Opinião
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9 de maio de 2019
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18:23

Uma cidade à venda (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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Uma cidade à venda (por Jorge Barcellos)
Uma cidade à venda (por Jorge Barcellos)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Jorge Barcellos (*)

O resultado da pesquisa anunciada por Sul21 que diz que quase 90% dos porto-alegrenses não têm “nenhuma chance” de votar no atual prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) em uma eventual candidatura à reeleição em 2020 é um alívio para a esquerda, mas não significa que ela deve baixar a guarda. Realizada pelo Instituto Methodus e pela Foca Comunicação com 800 residentes de Porto Alegre entre os dias 10 e 16 de abril, Marchezan recebeu um sonoro não de 87,5% dos entrevistados, contra 9,5% que disseram que tinham chance média, 2% que tinham muita chance e 1% disseram não saber.

Por que o Prefeito conquistou esta posição? Para mim, são dois os motivos principais da rejeição. O primeiro é que o cidadão percebeu que o Prefeito pouco fez pela cidade, ao contrário, tratou de colocar quase tudo em Porto Alegre à venda. É que para os administradores de plantão, os valores de mercado devem governar nossa vida, política perversa porque esta regra não impera apenas na vida econômica, mas também na vida social. A capital vive seu triunfalismo de mercado nas reuniões dos governantes com empresários, na crença que afirma que o mercado é a fonte de prosperidade para cidade e meio do cidadão para chegar ao bem público. Mentira: foi o mercado que nos trouxe a crise econômica porque ele é incapaz de gerir seus riscos e o principal, diz o filósofo Michel Sandel, ele nos coloca num universo que propõe que é possível desvincular-se das questões morais. O motivo dessa falha não é apenas a ganância de empresários, banqueiros, financistas e autoridades políticas, mas a ideia de que o dinheiro é a solução para tudo e que resolve todos os problemas. Errado: há coisas que não podem ser monetarizadas, você não pode impor rotinas de fábrica às escolas, não pode privatizar o espaço público, não pode terceirizar tudo à custa da qualidade e não pode retirar direitos. Não pode e ponto.

Ao colocar a cidade à venda se dificulta a vida dos pobres e se privilegia os ricos no acesso aos bens de qualidade. O mercado corrompe e promove atitudes morais indesejáveis, deixa sua marca no homem e ela não é boa porque descarta princípios que devem ser respeitados, sobrepõe o individualismo à solidariedade e reduz tudo a mercadoria, algo ultrajante em se tratando de seres e valores humanos e bens públicos pois passa por cima do respeito e do tratamento digno. É o que ocorre quando colocamos os direitos sobre o universo público à venda: vender o acesso à praças, parques, alturas de prédios e portos é um mal porque você não pode dizer quem tem o direito de ver o por- do-sol. Há coisas que precisam serem colocadas à distância do mercado, se não ele as mata. Nem tudo pode ser reduzido ao econômico, há a esfera da moral e da política, temos de saber atribuir valor aos bens públicos pois quando a economia de mercado vira sociedade de mercado você mata o social, mata o ético e o moral, porque você não pode reduzir relações sociais à imagem monetária.

O segundo motivo é a certeza de que a economização neoliberal, transformação de todos os domínios da vida pelas regras do mundo econômico é uma falácia. Ver a pessoa não mais como pessoa, mas como capital humano, partícula do capital, faz com que o sujeito veja a si mesmo como uma empresa. A ela soma-se a economização do Estado que transforma a democracia quando passa a reger-se por regras econômicas: a liberdade do cidadão é reduzida ao direito ao empreendedorismo mas o problema é que o capital humano para si é diferente do capital humano para a empresa e voilá, eis o discurso de sacrifício moralizador do cidadão, de que todos devem de alguma forma contribuir com o aumento do IPTU, a promoção do trabalho duro para terceirizados, liberação da proteção social que resulta na exploração ao extremo de trabalhadores, servidores públicos, efeito do modelo gerencial baseada na ausência de um discurso de justiça e igualdade.

É só pensar em Claudemir da Silva Pinheiro, cobrador que trabalha há mais de 20 anos nos coletivos de Porto Alegre. Recentemente Pinheiro viveu uma situação inusitada: ajudou a vir ao mundo um bebê nos bancos de um ônibus da capital, na Avenida Ipiranga, Zona Leste da Capital, às 21h55min “Já atendi pessoas tendo infartos, ataques cardíacos e até baleados, mas algo semelhante a isso nunca tinha vivido”. Pinheiro fez exatamente aquilo que precisava, na hora certa, sem retirar o motorista de sua função: orientou o esvaziamento do coletivo, disponibilizou-se para ajudar no parto, o que incluiu, inclusive, dispor de suas vestimentas: “Na hora não tinha outro plano, era só tirar a camisa, porque o bebê nasceu no momento”. Ele sabia o que fazer após o parto, o que verificar, os cuidados com a hipotermia, etc. “A gente fica emocionado, é uma experiência única, ou quem sabe não seja a única, não é? ”

No universo do Prefeito, cenas assim não vão se repetir. Para garantir os lucros das empresas, está em tramitação o PLE 15/2017, que extingue a função de cobrador nos ônibus. Na economização neoliberal não tem lugar proteger o nascimento de uma criança e disponibilizar o cobrador no ônibus, importa garantir o aumento dos lucros dos empresários. Ora, proposta do projeto de extinção gradual é extinção e no futuro, as crianças que venham a nascer no ônibus não terão o apoio de cobradores.

A economização neoliberal despreza qualquer ética do cuidado, como no caso da função do cobrador que existe para cuidar do passageiro que habita o ônibus. Para o capital, uma função que pode ser substituído por uma máquina. Mentira: nunca se tratou apenas de “dar o troco”, mas uma forma de sociabilidade semelhante as artes do fazer de que falam Michel de Certeau e Richard Sennet.

Quando a população rejeita a reeleição de Marchezan, ela está afirmando que é contraria ao capital que é indiferente às pessoas, que acredita que nem tudo é economia. O fracasso de Marchezan na pesquisa deve-se ao fato de encarnar o modelo capitalista para quem o neoliberalismo é esse novo Deus, onipresente e onisciente, entidade que desmantela tudo, desregulamenta tudo e que vive pela ascensão de uma nova razão normativa. Diz Michel Sandel que a afixação de logotipos corporativos nas coisas muda seu significado porque o merchandising compromete a integridade dos espaços públicos, corrompe a relação do cidadão com praças, mina os objetivos educacionais da escola, etc. Não é exatamente isto que está por detrás da possibilidade de uso dos espaços públicos por empresas privadas defendido pelo Prefeito? A cidade revela que recusa a ideia de que o mercado pode invadir a vida familiar, a natureza, a maneira como encaramos o mundo. A grande questão é justamente esta: o mercado tende a invadir tudo, mas aonde o mercado não deve estar?

Para mim, o candidato que responder esta questão tem mais chances de ganhar as eleições. É preciso voltar a defender as convicções morais e espirituais como superiores a alienação proposta pelo capital, quer dizer, o candidato que assumir um discurso público esvaziado do ideal de mercado terá mais chances porque é preciso ser verdadeiro, é preciso definir em que tipo de sociedade desejamos viver. Cabe a esquerda protagonizar a luta contra os projetos que anseiam por mais mercado, mais marketing municipal ou estadual, que se apropriam do bem comum em nome do mercado, manifestar-se com veemência contra os projetos que encolhem o caráter público das coisas e que por isso causam danos imensos a cultura e a sociedade. Devemos lutar para que as pessoas ricas e as pobres não fiquem cada vez mais distante entre si pois isto não é bom para a democracia e nem a melhor forma de levar a vida.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018, é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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