Opinião
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20 de maio de 2019
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10:30

“Essencialismo de sobrevivência” e direito à intelectualidade (por Tiago Duque)

Por
Sul 21
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“Essencialismo de sobrevivência” e direito à intelectualidade (por Tiago Duque)
“Essencialismo de sobrevivência” e direito à intelectualidade (por Tiago Duque)
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Tiago Duque (*)

Esse texto é um pensar em voz alta sobre uma experiência vivida em dias intensos de ataques e ameaças à universidade brasileira, isto é, ao direito à educação. Durante uma noite especial em um espaço cultural repleto de gente, a partir da fala das/os convidadas/os, o público e eu nos inspirávamos com críticas incríveis. Eram escritoras/es-intelectuais, dois homens e duas mulheres, todas/os brancas/os e sem muita diversidade no sotaque. Eram jovens, com exceção de um dos homens gays.

Em dado momento da noite, de forma unânime, lésbicas e gays que tinham a palavra, criticavam certa tendência de um público de leitoras/es as/os classificarem como pessoas que produziam e/ou “liam livros identitários”, textos com “temáticas”, escritoras/es – leitoras/es “militantes”. As falas de quem nos puxava à reflexão eram críticas às identidades políticas que as/os capturavam e as/os envolviam, segundo elas/es, em um novo “armário”, desta vez, temático, colocando suas produções intelectuais em um lugar muito limitado, em uma gaveta/estante muito restrita, e, dessa forma, aparentemente as/os expondo em uma vitrine do mercado editorial, mas, nesse ato, também empurrando-as/os a um lugar muito restrito e, por isso, entendido como menos valioso da produção intelectual/editorial. Afinal, por serem gays e lésbicas, não estão obrigadas/os a sempre escreverem/lerem sobre gays e lésbicas.

As identidades fixas e bem fronteiramente demarcadas, de fato, são uma cilada política, ainda que muito se tenha ganho em direitos sob esses seus usos. Há discussões importantes sobre “essencialismo estratégico” que nos situa sobre a importância da política da identidade, em prol de direitos, em especial quando o assunto é a diversidade/diferença sexual e de gênero. Ainda que possamos compreender, e de fato tenho compreendido, que a identidade é um caleidoscópio em movimento, por vezes, ela para e fixa algo que, conforme o movimento, não se fixará mais da mesma forma em um outro momento. Por isso, estrategicamente, às vezes, é oportuno criar uma ideia de fixidez, por exemplo, para que se tornem inteligíveis no campo dos direitos e das políticas públicas.

No entanto, na produção das identidades, e, com isso, das diferenças, é importante perceber que a intelectualidade tem um lugar de produção (de fala e de escrita). Esse lugar de produção é histórico, logo, se hoje lésbicas e gays brancas/os podem colocar-se contrárias/os às “caixinhas” identitárias é porque, muitas/os, já passaram por esse lugar de inteligibilidade. Não creio que o caminho do reconhecimento tenha uma regra processual que todas/os tenhamos que seguir, mas, inegavelmente, ele tem uma história.

A história de produção intelectual de pessoas travestis-trans e de pessoas negras não são iguais a de todas as demais intelectualidades. Isso não significa que entre si sejam iguais. Mas, faz-se necessário considerar que há histórias relativamente comuns. Até há pouco tempo, no que se refere a negras/os, o racismo não permitia o reconhecimento dos seus lugares de produção de intelectualidade. Tidas/os como não humanos, segundo a lógica racista-hegemônica, como poderiam ser reconhecidas/os como intelectuais? Até muito recentemente não se discutia despatologização das identidades travestis-trans como se discute hoje. Então, segundo a lógica cis-hegemônica, como pessoas travestis-trans (doentes) poderiam ser reconhecidos como intelectuais?

Aqui, não afirmo que o problema do reconhecimento da intelectualidade das mulheres não travesti-trans esteja resolvido, mas, certamente, a diferenciação é perceptível. Isto é, mulheres, há mais tempo, avançaram sobre a lógica sex-hegemônica e estão, especialmente se não negras, em um outro momento desse processo de reconhecimento via a intelectualidade se comparadas com travestis-trans. Essas diferentes históricas têm relação com privilégios, mas, também com continuidades históricas, por isso, sendo mulher, ainda que brancas, comumente há subalternidades quando olhamos e comparamos suas histórias com a dos homens também brancos. São as marcas de diferenciação que alocaram e caracterizam essas mulheres, sejam elas marcas de raça e gênero, ou, de classe e região, essas últimas não discutidas aqui, mas, evidentemente, também importantes na produção das diferenças/identidades, isto é, do reconhecimento.

Ainda assim, mais que um “essencialismo estratégico” em busca de direitos, há casos que podemos nos referir, diante da precariedade de certas experiências, a um “essencialismo de sobrevivência”. Essa troca é retórica, visto que muitas vezes a estratégia do essencialismo foi a que buscava fazer sobreviver alguns grupos. Mas, com isso, quero chamar a atenção para algo que diz respeito a posição de sujeitos anterior a conquista estratégica de direitos via a identidade. É preciso discutir o direito à sobrevivência intelectual, isto é, o reconhecimento via a produção do conhecimento como humano racional não “patologizado” e não “animalizado” de travestis-trans e negras/os.

Não é o caso de uma defesa das identidades fixas e essencializadas, nem propriamente do conhecido “essencialismo estratégico”. Como alguém que se identifica com as perspectivas pós-identitárias, tenho entendido que a crítica nesse viés não traz o mesmo efeito para todas/os as/os intelectuais, afinal, a diferença das histórias de violência e produção de identidades não colocam intelectuais brancas/os, ainda que lésbicas e gays, no mesmo lugar de produção do conhecimento que pessoas travestis-trans, muito menos de negras/os, mesmo sendo esses/as negras/os heterossexuais.

Devido à característica da nossa experiência de constituição de nação, sabemos que vivemos a experiência de sexualização da raça e racialização do sexo. Nele, brancas/os e negras/os têm raça, logo, fazem parte da diferenciação hierarquizada pelo racismo, onde pessoas são pessoas e outras pessoas são outra coisa. Parte desse processo aproximam travestis-trans e negras/os, assim como produzem um lugar comumente de subalternidade às pessoas travestis-trans negras. A hiper-sexualização histórica dessas experiências identitárias as/os alocam para um lugar entendido preconceituosamente/esteriotipadamente como menos racional. Dito de outro modo, mesmo com as exceções, por caminhos distintos, umas/uns via a sexualidade (travestis-trans), outras/os pela raça (negras-os travestis-trans ou não), encontram-se, sob as lógicas hegemônicas, historicamente em posição específica de subalternidade intelectual.

As ameaças e ataque às universidades, isto é, ao direito à educação, ocorre nesse momento em que podemos chamar de pós-políticas de ações afirmativas, sejam elas muito recentes e dispersas para travestis-trans ou com uma trajetória mais ampliada, ainda que curta, para negras/os. Por isso, ainda que todas/os sairemos perdendo com esse momento anti-intelectual, a crítica às identidades como rótulo, como “novos armários”, deve levar em conta que as histórias de violência são distintas entre si. As nossas histórias com os “armários” não pode ser entendia como uma história única.

Em outros termos, se é verdade que as identidades são ciladas, é também verdade que os efeitos da crítica a elas não serão os mesmos para todas as experiências, porque o direito à intelectualidade, isto é, aqui, o da produção de reconhecimento via produção intelectual, não foi conquistado da mesma forma, nem ao mesmo tempo e intensidade por brancos e não bancos, travestis-trans e não travestis-trans.

Assim, temos que ter em mente, cada vez mais, que a ameaça ao conhecimento produzido nas universidades não terá efeitos parecidos em todas as experiências de subalternidade. Há vidas intelectuais mais precárias que outras, porque esse tem sido, historicamente, o modo da produção hierarquizada das diferenças, que, em último caso, dita injustamente quem tem e quem não tem acesso ao mercado editorial, seja como escritora/os, seja como leitora/or. Mesmo sabendo que as diferenças não são, necessariamente sinônimo de desigualdade, há que se compreender os momentos em que cada um se encontra no processo de produção de sua/nossa humanidade.

(*) Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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