Opinião
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8 de maio de 2019
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21:32

A perversão do sentido da equidade e o ataque à universidade (por Bruno Lazzarotti Diniz Costa)

Por
Sul 21
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Bruno Lazzarotti Diniz Costa (Foto: Sarah Torres/ALMG)

Bruno Lazzarotti Diniz Costa (*)

Como o ministro da educação demonstra pouquíssimo apreço pela honestidade intelectual e recorre sistematicamente a meias verdades, afirmações vagas e dados incorretos para confundir deliberadamente e subverter o debate público, nesta nota vamos resgatar alguns fatos básicos que precisam servir como ponto de partida para qualquer discussão sobre educação no Brasil, particularmente sobre o financiamento dos diferentes níveis educacionais.

Excetuadas as prováveis projeções de suas próprias fantasias pornográficas e as de seu guru astrológico (note-se que a ansiedade sexual é um elemento constitutivo de todas as formas de fascismo), a desinformação que o ministro nos impinge mais recentemente gira em torno de um suposto dilema entre educação básica e superior, com a ideia subjacente de que o Brasil gasta muito com ensino superior e que por isto não pode gastar adequadamente com a educação básica. Este discurso não sobrevive ao intervalo entre um insulto de Olavo de Carvalho e um recuo do capitão, já que os cortes efetuados atingiram a educação básica ainda mais duramente do que as universidades, conforme demonstra o quadro abaixo, produzido pelo O Estado de São Paulo. [1]

Quase 40% do orçamento da Educação Básica – que já vinha se reduzindo, por obra e graça da crise e do golpe austericida de 2016 – foi contingenciada, demonstrando que não há priorização nenhuma, apenas descaso e chantagem na medida tomada.[2]

No entanto, se, como diz o clichê, as maiores mentiras são as meias verdades, a cascata do ministro assenta-se em um senso comum bastante difundido. Vale aproveitar a oportunidade para enfrentá-lo.

Pode-se começar com a “tese” em seu estado mais básico: o Brasil gasta muito com ensino superior e por isto não pode gastar com educação básica. O que há de mentira na tese é a afirmação de que o Brasil gastaria demasiado com ensino superior; o que há de verdade é que gasta muito pouco com educação básica. Dois gráficos a partir do relatório “Education at a Glance” da OCDE (2018) evidenciam o ponto.

Quando se observam os gastos por aluno no nível superior, o Brasil encontra-se em um ponto mediano, entre a 18ª e a 20ª posição, ainda abaixo da média da OCDE. Não faz feio, mas não é um grande destaque neste indicador. Quando, porém, observam-se os gastos por aluno da educação primária é que o vexame é completo, como o gráfico seguinte demonstra.

Portanto, não é verdade que gastamos muito com o ensino superior. O escandaloso é quão pouco gastamos com a educação básica. Mas a estranha concepção de justiça do ministro parece entender que a equidade só será alcançada quando passarmos vergonha em todos os níveis de ensino.

Porém, se a foto é horrorosa o filme é melhor, porque se analisamos a trajetória recente veremos que melhoramos bastante na educação básica, pelo menos até o apocalipse zumbi de 2016. De fato, a trajetória recente do financiamento da educação básica e do ensino superior no Brasil mostra a diferença entre a noção pervertida de justiça do ministro –  que supõe que seria preciso asfixiar a educação superior até o limite da inviabilidade para que esta seja equiparada por baixo com a educação básica – e uma abordagem de fato comprometida com a equidade, segundo a qual deveríamos promover a elevação do investimento e da qualidade dos níveis básicos da educação para que se aproximem do nível superior. Mesmo sem entrar no tema da distribuição de responsabilidades dos entes federados por diferentes níveis educacionais, o que torna mais absurda ainda a “tese” de que o governo federal gasta muito com educação superior, sua responsabilidade constitucional, as afirmações do ministro simplesmente são falsas, não tem base na realidade.

Vamos começar com o esforço orçamentário em educação por nível, ou seja, quanto recurso a sociedade e o governo (federal, estadual e municipal em conjunto) se dispõem a investir em cada nível de educação. Uma medida para isto é a porcentagem do PIB destinada à educação, por nível. O gráfico abaixo mostra esta evolução e os dados têm origem no INEP. Os dados são de 2015, porque depois que o Brasil “acabou com a corrupção” em 2016, o governo achou desnecessário divulgar estas informações para o “novo” Brasil.

O gráfico é bem autoexplicativo e é bom salientar três elementos. Primeiro, especialmente a partir de 2005. o Brasil ampliou contínua e intensamente seu esforço orçamentário em educação, aumentando de 4,5 para 6,2 a porcentagem do PIB destinada à educação pública. Isto significa a ampliação em impressionantes 38% do esforço educacional em uma década. Entre os países analisados pela OCDE não há paralelo em termos de ampliação do esforço educacional. Em segundo lugar, note-se que esta ampliação atingiu todos os níveis de ensino, mas favoreceu muito mais a educação básica do que o ensino superior, contribuindo para a redução da disparidade nos gastos entre os dois níveis pela melhoria da educação básica e não pela precarização do ensino superior, conforme veremos mais detalhadamente adiante.

A terceira realidade evidenciada pelo gráfico é que a análise exclusiva a partir do gasto por estudante em cada nível pode produzir certa confusão, pois não leva em conta a enorme diferença de cobertura e de escala entre estes níveis. A análise do investimento agregado total em cada nível mostra que aproximadamente 80% do nosso investimento em educação é destinado à educação básica. Portanto, ainda que fosse verdade – o que patentemente não é – que os recursos subtraídos do ensino superior fossem destinados à educação básica, cortes agressivos no ensino superior teriam um efeito desestruturador sobre nosso sistema universitário e muito pouco impacto positivo em nossa educação básica, uma estratégia mais obtusa que um tweet do Carlos Bolsonaro.

O ministro da Educação afirmou ainda que, com o que se gasta com um aluno na universidade, seria possível sustentar 10 crianças na educação infantil. É, para usar um eufemismo, uma inverdade. Segundo o Inep, em 2015 o gasto por estudante matriculado na educação infantil era de R$ 6.381,00, enquanto o gasto por estudante matriculado no ensino superior público era de R$ 23.215,00, ou seja, 3,6 vezes a mais, e não 10 vezes superior. Além disso, é muito importante ter cautela com a comparação, já que no caso do Brasil, no valor por aluno do ensino superior estão incluídos o ensino, mas também a pesquisa e a extensão. Ora, mais de 90% da produção científica e da pesquisa tecnológica no Brasil tem origem nas Instituições Federais de Ensino (IFES). Ademais, a disparidade no gasto por aluno entre o nível básico e o superior já foi bem maior e reduziu-se sistematicamente na última década pela ampliação do investimento em educação básica, como os três gráficos seguintes, baseados em dados do INEP, demonstram.

O primeiro gráfico mostra como se ampliou, na década de 2005 a 2015, o valor total investido por estudante em todos os níveis de ensino, ampliação que resultou do efeito combinado de crescimento econômico (e, portanto, da arrecadação) e de aumento do esforço orçamentário (o FUNDEB e, depois, a retirada dos gastos educacionais da DRU são elementos importantes desta ampliação). Note-se também como a crise de 2015 já atinge o gasto por aluno (ainda que, como se viu antes, a porcentagem do PIB destinada à educação não tenha se reduzido).

O segundo gráfico evidencia como esta ampliação serviu mais à qualificação da educação básica do que ao ensino superior: quando se toma como parâmetro o gasto por aluno no ano 2000, o gasto per capita na educação básica praticamente triplica – representando um esforço enorme conjunto da União, estados e municípios – enquanto o gasto por estudante no ensino superior permanece estável no período. Isto não significa que não se tenha aumentado o investimento em ensino superior, ao contrário, mas este aumento veio acompanhado da ampliação da cobertura e das matrículas neste nível, mantendo o gasto por aluno mais ou menos estável.

É o que mostra o terceiro gráfico. Ele representa o número de vezes que o gasto per capita no ensino superior é maior do que o gasto per capita na educação básica. Em 2000, o gasto por aluno no ensino superior era 11 vezes maior que o gasto por aluno na educação básica; em 2015 passou a ser 3,6 vezes mais alto, pela valorização e ampliação do investimento na educação básica e não pela precarização da educação superior.

Portanto, a estrutura e trajetória recente do investimento educacional demonstra o quanto são enganosas em qualquer sentido as afirmações: a) de que é preciso retirar recursos do ensino superior para financiar a educação básica e b) de que seria possível desta maneira produzir um impacto positivo na educação básica capaz de justificar o desmonte de uma rede pública de ensino, pesquisa e extensão que foi obra de várias gerações de brasileiros e que contribui direta e crucialmente o desenvolvimento do país.

Finalmente, a fixação doentia do governo Bolsonaro na destruição de qualquer sentido público para a ação do Estado – resultado da visão miliciana de mundo que orienta este governo – perverte ainda de outra forma a noção de equidade. Trata-se da pouco original acusação de que, como as universidades públicas atenderiam principalmente aos estratos superiores de renda e status da sociedade, investir na expansão das IFES seria um gasto iníquo e uma captura da ação pública pelos grupos sociais melhor posicionados. De novo, as grandes mentiras se apoiam em meias verdades, e neste caso não é diferente. Se há desigualdade no acesso às universidades públicas, a resposta seria democratizar ainda mais o acesso a elas, e não as privatizar ou institucionalizar a seletividade, por exemplo, por meio da cobrança de mensalidades, da redução de vagas ou do abandono das ações afirmativas. De fato, o que ocorreu no período recente foi uma democratização inédita do acesso às IFES por meio do REUNI, da interiorização do sistema com novas universidades e campi, do SISU e das ações afirmativas, sendo as cotas as mais visíveis, mas não as únicas. O gráfico abaixo revela isto.

No início dos anos 2000, quase 60% dos estudantes de ensino superior de instituições públicas eram provenientes dos 20% de maior renda e apenas 20% dos estudantes tinham origem nos 60% de menor renda. Desde então houve um processo contínuo de democratização do acesso e, em 2015, os estratos de maior renda já haviam perdido o monopólio do acesso ao ensino superior público. Resultados semelhantes vêm sendo encontrados reiteradamente por outros estudos.[3]

Há, portanto, alternativas não regressivas e mais inclusivas para reduzir adicionalmente a desigualdade de acesso. A destruição e o desmonte não são aceitáveis, seja com base em critérios técnicos (inclusive o custo de depauperar investimentos feitos ao longo de décadas), seja com base em escolhas normativas que devem ser fundadas em concepções civilizadas de justiça. O ministro fez outras escolhas. E, não tendo coragem de explicitar os interesses e valores que as sustentam, prefere escondê-las atrás do biombo dos falsos dilemas e das meias verdades.

(*) Professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro (MG).

Notas

[1] Cf. também a reportagem do portal Terra:  https://www.terra.com.br/noticias/educacao/na-contramao-do-discurso-oficial-mec-congela-r-24-bi-da-educacao-basica,50aa64347402aa59638cec9d2094e241jqnx65nl.html

[2] https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/05/02/em-4-anos-brasil-reduz-investimento-em-educacao-em-56.htm

[3] https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,2-em-3-alunos-de-universidades-federais-sao-das-classes-d-e-e,10000070529?utm_source=estadao:whatsapp&utm_medium=link.

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