Opinião
|
10 de abril de 2019
|
16:46

Teses Reacionárias e Guerras Jurídicas (por José Carlos Moreira da Silva Filho)

Por
Sul 21
[email protected]
Teses Reacionárias e Guerras Jurídicas (por José Carlos Moreira da Silva Filho)
Teses Reacionárias e Guerras Jurídicas (por José Carlos Moreira da Silva Filho)
Esse artigo foi apresentado no debate sobre a condenação de Lula, promovido, dia 9 de abril, pelo Comitê Suprapartidário Lula Livre, pela Democracia da Cidade Baixa e pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. (Foto: Divulgação)

Teses Reacionárias e Guerras Jurídicas – o combate à corrupção como pretexto para a derrubada e o bloqueio de governos populares na América Latina do século XXI

José Carlos Moreira da Silva Filho (*)

Albert Hirschman em seu “A Retórica da Intransigência”[1] apresenta três teses reacionárias utilizadas pelo menos desde a Revolução Francesa para desacreditar ou desestimular os avanços que foram sendo desencadeados no período moderno. São elas as teses da perversidade, da futilidade e da ameaça.

De acordo com a tese da perversidade, todos os esforços empreendidos para o avanço da sociedade acabarão por movimentá-la na direção contrária, gerando portanto um “efeito perverso”. É desse modo que revoluções, governos e políticas públicas voltados para o enfrentamento das históricas desigualdades sociais acabam por serem desacreditados, sugerindo-se que os velhos programas e discursos “realistas”, de feição tradicional e reacionária, são mais “eficazes”, e conseguem garantir o mínimo, sem esfalfarem-se em utopias irrealizáveis, fazendo “o bolo crescer” e garantindo algumas sobras aos marginalizados.

A tese da perversidade manipula dados, estatísticas, simplifica a realidade, domina as narrativas publicadas pela grande mídia. No plano político é justamente a velha tese da perversidade que vem sendo utilizada pelas forças reacionárias para desacreditar o círculo de governos populares que comandou a América Latina na primeira década do Século XXI.

No Brasil, na Argentina, no Equador, no Paraguai, os avanços obtidos em termos de políticas sociais cedem às análises fiscais guiadas por modelos conservadores, construídos a partir de esquemas que assumem como algo natural e incontornável a cada vez mais acelerada dinâmica de concentração de renda no mundo. Qualquer tentativa de rompê-la é mal vista e logo acusada de gerar efeitos perversos, quando na verdade, estes deveriam ser creditados à manutenção do modelo global concentrador de renda.

A segunda tese do discurso reacionário é a da futilidade. Segundo esta, as estruturas que comandam o status quo são tão sólidas, antigas e arraigadas que qualquer tentativa de mudança será inócua, apenas servindo para criar ilusões que poderão gerar dividendos políticos aos seus criadores, mas sem jamais conseguirem alterar a ordem tradicional das coisas.

Entram nessa linha de argumento as repetidas acusações de populismo aos governos populares da América Latina neste início de século. Tais análises decretam a incapacidade desses governos para mudar as estruturas sociais. Também vaticinam que todas as políticas sociais pretensamente voltadas a mudanças no mapa da desigualdade social apenas servem para criar currais eleitorais e levar as finanças públicas à bancarrota, transformando o Estado em um “cabide de empregos”.

Tais acusações desconhecem ou propositadamente ignoram as lúcidas análises de Ernesto Laclau em torno da ressignificação do termo “populismo”[2]. Para Laclau não é possível cogitar-se de um projeto democrático sem que ele esteja sustentado por uma hegemonia política, sendo esta indispensável para a chegada e permanência no poder de governos que busquem combater a desigualdade.

Mais do que criar versões alternativas para os reais e claros resultados de avanços nos índices sociais obtidos por esses governos populares, como o faz a tese da perversidade, o uso da tese da futilidade acusa o caráter provisório e enganoso de tais resultados. Para fazer tal “denúncia”, realiza operação semelhante à realizada pela tese anterior: culpa-se a tentativa de mudança e enfrentamento da desigualdade pelos efeitos que na verdade são gerados pela manutenção e recrudescimento do modelo rentista do capitalismo global, e que geram o aprofundamento da desigualdade e o retrocesso de direitos.

Por fim, a terceira tese, a da ameaça, indica que as mudanças empreendidas com o objetivo declarado de buscar avanços sociais representam na verdade uma flagrante ameaça às conquistas civilizacionais. É o que se observa, lembra Hirschman, na manjada acusação de que o Estado do Bem-Estar Social ameaça as liberdades individuais e a democracia.

É comum encontrar vozes reacionárias que aplaudem medidas ou regimes autoritários para que estes “salvem” a democracia e as liberdades. Insere-se nessa terceira variante o batido discurso da ameaça vermelha, responsável na segunda metade do século XX pela deflagração e persistência na América Latina de brutais e cruentas ditaduras civis-militares de segurança nacional.

Para dinamitar o período virtuoso de governos populares que se apresentaram no continente latino-americano nos albores do século XXI, os mesmos pretextos foram ressuscitados, ainda que distantes do contexto mundial de bipolaridade da guerra fria.

O comunismo foi invocado em uma versão ainda mais fantasmagórica, atrelada a uma miríade de “fake news”, a igrejas que se alimentam do ódio a tudo que desafia seu apego ao conservadorismo de costumes e que é resumido na palavra de ordem “comunismo”, e a um intelectualismo placebo que chega às raias do impensável ao afirmar que a terra é plana, que não há aquecimento global, que o nazismo é uma construção socialista e que governos sociais democratas são comunistas.

O alarde em torno dessa versão repaginada e delirante do comunismo por si só não garantiria a derrubada de governos populares que chegaram ao poder através das instituições das democracias liberais. Seria necessário um verniz técnico, que servisse de prova inquestionável aos adjetivos mirabolantes garimpados na terra da fantasia do assim chamado “marxismo cultural”. Foi assim que juntamente com a ameaça vermelha ressuscitou-se a corrupção, entendida como síntese onipresente de todos os problemas, frustrações e derrotas.

Talvez como nenhum outro pretexto diante da experiência concomitante de governos populares na América Latina no início do século XXI, a corrupção esteja servindo como mote aglutinador das três teses reacionárias aqui referidas. Governos que ousem desafiar o cânone capitalista embalsamado nas bandanas neoliberais,  governos que enunciem as metas do combate à desigualdade e dos avanços sociais, por mais que tentem, desaguarão no atraso e na piora das condições gerais da sociedade, porque ao fim e ao cabo, amparam seus projetos nas práticas da corrupção, sendo responsáveis pela ampliação a níveis inéditos do que sempre existiu, mas que agora é elevado à máxima potência justamente pelas forças políticas que sempre empunharam a bandeira da ética na política.

O discurso reacionário presente nesta tese é de uma simplicidade contagiante. É como se primeiro dissesse: “Que forças políticas oligárquicas e conservadoras pratiquem corrupção é algo tão natural como a paisagem, mas que forças progressistas que lutam pela justiça social o façam é inadmissível. É uma traição à confiança e esperança nelas depositadas.” E depois arrematassem: “E além de traírem a confiança popular tais forças colocaram em marcha esquemas de corrupção que fazem os tradicionais corarem de vergonha pela sua timidez em envergadura”.

Nessa narrativa reacionária, a corrupção se revela a causa última do efeito perverso. Os avanços sociais não acontecem e dão lugar ao seu oposto porque tudo não passa de um disfarce para a corrupção. Do mesmo modo, a corrupção explicaria porque tais governos insistiriam em fórmulas insuficientes para abalar a tradição e as profundas estruturas das sociedades oligárquicas e patriarcais, como registra a tese da futilidade. Tudo não passaria de um premeditado ilusionismo para abrir espaço à corrupção. E por fim, os governos pretensamente progressistas representariam uma ameaça à democracia e às liberdades, pois seu projeto totalitário de poder, instrumentalizado com doses cavalares de corrupção sistêmica, se espalharia insidiosamente sobre sociedades livres, lançando suas sombras sobre o futuro.

É a partir do pano de fundo desse discurso reacionário, agora concentrado no mote da corrupção, e com a seletividade garantida pela ideia de uma “nova ameaça vermelha”, que devemos entender a via eleita na América Latina para levar à derrocada o ciclo de governos mais permeáveis às demandas populares[3] que se afirmou na primeira década do novo século, via esta que pode ser representada pelo termo lawfare.

O lawfare, ou “guerra jurídica indica um nível de protagonismo e instrumentalização da esfera judicial em níveis inéditos, envolvendo inclusive instituições também indispensáveis para a dinâmica do sistema de justiça, como o Ministério Público, a advocacia pública  e as forças de segurança. Somam-se a tais práticas outros órgãos de controle vinculados tanto à esfera executiva quanto à legislativa.

A estratégia é simples na sua mecânica: fazer largo e amplo uso dos procedimentos institucionais, demarcados legalmente, para contorcer e superar os limites legais ao exercício do poder, tudo em nome do controle e do combate à corrupção, permitindo a um só golpe que o alvo inimigo seja bombardeado por operações, denúncias e processos e que também seja criada para a opinião pública em geral a aparência de normalidade e legalidade.

Para que tal aparência possa se consolidar de modo mais eficaz, antes dos processos judiciais se desenrolarem, é preciso preparar os espíritos com operações policiais espetaculosas, com bombardeios midiático de notícias sensacionalistas, por mais despidas que sejam de consistência fática, com vazamentos de informações simbioticamente articulados com a cobertura midiática, documentos e gravações cuidadosamente coordenadas desde a sua gênese para reforçar o espetáculo e o clamor de culpabilidade. Tal é a estratégia que tem se repetido em países como Argentina, Equador e Brasil, tendo como alvos preferenciais justamente os homens e mulheres que estiveram no comando dos respectivos governos nessa primeira década do novo século, sem que tenha sido possível identificar nesses casos provas cabais, mínimas ou razoáveis para sustentar as condenações e a persecução judicial.

O caso brasileiro revela o uso do lawfare de uma maneira intensa e paradigmática, atingindo os dois presidentes eleitos e reeleitos no período de 2002 a 2014, Luis Inacio Lula da Silva e Dilma Roussef, o que resultou em impedimento da Presidenta Dilma sem que houvesse crime de responsabilidade e em condenação e prisão do Presidente Lula pela prática de corrupção passiva sem que fosse comprovado seja o ato de ofício, seja a vantagem ou benefício obtido.

No caso de Lula, no âmbito da impactante Operação Lava-Jato, o máximo que se conseguiu encontrar para “justificar” a sua condenação em segundo grau e posterior prisão a tempo de garantir a sua retirada do processo eleitoral de 2018 foi um apartamento no qual nunca dormiu, que jamais esteve em seu nome, que permaneceu ao longo de todo o processo em nome da construtora OAS, e que teria sido “dado” a ele inclusive em período posterior ao final do seu segundo mandato. Do mesmo modo, a prisão de Lula antes de esgotados os recursos judiciais, ao arrepio do que garante a letra da Constituição de 1988, apoiou-se por si só em raciocínios jurídicos tortuosos que culminaram na histórica denegação ao seu Habeas Corpus por parte do STF.

É importante notar que houve toda uma preparação em diferentes campos para que esse ataque pudesse ser deflagrado. Desde a preparação da opinião pública através da mídia hegemônica, passando por mudanças vertiginosas de entendimento jurisprudencial (como se viu nos temas das “pedaladas fiscais” no âmbito do TCU e da possibilidade de cumprimento de pena após condenação em segundo grau no âmbito do STF), até a edição e aprovação de leis que foram instrumentalizadas estrategicamente para se chegar ao resultado desejado (como a ampliação e generalização do instituto da delação premiada, a lei da ficha limpa e a própria lei de responsabilidade fiscal).

Notório também foi a intervenção pontual da cúpula judicial em momentos chave desse processo.  Para listar os mais significativos do ano de 2016, podemos citar: a prisão (inconstitucional) do Senador Delcídio Amaral, a ausência de represálias ao criminoso vazamento praticado pelo juiz Sergio Moro de escutas ilegais de conversas telefônicas entre a então Presidenta da República e o então futuro Chefe da Casa Civil Luis Inácio Lula da Silva, a concessão de liminar para impedir a posse de Lula como Chefe da Casa Civil quando ainda nem sequer réu era, a deposição do então Deputado Federal Eduardo Cunha do cargo de Presidente da Câmara dos Deputados somente após ter concluído o processo de impedimento de Dilma Roussef, dentre outros fartos exemplos que podem ser colecionados.

É de se registrar no caso brasileiro, inclusive, a participação dos próprios governos populares na construção das condições para a sua imolação via lawfare, com a aprovação de leis e medidas que ampliaram o controle oligárquico exercido pelos funcionários públicos do sistema de justiça sobre a dinâmica eleitoral e política, com o significativo aumento salarial e pleno atendimento de demandas administrativas de instituições que passaram a se comportar como verdadeiras corporações, especialmente no âmbito do poder judiciário e do ministério público, e na chancela a um combate generalizado contra a corrupção a despeito da constante violação de garantias e limites no exercício do poder de polícia.

Adotou-se em diversas situações um ingênuo e inconsequente discurso autodenominado “republicano”. Talvez o ápice desse republicanismo inconsequente no caso brasileiro tenha sido a edição e a promulgação da lei antiterrorismo, que na mesma proporção do avanço e sucesso das operações de lawfare contra lideranças políticas populares ameaça agora voltar-se progressiva e explicitamente contra os movimentos sociais e os protestos populares.

No caso brasileiro ainda, para arrematar, tem-se uma explícita comprovação da prática de lawfare canalizada para inimigos políticos e disfarçada de combate à corrupção quando o principal símbolo e agente da Operação Lava-Jato, Sergio Moro, em novembro de 2018 aceita, poucos dias após as eleições, ser Ministro da Justiça do governo eleito. Para além de que nesse momento exerceu atividade política sendo ainda juiz e portanto impedido por lei de fazê-lo, Moro foi o responsável pela condução do processo contra o Ex-presidente Lula e pela sua condenação, confirmada com celeridade inédita pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região, garantindo com isso a inelegibilidade de Lula mediante a incidência da Lei da Ficha Limpa sobre as suas pretensões ao cargo de Presidente da República.

O detalhe importante é que Lula era, até então, primeiro lugar disparado nas pesquisas de intenção de voto, tendo o trabalho de Moro, na condição de magistrado, limpado o terreno para que o concorrente direto de Lula ao cargo e segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto se consagrasse vitorioso no pleito eleitoral. Ato contínuo, Moro é agraciado com a indicação para conduzir o Ministério da Justiça com amplos poderes para que, supostamente, pudesse ampliar sua cruzada contra a corrupção.

Na segunda década do século XXI, para além da contundência do caso brasileiro assiste-se na região latino-americana, conforme já frisado, o uso de estratégias de lawfare aliadas ao amplo uso e construção hegemônica de discursos e teses reacionárias, exemplarmente agrupadas na bandeira difusa do combate à corrupção[4], processo que tem causado não apenas a derrocada de governos populares e o retrocesso de direitos e liberdades, mas também o derretimento das instituições democráticas.

(*) Professor na Escola de Direito da PUCRS (Graduação e Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais). Esse artigo foi apresentado no debate sobre a condenação de Lula, promovido, dia 9 de abril, no Sindicato dos Municipários de Porto Alegre, pelo Comitê Suprapartidário Lula Livre, pela Democracia da Cidade Baixa e pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Também participaram do debate Rui Portanova (doutor em Direito), Tarso Genro (advogado, ex-governador do RS) e Angelita Rosa (advogada, da ABJD).

Notas

[1] HIRSCHMAN, Albert O. A retórica da intransigência – perversidade, futilidade, ameaça. TRadução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

[2] LACLAU, Ernesto. A razão populista. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

[3] Tomo “popular” aqui no mesmo sentido demarcado por Gallardo, ou seja, como indicativo de parcelas e grupos que sofrem discriminação e opressão e são bloqueados pelos sistema social hegemônico, e a partir da consciência deste fato se afirmam como sujeitos políticos e demandam a mudança das condições estruturais que os segregam (GALLARDO, Helio. Teoria crítica y derechos humanos – una lectura latinoamericana. Revista de Derechos Humanos y Estudios Sociales – REDHES, San Luis Potosí, Sevilla, Aguascalientes, año II, n.4, p.57-89, jul-Dec 2010).

[4] Importante ressaltar que não se trata aqui de negar que tenha havido a adoção de práticas de corrupção ao longo desses governos populares, seja para enriquecimento pessoal de agentes públicos, seja como moeda de negociação para a governabilidade e implementação de projetos, legislação e políticas públicas, mas sim de reconhecer o uso difuso, generalizado e despido de limites legais e probatórios nas denúncias e condenações por corrupção como meio de se atingir objetivos políticos.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora