Opinião
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22 de maio de 2019
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12:03

O perigo das universidades públicas (por Coletivo Acadêmico)

Por
Sul 21
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O perigo das universidades públicas (por Coletivo Acadêmico)
O perigo das universidades públicas (por Coletivo Acadêmico)
Ato unificado reuniu milhares em Porto Alegre contra os corte na educação. Fotos: Carol Ferraz/Sul21

Coletivo Acadêmico (*)

Encontramo-nos em um cenário no qual as investidas de desmonte do atual governo conduziram a Universidade Pública brasileira a uma nova centralidade. Assim como fez Rita Segato [2] em relação ao multiculturalismo – reconhecendo que talvez ele tenha sido mais potente do que imaginávamos, desde nossas perspectivas críticas -, talvez seja o momento de assumirmos que a Universidade pública, repovoada pela diferença, possa mais do que nosso enfrentamento crítico das cumplicidades coloniais que ela ainda mantém, tenha nos permitido admitir até aqui. Em uma tentativa de desqualificá-la, retirar sua legitimidade, as denúncias que tomam a Universidade Pública como lugar de “balbúrdia”, de trânsito de “sem-terra” e “gente pelada”, apresentam-nos um espelho que nos demoramos a encarar com seriedade. Nele, está refletida a imagem de uma Universidade perigosa, subversiva, justamente por estar-se tornando mais popular e acolhedora a novos públicos, lugar de gestação de novos desejos, de desacomodação capaz de instigar-nos a construir novos modos de estar no mundo, fora da matriz neoliberal.

Nesse sentido, a preocupação desse ensaio foi de reunir indícios que nos permitam sondar o que há de insuportável nessa Universidade Pública em plena transformação, a ponto de convertê-la em alvo privilegiado do desmonte operado pelo novo governo. Nossa aposta de partida é de que a resposta envolve o modo como a Universidade Pública vem se posicionando no cruzamento potente entre um legado iluminista, que aposta no conhecimento como potencializador da vida humana e um projeto popular, com vistas à intensificação democrática da Universidade e sua afirmação como espaço e bem público.

Nos últimos quinze anos, viu-se o resultado da intensificação de políticas públicas afirmativas, entre elas a adoção de cotas raciais para ingresso no Ensino Superior, uma reivindicação histórica do movimento negro. De acordo com dados divulgados pelo IBGE, de 2009 a 2016 a proporção de matrículas por cotas no ensino superior público cresceu 3,5 vezes, passando de 1,5% para 5,2% fazendo da rede pública a principal responsável pelo aumento de matrículas que adotaram critérios de democratização do acesso ao ensino superior previstos no Plano Nacional de Educação [3]. Destaca-se, também o surgimento de novas instituições universitárias, atendendo demandas locais e promovendo integrações solidárias na América Latina, como a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), e acionadas pela luta e mobilização de movimentos sociais, como a experiência da Universidade da Fronteira Sul (UFFS), organizações de pesquisa, docentes, discentes e gestão comprometidos com a ideia da Educação Superior como bem público. Os investimentos públicos neste período possibilitaram a implantação de diversos programas de inclusão como o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) que ampliou significativamente o número de vagas e de cursos (inclusive noturnos), e possibilitou a criação de 18 novas universidades federais e 173 campi universitários, possibilitando um aumento de 7,3 milhões de matrículas entre 2003 a 2014 [4]. Muitas destas universidades foram criadas em regiões empobrecidas do Brasil, até então desassistidas de educação superior pública.

Além da ampliação do acesso, dados recentemente divulgados indicam que as universidades públicas, juntamente com fundações e institutos públicos de pesquisa são responsáveis por 95% da totalidade da produção científica no Brasil [5]. Esta pesquisa científica impulsiona o desenvolvimento nos mais diferentes domínios e se constitui em uma das grandes contribuições à sociedade. É justamente na contramão dos ataques recebidos que se encontra a universidade pública da ciência, responsável pela grande maioria das pesquisas de ponta nas diferentes áreas; a universidade da arte e da cultura, valorizadas como vetores de humanização e sensibilidade. Se mesmo este modelo de Universidade, com raízes Humboldtianas, iluministas [6], necessita ser defendido em seu legado, o que dizer do projeto em formação, que há pouco nasceu, carregando sonhos e esperanças de intensificação democrática?

Mesmo cientes de todos os limites desse processo, é possível afirmar que essa Universidade fortaleceu-se enquanto espaço público, lugar de exercício da Política como a concebia a filósofa judia Hannah Arendt [7]: como encontro entre diferentes que, reunidos para dar conta do mundo em que vivem, com coragem e em liberdade, tornam-se capazes de interromper processos espúrios e acionar novos caminhos. Espaço público que se fortalece como espaço da pluralidade, com crescente legitimidade para tensionar o instituído e ativar novas possibilidades do fazer político, capazes de reinventar o mundo no horizonte de um porvir inédito: pós-capitalista, construído com a contribuição de vozes, vidas, culturas e conhecimentos calados, subjugados, violentados, usurpados pelos poderes patriarcais, escravagistas, colonialistas, presentes na história do Brasil[8].

No limite, é a Universidade Pública como lugar dessas novas alianças – mais populares, mais democráticas, contra-hegemônicas – e a potência de sua novidade em um país organizado para sustentar e reproduzir suas elites, que está sob ataque. A partir dos estudos de Silvia Federici [9], que revisita a transição do período medieval para o capitalismo, pode-se sondar o quanto a caça às bruxas, a demonização dos povos colonizados e sua condenação à fogueira, à forca, ao aniquilamento, foram utilizados como estratégia de paralisação, desmobilização dos corpos “rebeldes”. Neste sentido, fica patente o papel do terror, da intimidação, como mediadores políticos aptos a criar condições para a despotencialização da rebeldia em sua capacidade de produzir o novo. A violência dos ataques, as ameaças de cortes e interrupções de bolsas, perseguições e desqualificação da comunidade universitária por meio da exposição orquestrada e reproduzida por meio de memes em redes sociais atuam como vetores de desativação, de paralisação de corpos e espíritos pelo medo e pelo adoecimento. Fomenta-se, desse modo, ambientes nos quais, a produção do conhecimento e a formação humana são desconstituídos nas suas mais vigorosas possibilidades, desconectados o do compromisso com um mundo mais fraterno, justo e solidário aqui e agora.

No último dia 15 de maio foi possível observar os frutos da resistência daquelas e daqueles que historicamente lutaram pela educação pública, gratuita e de qualidade no Brasil, e de um conjunto importante da população que acabou somando-se a essa luta, encontrando na grande reunião pública a possibilidade de erguer, em uníssono, vozes antes caladas e/ou estarrecidas pelo medo. O modo como, nesse encontro, combinaram-se clamores por uma vida de mais belezas e justiça e a defesa da universidade da pesquisa, do ensino, da extensão, também nos oferece a possibilidade de pensar a universidade pública como espaço de construção de cultura, de arte, de vínculos, de encontros, de limites e de desejos de transpô-los. O perigo da Universidade – parecem dizer-nos esses indícios recolhidos – é ter começado a combinar, nesses últimos anos, a legitimidade de seus títulos com mais proximidade da vida, tornando-se mais amiga de suas múltiplas possibilidades de acontecer.

(*) Coletivo acadêmico vinculado ao Projeto “Universidade, Formação Política e Bem Viver: Estudo dos Projetos de Universidades Emergentes no Brasil” da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Notas

[1] O coletivo é formado por Camila Tomazzoni Marcarini, doutoranda junto ao PPGEdu-UFRGS e Mestra em Educação pela mesma Universidade; Claudete Lampert Gruginskie, doutoranda junto ao PPGEdu-UFRGS e Mestra em Educação pela mesma Universidade; Maria Elly Herz Genro, Professora da Faculdade de Educação da UFRGS, com Pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, sob orientação de Boaventura de Sousa Santos, Doutora e Mestra em Educação, respectivamente pela UFRGS e PUC-RS; Pâmela Marconatto Marques, pós-doutoranda junto ao PPGS-UFRGS, Doutora em Sociologia e Mestra em Educação pela mesma Universidade; Renata Castro Gusmão, doutoranda no PPGEdu-UFRGS, Mestra em Saúde Coletiva pela mesma Universidade.

[2] SEGATO, Rita. Manifesto em quatro temas. Critical Times, Volume 1, Ed. 1, 2019.

[3] IBGE. Síntese de Indicadores Sociais, 2018. Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23298-sintese-de-indicadores-sociais-indicadores-apontam-aumento-da-pobreza-entre-2016-e-2017> Acesso em 10.06.2018

[4] BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. A democratização e expansão da educação superior no país 2003-2014. Sesu. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2014-pdf/16762-balanco-social-sesu-2003-2014. Acesso em 17 de maio de 2018.

[5] A Carta de apoio ao movimento em defesa da ciência brasileira, assinada pelo Conselho de Reitores da Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) e publicada em em 4 de maio de 2019 atribui às Universidades Públicas 95% da pesquisa nacional. Já o relatório CAPES-CLARIVATES, publicado ao final do ano passado chega a atribuir 99% dos produtos de pesquisa às Universidades Públicas brasileiras. Consultar: <https://www.capes.gov.br/images/stories/download/diversos/17012018-CAPES-InCitesReport-Final.pdf.> Acesso em 21.05.2019.

[6] Para uma análise do atual governo a partir da chave anti-iluminista, ver CATTANI, Antonio. Justiça e Iniquidade. Porto Alegre: CirKula Editora, 2019.

[7] ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

[8] SANTOS, B. S. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

[9] FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

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