2019
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12:49

Entre noites, greves e poemas (por Ricardo Almeida)

Por
Sul 21
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Entre noites, greves e poemas (por Ricardo Almeida)
Entre noites, greves e poemas (por Ricardo Almeida)
Foto: Luiza Castro/Sul21

Ricardo Almeida (*)

Paulo Leminski estava certo ao poetizar que “en la lucha de clases, todas las armas son buenas: noches, piedras y poemas”… A luta, as noites e os poemas são parceiros para iluminar a mente e, consequentemente, as nossas relações políticas, sociais, profissionais e espirituais. Embora, atualmente, a nossa vida esteja muito dependente das novas tecnologias, caracterizada pelo compartilhamento e o consumo ininterrupto de informações, pela proliferação de pessoas céticas, dispersas e solitárias, pelo esvaziamento das nossas organizações de base, pelo aparelhamento das mesmas por pequenos grupos políticos, estamos retomando as ruas, as manifestações artístico-culturais e construindo novas organizações plurais, democráticas e populares.

Reconhecer esse contexto é importante para poder agir com consciência e sensibilidade histórica, seja para celebrar os pequenos avanços obtidos, como para questionar os equívocos praticados, como foi o caso de não refletir sobre as mudanças estruturais e culturais que ocorreram na sociedade brasileira nas últimas décadas e focar a atuação política apenas nos governos, nos partidos políticos e/ou nos gabinetes parlamentares. Antes de tudo é preciso lembrar que, no Brasil, a maioria das organizações de esquerda surgiu a partir das grandes mobilizações dos pequenos agricultores, dos camponeses, dos operários, dos estudantes, dos artistas e de diversas categorias profissionais. As que ocorreram no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, por exemplo, vieram junto com canções que provocaram profundas mudanças culturais e políticas nos indivíduos e nas comunidades. Quem recordar isso, seja por experiência própria ou pelos relatos, também vai lembrar que as mobilizações, as greves e as manifestações artísticas surgiram exatamente como agora, quando os trabalhadores, os estudantes e os artistas viram os seus direitos ameaçados.

Aquelas mobilizações políticas e culturais mudaram definitivamente a consciência de uma pequena parte do povo brasileiro e acabaram se transformando em símbolos da resistência política contra os governos e a sociedade conservadora. Era um período de entrada massiva de capital estrangeiro e de extrema industrialização do país, em que os regimes militares e civis priorizavam as exportações ao invés da melhoria das condições de vida do povo. As fábricas e bancos já estavam adotando novas tecnologias, e o número de trabalhadores empregados se tornava cada vez menor. No setor do agronegócio exportador não foi diferente, com a introdução de máquinas e mais máquinas no campo, muita gente passou a peregrinar pelas estradas e pelas ruas em busca de trabalho, formando um grande exército de reserva e de mão-de-obra barata.

Não é por acaso que a Constituição de 1988 se tornou a principal referência dos acúmulos e conquistas obtidos pelos movimentos sociais nas áreas do trabalho, dos direitos civis e humanos. Mas, foi somente a partir dos governos Lula, em 2003, e Dilma, em 2011, que aquelas conquistas constitucionais foram traduzidas em políticas públicas, com a criação e implementação de diversos planos e programas sociais. No entanto, apesar de termos vivido um período de pleno emprego, de bonança e de eliminação da pobreza extrema etc., a cultura política da maioria do povo brasileiro permaneceu focada apenas no consumo.

Foi a partir de 2008 e, principalmente, de 2013, com a nova crise econômica que assolou o mundo, que diversos empresários nacionais e internacionais, aproveitando alguns vacilos do governo Dilma e o desespero de pessoas despolitizadas, resolveram patrocinar um golpe midiático-jurídico-parlamentar, com a clara intenção de baixar ainda mais o valor dos salários e eliminar os direitos sociais conquistados durante longos anos de lutas. Novamente os trabalhadores, os estudantes e os artistas foram chamados para retomar as suas organizações de base e surgiram novos tipos de organizações, que resultaram em grandes manifestações, como as #CaravanaLula, o #EleNão, a campanha #HaddadManu, o @8M, o #15M, o #FestivalLulaLivre, o #30M e a #GreveGeral do dia 14 de junho. O propósito é defender os direitos ameaçados e não permitir que o país volte àquela noite escura, em que não havia liberdade de expressão e o povo vivia na carestia ou numa situação de extrema pobreza.

A indignação começou a se manifestar em pequenos grupos e protestos dispersos, mas depois foi crescendo, juntando forças políticas, até chegar às grandes manifestações, como foi a #GreveGeral do dia 14 junho de 2019.

Esse processo paciencioso permitiu que os trabalhadores, os estudantes e os artistas adquirissem uma nova cultura política, ao reivindicarem questões específicas, como a liberdade de cátedra, a defesa da previdência e a educação pública, unificaram diferentes forças políticas e estão superando aquele período de disputas mesquinhas e de dispersão de esforços que existia até recentemente. Ao denunciar as conspirações de empresários e de governos estrangeiros aqui no Brasil, a defesa da soberania nacional, que era uma pauta mal apropriada pela direita conservadora, também começou a aparecer no seio dessas manifestações.

Isso prova que as manifestações e as greves, junto com as canções e os poemas, ensinam os trabalhadores, os estudantes e os artistas a identificar onde repousam as suas forças e as dos seus inimigos políticos. Revela quem está contra os seus direitos e quem está mais próximo, para propor um diálogo fraterno e organizar a resistência. Por meio dessas experiências práticas, as mentiras vão sendo desconstruídas e revelam quem são os lobos que se vestem com togas de cordeiros.

As mobilizações, junto com a poesia, serão sempre um tipo de “escola política” em que as pessoas aprendem ao participar, abrindo as suas mentes não somente em relação às suas questões individuais, mas principalmente no que se refere ao papel dos coletivos, da política pública, dos governos, do parlamento, do judiciário e da grande mídia. No entanto, é importante destacar que elas são apenas alguns dos meios da luta de classes no meio dessa noite escura, e que existem outras formas de luta que podem e devem ser levadas em conta, como as disputas parlamentares, jurídicas e as que ocorrem na área da comunicação de massas. Se a Rede Globo, a Shell, a Havan, as lojas Marisa, a Riachuelo, algumas seitas neopentecostais, por exemplo, ficaram do lado do golpe jurídico-midiático-parlamentar, os democratas, os socialistas, os comunistas, os anarquistas e os progressistas, junto aos movimentos populares, amplificaram as suas vozes por meio do Intercept e dos diversos canais e veículos digitais que surgiram.

Estamos no meio de uma guerra de informações de proporções internacionais que ainda não foi suficientemente compreendida pelos brasileiros. Se, por um lado, alguns formadores de opinião raciocinam como se ainda estivéssemos utilizando apenas as mídias tradicionais (rádio, televisão e jornal), por outro, ainda não foram formuladas as novas estratégias que aproximem o digital do presencial, e vice-versa, que esclareçam a distinção entre uma rede social orgânica de uma ferramenta digital, de um canal e de um veículo digital, que considerem a espionagem digital etc. Por isso, o desafio passa pela formação política, mas também pela criação de redes orgânicas de comunicação, pelo uso adequado dessas novas mídias, sem ignorar as demais, e fundamentalmente pela organização de espaços democráticos digitais e presenciais de participação.

O Festival Lula Livre, realizado em São Paulo, por exemplo, foi visto em tempo real por milhões de pessoas em função das ferramentas, mídias e veículos digitais. Este tipo de ação presencial-digital-cultural pode e dever ser multiplicada, pois é preciso trazer de volta as músicas, os poemas e as metáforas com as suas rebeldias e sutilezas. Junto com as novas linguagens, recheadas de força, de histórias sobre o cotidiano e de subjetividades, darão um novo sentido para a nossa vida. Certas canções chegam por meio dos nossos computadores e celulares, e servem como uma senha para o engajamento cultural e, consequentemente, político.

Se partirmos do princípio de que este projeto autoritário, conservador e entreguista não tinha como dar certo neste mundo globalizado e interdependente, com as provas incontestáveis que revelaram a conspiração de Moro, Dallagnol, Fux e de outros atores que ainda não foram identificados, acabou ficando muito pior para eles. No entanto, o poder real ainda está sendo disputado por quem está organizado nos estados e nos municípios. Por isso, é hora de arregaçar a mangas e utilizar a máxima sabedoria, inteligência e criatividade possível, pois a experiência de construção de um “frente política” ainda é muito recente no Brasil. Ainda precisamos reconhecer e valorizar a autonomia dos movimentos sociais para construir novas “retaguardas” e deixar de alimentar o “culto às personalidades” ou a ilusão de que existe “Salvadores da Pátria”. Isso, por si só, já será um grande ato revolucionário que poderá nos livrar de futuras desilusões e/ou surpresas desagradáveis.

As experiências ensinam e, como já existem diversos movimentos autônomos de trabalhadores urbanos e rurais, de artistas, de estudantes, de coletivos feministas e LGBTs, dos povos indígenas e afrodescendentes que estão dando respostas ao desmonte da previdência pública, à ocupação e uso do solo, à demarcação das terras indígenas e quilombolas, ao déficit habitacional, à liberdade de cátedra etc, além do imprescindível combate aos diferentes tipos de discriminação: religiosa, de gênero, étnica, artística etc, dá pra sentir que as greves e os poemas estão voltando a disputar a hegemonia política e cultural do país e ampliando o leque de forças libertárias. Este é um claro sinal de que as noites poderão voltar a servir apenas para sonhar e que pode estar amanhecendo um novo dia. Adelante!

(*) Consultor em Gestão Projetos TIC

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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