Opinião
|
17 de maio de 2019
|
13:22

Abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, ainda uma tragédia (por Maria do Rosário)

Por
Sul 21
[email protected]
Abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, ainda uma tragédia (por Maria do Rosário)
Abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, ainda uma tragédia (por Maria do Rosário)
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Maria do Rosário (*)

A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil é um gravíssimo problema social que há mais de duas décadas decidimos enfrentar. E embora meninas e meninos em esquinas ainda integrem a cena urbana, as beiras de estradas e lugares de turismo, este problema foi denunciado por movimentos sociais e autoridades comprometidas com os Direitos Humanos. Foi reconhecido pela Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (2005), da qual fui relatora, como uma das maiores violações de direitos ocorridas no Brasil.

Na CPMI que percorreu o país, os depoimentos de vítimas e testemunhas de casos levantados descortinaram uma realidade muito dura e mostraram a inexistência de limites para a violação a dignidade humana. Um marco na vida de nosso país, pois pela primeira vez se escancarou a trágica situação vivida por uma legião de meninas e meninos, e que diferentemente do abuso sexual intrafamiliar (outra tragédia) envolve o mercado e transforma a infância na pior experiência de toda uma vida.

Como decorrência, além das medidas de caráter criminal e de responsabilização desses abusadores, uma legislação abrangente e políticas públicas estruturaram uma ação do estado brasileiro, constituindo o Sistema de Garantia de Direitos. Ao longo das últimas duas décadas, com a participação da sociedade nos Conselhos de Direitos, com a atuação de Conselhos Tutelares e a inclusão deste tema na agenda do Judiciário, Ministério Público, governo federal, estaduais e municipais, desenhou-se um conjunto de medidas e protocolos em redes e serviços.

A violência contra crianças e adolescentes sobretudo integrou a ação no campo dos Direitos Humanos, do qual fui Ministra, e das políticas sociais como o Bolsa Família e Brasil Carinhoso, articulando o papel do estado, da sociedade, da escola e da família. Há um ano, para complementar as ações protetivas, aprovamos a Lei 13.431/2017, de minha autoria, instituindo a Escuta Protegida. Dessa forma asseguramos às crianças e adolescentes o direito de serem ouvidos sem revitimização. A escuta deve ser feita por profissionais que precisam ser capacitadas para as entrevistas das vítimas de violência sexual, incluindo aí abusos intra e extrafamiliares e a exploração sexual. Este foi um projeto com enorme participação de profissionais e ativistas, e um exemplo de como pensamos que deva ser a proteção de meninas e meninos a partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil (Lei 8069/90).

Mas vivemos uma nova tragédia. Os cinco meses de governo Bolsonaro, orientado pelo ultraconservadorismo e pelo fim do papel do estado como garantidor de direitos, devolveram crianças e adolescentes às ruas. O descaso com as políticas públicas, a continuidade à catastrófica política de contingenciamento de gastos sociais preconizada na Emenda Constitucional 95/2016, aprovada por Temer após o golpe, apressou o desmonte das estruturas criadas pelos governos Lula e Dilma. Os efeitos da desastrosa política econômica de crescimento quase zero de Bolsonaro e Guedes, de um lado ampliam o número de trabalhadoras e trabalhadores, pais e mães empobrecidos, e de outro fragilizam o sistema de proteção social. Como consequência, é visível o aumento de meninas e meninos nas ruas e os riscos que isso representa.

Boletim divulgado pelo Ministério da Saúde (2018) traz números que indicam uma verdadeira catástrofe no tocante à violência sexual. O crescimento das notificações entre 2011 e 2017 – 64% (crianças) e 83% (adolescentes) – se de um lado representa que houve o registro de dados, de outro é uma ponta do iceberg do que acontece com nossas meninas e meninos. Os 184.524 casos notificados – 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes mostram que quanto mais novas em idade, maior a crueldade. Mas a situação tende a piorar.

Estes dados evidenciam que as principais vítimas da violência sexual são as meninas. A avaliação sócio-demográfica revela ainda que do total 51% das vítimas estavam na faixa etária entre 1 e 5 anos, 45% eram negras e 3% possuíam alguma deficiência ou transtorno. A situação de pobreza e exclusão social é uma característica marcante da trajetória do abuso sexual familiar para a situação de exploração sexual. Pelas desigualdade de gênero, as meninas são transformadas em brinquedos de adultos, mercadorias, traficadas, usadas em sorteios e leilões e violadas. Caem em total abandono pelos familiares após períodos de exploração. Nesse tempo passam por estupros, gestações indesejadas, adoecimentos e mortes. Tanto o abuso como a exploração são devastadores para muitas crianças e adolescentes, mas as formas de abordagem são diferenciadas.

Enquanto o abuso ainda pode ser detectada através da escola e pessoas próximas, a exploração sexual envolve não raro agentes externos que integram outros negócios, como de drogas e armas. Assim, estratégias diferenciadas foram criadas ao longo do tempo para dar um basta à banalização da vida de nossas crianças e adolescentes. É preciso compreender estas diferenças, sem hierarquiza-las, pois podem estar conectadas em algum momento da vida das vítimas.

Nesses tempos difíceis que estamos vivendo, mais do que nunca, além da escuta, nós educadoras e educadores, profissionais, servidoras públicas, ativistas sociais, militantes de Direitos Humanos precisamos oferecer confiança e demonstrar sensibilidade acolhendo qualquer tipo de suspeita indicada por uma possível vítima. A procura por atendimento ainda ocorre muito tarde e isso tem dificultado interromper o sofrimento, ofertar proteção, tratamento psicológico e de saúde, incluindo infecções sexualmente transmissíveis além de comprometer a investigação policial sobre os casos.

E também mais do que nunca exigir o papel do Estado Brasileiro na proteção e garantia dos direitos de crianças e adolescentes, algo que não se submete a governos. Neste momento de novo em que há um desmonte das políticas em detrimento de incentivo ao obscurantismo e às armas, a sociedade deve recuperar o papel ativo que teve na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, no ciclo de Conferências nacionais e internacionais. Enfrentar e combater incessantemente todas as formas de violência e abuso sexual de crianças e adolescentes e da exploração sexual nas formas em que se apresenta, correndo o risco de vermos o recrudescimento deste fenômeno quando tantos esforços iam no sentido de obstaculiza-lo. Uma vida sem violência é direito de todas as crianças e adolescentes.

(*) Deputada federal (PT/RS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora