Opinião
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19 de maio de 2019
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12:22

Despindo o manto “sagrado” do direito à propriedade privada (por Guinter Tlaija Leipnitz)

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Sul 21
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Despindo o manto “sagrado” do direito à propriedade privada (por Guinter Tlaija Leipnitz)
Despindo o manto “sagrado” do direito à propriedade privada (por Guinter Tlaija Leipnitz)
A apropriação territorial do solo brasileiro não tem nada de sagrado. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Guinter Tlaija Leipnitz (*)

Em declarações proferidas num evento do agronegócio, realizado no interior de São Paulo, no dia 29 de abril deste ano, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que pretende trabalhar pela aprovação na Câmara de um projeto que visa permitir que produtores rurais atirem contra “invasores” sem que sofram punição. Ele defendeu a ideia afirmando que ela irá ajudar a combater a violência no campo e proteger o “cidadão de bem”. Para o presidente, o fundamento dessa proposta é que “a propriedade privada é sagrada e ponto final”.

Ao recorrer à ideia-força do suposto caráter sagrado da propriedade privada, jogando para sua plateia, Bolsonaro não disse nada de novo. É uma afirmação recorrente, entre elites e autoridades, desde o século XIX, na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. Na França pós-revolução, legisladores responsáveis pelo Código Civil ressaltavam a garantia ao cidadão para que pudessem desfrutar da propriedade do modo “mais absoluto possível”. No Uruguai, quando da elaboração da primeira versão de seu Código Rural, datada de 1875, a demora para a finalização desse texto legal era justificada porque a feitura dessas leis afetava “em todas as suas faces o direito mais sagrado do homem em sociedade, – o direito de propriedade”. Poderíamos pinçar outros tantos exemplos históricos repetidos à exaustão pelos interessados em entoar o “mantra” sagrado da propriedade privada.

Ora, o afã que esses sujeitos tinham em afirmar aos quatro ventos essa origem “sobrenatural” do direito à propriedade privada revela, justamente, a sua face histórica: o direito à propriedade privada – em seu sentido exclusivista – celebrado nos textos legais, aqui e acolá, era uma novidade do tamanho de sua fragilidade, diante de outros direitos historicamente experienciados e reconhecidos até então. Os mandatários franceses herdeiros da Revolução conseguiram eliminar os “encargos” (por que não direitos?) feudais dos antigos senhores, mas enfrentaram grande resistência ao tentar fazer o mesmo com as práticas costumeiras dos camponeses, como o direito à pastagem do gado pós-colheita em terras que não eram de sua propriedade.

No Uruguai de fins do século XIX, segmentos mais empenhados no seio das elites latifundiárias buscavam combater a comunalidade característica de campos de pastoreio do pampa e da exploração de matos e bosques. Ou seja, em ambos os casos citados (como em inúmeros outros) os grupos interessados na afirmação da propriedade privada – apenas uma entre as variadas formas historicamente construídas de apropriação dos recursos – fizeram uso da esfera estatal para afirmá-la enquanto direito, diante de outras práticas de exercício do uso da terra. O Estado, ao mesmo tempo em que protegia certos direitos, desprotegia vários outros.

No Brasil não tem sido diferente. Um breve exame histórico dos diferentes rincões rurais do nosso país, pelo menos desde o século XIX, atesta que uma tentativa de afirmação absoluta do direito de propriedade privada, na realidade cotidiana, nos autos de processos judiciais, nos discursos políticos, nunca escapou do conflito e da contestação de sua presumida universalidade. A maior parte da população rural, composta de camponeses/as, indígenas, libertos/as, trabalhadores/as, entre outros grupos, invariavelmente procurava legitimar seus direitos a pedaços de terra, disputados palmo a palmo contra senhores e gente mais “graúda”, a partir da comprovação do uso efetivo dos campos, com moradia e cultivo, de usos imemoriais mediados pela tradição, entre outros expedientes. Seus direitos nem sempre foram reconhecidos, esbarrando em adversários com títulos muitas vezes duvidosos, frutos da fraude sistemática, que até hoje é verificável na apropriação territorial do solo brasileiro. Mas estavam lá, resistindo a sua maneira, e deixando registros suficientes para nos lembrar que a propriedade privada, tal qual concebe Bolsonaro e outros adeptos da adoração a essa “divindade”, não surgiu no seio da humanidade como se fosse a “palavra revelada”.

Isso tudo sabemos por meio de pesquisa realizada especialmente no âmbito das universidades, fruto do trabalho rigoroso de profissionais de distintos campos do saber das Ciências Humanas, como historiadores/as, antropólogos/as, cientistas sociais e pesquisadores/as do Direito.

Portanto, nada mais mundano que o direito de propriedade privada. A interpretação crítica que dirigimos a essa forma histórica de apropriação dos recursos naturais não implica que esta seja irreal ou um simples “engodo” para favorecer as classes dominantes. Apenas ressaltamos que o discurso hegemônico daqueles que a defendem como um direito intocável e inviolável configura ideologia na sua mais pura forma. Em nome de sua suposta “sacralidade”, a violência no campo prolifera, crimes e fraudes são cometidos; o direito à vida, à dignidade humana, à soberania e à segurança alimentar é desprezado; a defesa do meio ambiente é fragilizada. Porém, não precisamos encarar isso como uma fatalidade. Não esqueçamos que o direito à propriedade privada convive, na Constituição, com vários outros, inclusive com o da função social da propriedade, que estabelece limites ao seu caráter incondicional. Ele não se sobrepõe automaticamente diante dos demais.

Para concluir, é importante que a produção de conhecimento sobre o tema possa contribuir com o debate público a respeito das questões pertinentes ao agro brasileiro, e, principalmente, andar junto com as demandas dos movimentos sociais do campo. Entendo que isso seja fundamental para a elaboração de um contradiscurso que possa ser contraposto à hegemonia do latifúndio, escudado na defesa supostamente inconteste do direito à propriedade privada plena. Se o Estado, as interpretações hegemônicas e os interesses dos mais poderosos não estão ao lado desses movimentos, com certeza o conhecimento histórico pode ser uma ferramenta importante na desnaturalização, e consequente desconstrução do direito à propriedade privada como “sagrado”. Na verdade, é um instrumento potencialmente capaz de derrubar a própria ideia da propriedade como algo que nasce naturalmente com a sociedade, e desnudar sua fantasia universalista, evidenciando seu caráter social, historicamente construído, e portanto, mutável.

(*) Historiador, professor da Universidade Federal do Pampa

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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