Opinião
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28 de abril de 2019
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00:14

Marchezan e as falaciosas pretensões sobre o empresariamento do setor público de Saúde (por Alcides Miranda)

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Sul 21
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Marchezan e as falaciosas pretensões sobre o empresariamento do setor público de Saúde (por Alcides Miranda)
Marchezan e as falaciosas pretensões sobre o empresariamento do setor público de Saúde (por Alcides Miranda)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Alcides Miranda (*)

Nesta breve e introdutória narrativa, Júnior é um personagem imaginário, mas cheio de si.

Certa feita, sob rompantes juvenis, tendo sido ungido nas urnas de um porto não muito alegre, portava-se Júnior como um pequeno rei e andava afoito por reformar o paço, os espaços e os modos de governar. Não era muito de estudar, mas estava convencido de muitas coisas, como por exemplo, daquilo que diziam os sacerdotes e repercutiam os arautos do mercado financeiro: de que tudo o que era estatal degenerava-se em incompetências burocráticas, corrupções e acomodações ineficientes… De que tudo em que os mercados e os empresários tocavam, era iluminado e transcendia em logísticas eficazes, processos desburocratizados, resultados eficientes e, mais significativo, decorria na redução de tributos para a oligarquia daqueles que se imaginavam os produtores de riquezas.

Dizia-se também, que para os empresários e mercadores o que importava pragmaticamente eram os “resultados” eficientemente produzidos, portanto, em se tratando de gestão pública ou privada, “não importava a cor do gato, desde que ele findasse com os ratos”…

Daí, pois, dentre as proposições reformistas de Júnior, destacava-se aquela em que ele prometia a redenção dos serviços públicos, ao agenciar a sua gestão para empresários e, assim, diminuiria os custos orçamentários de seu reinado, diminuiria os tributos dos moinhos e dos ventos.

Inclusive, propunha o nobre alcaide agenciar empresarialmente até os serviços públicos de Saúde, mesmo aqueles de Urgência e Emergência, que lidavam cotidianamente com os limites dramáticos da dor e sofrimento, da vida e da morte. Assim, Júnior convocou o seu dirigente médico – que, parecia professar a crença na clínica baseada em evidências, mas não parecia estar muito atento ou a par de outros tipos de evidências – e o incumbiu de preparar terreno para a reforma empresarial da res pública no setor de Saúde da cidade.

Pausa na narrativa e alegorias…

Fiquei eu, o narrador sumário, a imaginar: o que deveria ser evidenciado ao público leitor desse pequeno enredo acerca das pretensões reformistas de Nelson Marchezan Júnior? Resolvi, então, adotar adiante linguagem também mais “pragmática”, na (talvez, vã) expectativa de que evidências apresentadas possam servir para consubstanciar o debate público sobre pretensões reformistas de governantes… Ou, pelo menos, desnudar falácias traficadas em discursos midiáticos e midiotizantes.

De início, convém denotar que se trata de fenômeno contemporâneo recente e tendência mundial a ideia e as iniciativas de governos transferirem e agenciarem empresarialmente a gestão de serviço públicos de Saúde para instâncias, institucionalidades e entes de Direito Privado. Muitos países, principalmente na Europa, têm instituído o que convencionam definir como uma instância de quase-mercado (quasi-market), assim como, institucionalidades de gestão pública sob a égide e regras do Direito Privado, com ênfase em “competição gerenciada” para a produção de cuidados de saúde (managed care), sob as quais buscam incrementar a eficiência alocativa de orçamentos públicos e a produtividade de serviços.

Nas últimas décadas, muitos estudos e análises sobre experiências internacionais em que ocorreram agenciamentos empresariais ou terceirizações na gestão de serviços públicos de saúde têm sido produzidos e publicados. São escassas as evidências de que tais iniciativas impactaram na redução de gastos públicos em curto prazo, pois, na maior parte das experiências analisadas os referidos impactos orçamentários estão projetados para prazos mais longos e geralmente estão restritos aos termos de ajuste fiscal, ou seja, não estão referidos de forma mais abrangente aos custos sociais indiretos. Acerca da pretendida “desburocratização” dos serviços de saúde (agilização para compras de insumos, para contratação e melhor controle de pessoal etc.), também não há muitas evidências de impactos positivos aferidos em curto ou médio prazo.

Na maior parte das experiências de agenciamento empresarial para a gestão e produção de serviços de saúde em países europeus, os termos de contratualização dos intermediários estabelecem salvaguardas para direitos constitucionais usuários e garantias necessárias para a avaliação sistêmica e sistemática, para o controle público e para o monitoramento governamental. Como também, os termos contratuais estabelecem metas para o alcance de resultados, que não estão restritas somente ao aumento de produtividade (mais procedimentos biomédicos produzidos com menos recursos orçamentários gastos), mas, que incluem também critérios e metas para incrementar a acessibilidade mais equânime e aferir impactos sobre o estado de saúde das populações.

Aqui no Brasil, principalmente na década atual, também tem ocorrido um incremento do agenciamento empresarial para a gestão e produção de serviços públicos de saúde. Tal agenciamento tende a ocorrer no próprio âmbito estatal, pela modificação da institucionalidade de estabelecimentos de saúde preexistentes da administração direta para a indireta, sob novas modalidades, como: empresas públicas, fundações públicas de Direito Privado (denominadas como “Fundações Estatais) ou, mais raramente, para sociedades de Economia Mista. Tem ocorrido também pela contratação de entidades privadas sem fins lucrativos e com estatuto de “interesse público”, tais como: Organizações Sociais (“OS”) regulamentadas legalmente em estados e municípios, além de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP’s) regulamentadas por legislação federal,

Por aqui, muitos pesquisadores também têm estudado e analisado o mesmo fenômeno e tendência. Dentre os quais, eu me incluo. Nos últimos anos tenho realizado e publicado estudos retrospectivos e prospectivos sobre a inovação, a adoção e o incremento de modalidades institucionais no agenciamento público-privado de estabelecimentos e serviços de saúde, como ainda, revisei inúmeros contratos de gestão estabelecidos entre governos e as agências estatais (empresas públicas, fundações estatais) ou privadas (OS’s, OSCIP’s e congêneres).

Uma primeira constatação empírica de minhas pesquisas e estudos confirma que tendencialmente as maiores taxas médias anuais de incremento no agenciamento empresarial da gestão de estabelecimentos públicos de saúde, principalmente pela modificação de institucionalidade daqueles que estavam anteriormente sob administração estatal direta (portanto, sob a égide do Direito Público), ocorre nas modalidades de empresas públicas (administração estatal indireta) e Organizações Sociais (entidades privadas sem fins lucrativos), notadamente em serviços ambulatoriais e hospitalares especializados (média e alta complexidade). Tal incremento tem sido mais proeminente em estados e municípios brasileiros com melhores índices e indicadores sociais (Desenvolvimento Humano, Vulnerabilidades Sociais, concentração de renda), tende a ser proeminente onde há mais alternativas de mercado e corporações profissionais de especialistas (principalmente médicos). Dito de outro modo, onde preponderam os mercados que lucram com assistência biomédica às doenças.

Uma segunda constatação empírica, derivada da análise sobre a série histórica de indicadores epidemiológicos do estado de saúde populacional, indica que não ocorreram alterações epidemiológicas significativas, para melhor ou pior, nos estados e municípios que incrementaram o agenciamento empresarial; tampouco na comparação com os estados e municípios onde os serviços permaneceram sob administração estatal e direta.

Uma terceira constatação empírica, derivada de estudos amostrais, dá conta que em média os estados e municípios que optaram por contratar serviços e agenciar a gestão de estabelecimentos de saúde para Organizações Sociais, passaram a transferir mais recursos financeiros para essas entidades do que gastavam anteriormente quando havia a administração direta.

Outra constatação empírica, a partir de estudos e análises mais qualitativas, dá conta de que os governos agenciadores não somente contrataram a produção de serviços sob a gestão empresarial e privada, mas, em muitos exemplos abdicaram de parte de suas prerrogativas inalienáveis de poder republicano (de fiscalização, de monitoramento, de controle público) e de autoridade sanitária. Em muitos casos, os entes empresariais agenciados (estatais da administração indireta ou privados) passaram a exercer autoridade administrativa e sanitária incompatíveis com suas funções, para as quais não receberam delegações de poder republicano (como mandatos eleitorais).

Por fim, a constatação mais grave e preocupante. A análise normativa de mais de uma centena de contratos de gestão firmados entre governos municipais ou estaduais e Organizações Sociais denotou que nos termos formais preestabelecidos em quase todos não havia salvaguardas e garantias de direitos, princípios e diretrizes constitucionais. Não havia a definição prévia de critérios prioritários para acessibilidade aos serviços (equidade), de integralidade na Atenção à Saúde (promoção, proteção, assistência, reabilitação, reintegração), de controle público/social, de monitoramento sobre impactos econômicos indiretos (custos e benefícios sociais). Não havia a definição de critérios, metas e indicadores para o monitoramento e a avaliação sistemática sobre impactos epidemiológicos e sociais (outcomes) sobre o estado de saúde das populações assistidas. O que abundava nos contratos analisados eram somente metas para a produção de procedimentos biomédicos, como consultas e internações hospitalares (outputs) e referencias vagas sobre “qualidade no atendimentos” e “satisfação de usuários”, contudo, sem a definição de termos, critérios ou indicadores para aferir e monitorar tais características.

No caso da escassez ou ausência de salvaguardas, garantias e exigências contratuais para que qualquer agenciamento da gestão em serviços públicos de saúde, agora sob a égide do Direito Privado, observe e cumpra preceitos e diretrizes constitucionais, denota-se evidente negligência governamental e o pendor de reduzir o contrato social (constitucional) que rege e regula as políticas públicas de saúde e suas estratégias institucionais (administrativas e programáticas) a meros contratos de gestão e produção de procedimentos biomédicos. Soa como reduzir o contrato e direito social à Saúde a uma espécie de contrato e direito de consumidores de procedimentos biomédicos.

No caso da escassez ou ausência de termos contratuais para avaliações e monitoramentos mais complexos e abrangentes acerca da acessibilidade, dos processos de gestão (condução, controle, regulação, comunicação etc.), da eficiência social (não somente administrativa, orçamentária) e da efetividade dos serviços prestados em relação ao estado de saúde das populações (impactos de médio e longo prazos); denota-se incompetência governamental no controle de processos agenciados e resultados aferíveis, monitoráveis, comparáveis. O que se torna irônico, quando constatamos que é o discurso pragmático sobre “melhores resultados” o principal argumento ou pretexto para justificar as reformas gerenciais e agenciamentos para entes privados.

Por assim dizer, não há constatação inequívoca de evidências empíricas que sustentem o discurso justificativo de que tais agenciamentos ou terceirizações empresariais diminuiriam os custos administrativos do setor público. Tal diminuição de gastos orçamentários governamentais poderia ocorrer em médio e longo prazos, no que concerne ao decréscimo de obrigações previdenciárias e trabalhistas da administração direta. Entretanto, o contraponto tem sido o aumento da precarização nos contratos e processos de trabalho de servidores contratados sob outros regimes, o aumento de desgastes e a dificuldade de formação de vínculos mais duradouros entre os mesmos e os usuários dos serviços nos quais trabalham (condição imprescindível para muitas políticas públicas de saúde).

Também não há evidências empíricas de que tal tendência de agenciamento empresarial de serviços públicos de saúde produza melhores resultados em termos de acessibilidade equânime (não somente em volume de atendimentos) e de melhores resultados epidemiológicos e de benefícios sociais (diminuição de riscos, vulnerabilidades, desgastes) para o conjunto das populações cobertas.

Tampouco há evidências de que o chamado “enxugamento da máquina estatal” e o “ajuste fiscal” decorrentes de reformas dessa natureza e caráter diminuam efetivamente os gastos públicos. A redução de políticas integradas de Seguridade Social (Saúde, Assistência Social, Previdência Social), mesmo que em função do aumento eventual do volume de atendimentos e procedimentos biomédicos, tende a capitalizar mais o “mercados e mercadores das doenças” e onerar mais o setor público, principalmente os governos municipais, pois os custos sociais (diretos e indiretos) não são transferíveis.

Não deixa de ser curioso que alguns gestores governamentais advoguem e proponham o agenciamento empresarial de serviços públicos de saúde para equacionar problemas de burocratismo e rigidez administrativa; enquanto não propõem alternativas para reformar a própria administração pública. Muitos dos problemas e dificuldades da administração pública apontados existem de fato e estão a requerer necessárias reformas sob a égide do Direito Público, entretanto são muito raras as propostas e iniciativas de reformas nesse sentido. Ao que parece, muitos gestores governamentais optam por agir, não somente como agenciadores do mercado empresarial, mas também como síndicos das grandes proporções de orçamentos governamentais que estão destinadas ao pagamento de juros e serviços da dívida pública (sobre a qual não há análises transparentes ou avaliações sobre eficiência alocativa).

Em suma, reformas políticas e administrativas na esfera pública requerem, além da projeção de estratégias viáveis para além do curto prazo, o debate público e a transparência na apresentação de justificativas e evidências plausíveis, de modo a que se possa discernir melhor entre factibilidades e o jogo de discursos falaciosos.

No mundo plutocrático de Nelson Marchezan Júnior, como de muitos de seus compatriotas, as falácias e convicções oligárquicas parecem ter mais ênfase e peso do que as evidências empíricas. Daí, porque seria improdutivo tentar convencê-lo de que suas pretendidas reformas não terão o impacto anunciado… O que não se poderia dizer em relação aos lucros que muitos de seus eventuais empresários agenciados (também agenciadores?) poderão acumular ou as vantagens de tais reformas para o mercado e os mercadores especialistas em doenças.

De qualquer modo, alguém precisa alertar aos mais incautos: o que está em jogo, entre vieses discursivos pragmáticos, não é propriamente a “cor dos gato”, mas o espírito que o anima… Isso porque, o gato multicor ou de qualquer cor pode ser eficaz para “finalizar os ratos”, mas o seu espírito pode ser adestrado para tratar aos mais vulneráveis também como roedores dispensáveis.

Mas essa não é uma fábula e não foi escrita para os personagens disfarçados em narrativas pouco sutis. Bem poderia ser um texto de denúncia e de cobrança sobre atitudes republicanas e posturas mais dignas da parte dos governantes.

(*) Médico, pesquisador e professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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