Opinião
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9 de março de 2019
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11:00

Mais terras para estrangeiros: proposta é um jogo de “soma zero”, e quem perde é o Brasil (por Carlos M.Guedes de Guedes)

Por
Sul 21
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Na linha de frente do lobby pela estrangeirização das terras no Brasil estão os setores de florestas plantadas e da mineração. (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)

Carlos M.Guedes de Guedes (*)

Entender o que está em questão sobre a retomada da proposta de facilitação para empresas estrangeiras comprarem terras no Brasil, faz-se necessário imaginar duas cenas hipotéticas:

Cena 1 – Fruto dos acontecimentos recentes, aumenta a tensão entre Brasil e Venezuela, e o comando brasileiro resolve entrar em território estrangeiro. Quando organiza sua estratégia de avanço, descobre que grande parte das propriedades rurais da fronteira pertence a… venezuelanos. Pessoas físicas ou empresas que, por estratégia de mercado, expandiram sua escala de produção nas propriedades brasileiras. O que fazer? Invadir as propriedades para acessar a fronteira? E se os proprietários desconfiam da intenção governamental brasileira, e entram com “interdito proibitório”, alegando possível ameaça ao direito de propriedade? Vamos combinar que, pelo menos, o fator surpresa foi para o espaço na operação.

Cena 2 – Estados Unidos e China fecham acordo comercial, ampliando a venda de soja para o país asiático dos norte americanos. Tal ganho comercial poderia não ter respaldo na produção interna. O que poderiam fazer os estadounidenses? Buscar completar sua oferta com produção em propriedades adquiridas em outros países. Milhares de hectares foram adquiridos no cerrado brasileiro, que resultariam em uma produção que poderia passar por “contabilidade criativa” e sairiam do país, complementando as exportações dos EUA como se fossem originárias dos cultivos no seu próprio território.

A impossibilidade atual dessas duas cenas extremas (?!), já que nem venezuelanos nem estadunidenses têm terras nessa quantidade e em tais localidades, deixa evidente o cuidado que o Brasil até hoje teve com o tema da compra e venda de terras para estrangeiros. Nos anos 90 do neoliberalismo brasileiro tal atenção foi negligenciada, sendo retomada em 2010 através de Parecer da Advocacia-Geral da União, diferenciando empresas brasileiras das empresas controladas por estrangeiros instaladas no país, para fins de propriedade da terra. Pois agora voltam as notícias de que o projeto de lei que facilita a aquisição por estrangeiros vai tramitar no Congresso Nacional[1]. E, ao que parece, é uma medida que tenta contrabalançar a série de fracassos na atenção à agricultura brasileira por parte do atual governo. Porém, o resultado pode gerar mais danos ao interesse nacional.

Nos debates anteriores sobre o PL 4059/2012, algumas questões geraram impasse, impedindo sua continuidade. Tratava-se da ampliação da posse de propriedades por estrangeiros dentro de um município, hoje limitada a 10%, quando de uma mesma nacionalidade estrangeira, ou 25% na soma dos estrangeiros; a autorização para estrangeiros atuarem na chamada “faixa de fronteira” e na Amazônia, bem como a entrada de capital estatal de outros países. Também aparecia no debate a morosidade processual na análise dos casos. Na linha de frente do lobby pela estrangeirização estão os setores de florestas plantadas e mineração, que argumentam não ter segurança jurídica para realizar mais investimentos de ciclo longo.

Estamos tratando de dois interesses que estão desequilibrados enquanto nitidez conceitual e de objetivos: de um lado a objetividade da maximização dos lucros pelos interessados nas terras; de outro o hoje turvado conceito de “interesse” ou “soberania” nacional. Aparentemente, a solução proposta pelos defensores da mudança legal será garantir a maximização de ganhos nas terras pelos estrangeiros como interesse nacional, e ponto. Afirma-se que empresas estrangeiras garantirão eficiência de gestão, ganhos tecnológicos e acesso a financiamento internacional. Busca-se retirar os entraves burocráticos (leia-se controle sobre quem e em o que será investido), e flexibilização de controles hoje realizados pelo Incra. Mas, pode ser de outro jeito?

Sim, pode ser de outro jeito, afinal comprar terra não é como comprar um smartphone. O que é feito na terra gera benefícios para o proprietário, mas também gera repercussões nos vizinhos, na comunidade, na população. Alguns pontos deveriam entrar no debate que subordine os interesses individuais ao bem comum nacional:

1. caracterizar como questão de soberania nacional e alimentar os impactos na diversidade da produção brasileira de alimentos e a limitação do controle estrangeiro sobre o circuito da produção e distribuição dos produtos (dentro e fora da porteira);

2. evitar que a valorização das terras pela nova demanda estrangeira inviabilize a continuidade das atividades familiares e de médios produtores, e garantir compensações nesses casos;

3. proibir áreas que são objeto de demandas de reconhecimento territorial de populações indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais façam parte da oferta para estrangeiros;

4. garantir que o saldo da exploração deve gerar resultados ambientais mais expressivos que os alcançados pelos proprietários nacionais, seja em desmatamento evitado, remoção de carbono, preservação da biodiversidade e outros;

5. tornar transparentes os critérios para ampliar a área destinada para estrangeiros dentro de um município, a fim de que a localidade não se torne refém de apenas um empreendimento, ou dos interesses de um outro país. Há na própria legislação em vigor mecanismo que autoriza ampliar a aquisição quando “se tratar de imóvel rural vinculado a projetos julgados prioritários em face dos planos de desenvolvimento do país”[2]. Tais condições inviabilizariam a entrada de estrangeiros? A análise caso a caso poderia elucidar, e o exercício em si é o exercício de soberania nacional.

A desconsideração de tais quesitos demonstra que a escolha por eventuais ganhos produtivos e especulativos sobre as áreas adquiridas geram na outra ponta perdedores, sejam os atuais ocupantes das terras ou o conjunto da população. A dinâmica de posse da terra se torna um jogo de “soma zero”. Por exemplo, as áreas nativas de cerrado dobram de preço quando desmatadas e convertidas em lavoura temporária. Isso significa que em até 12 anos os investidores recuperam o capital aplicado em terras, algo inimaginável em investimentos de longa duração. O resultado é a pressão sobre pequenos ocupantes para se desfazerem de suas terras, em nome da atração de investimentos externos. Alguém (de fora) ganha, alguém (de dentro) perde.

Muito se fala sobre a impossibilidade de identificar a nacionalidade nos capitais que se interessam em investir em terras no Brasil, pois se tratam de investidores globais. Outros afirmam que a legislação tratará de regularizar o que acontece na prática, dando segurança jurídica aos investimentos em curso. Mas, em essência, estamos tratando de uma forma de drenar mais recursos gerados no Brasil para fazer parte de um circuito de renda e riqueza que não retorna na mesma intensidade que sai do país. Somam-se a esse impacto os custos adicionais aos produtores locais, traduzidos em maior dificuldade de acesso a crédito, valorização especulativa das terras, custos operacionais maiores, além dos riscos ambientais e supressão de direitos territoriais. Dessa forma, estamos falando sim da submissão do interesse nacional frente a um ganho que pode ser gerado pelos próprios brasileiros, desde que tenham acesso aos mesmos incentivos a serem disponibilizados aos de fora.

Outro caminho seria dar a oportunidade para outras brasileiras e brasileiros, com pouca ou nenhuma terra, de produzirem melhores alimentos, já que a proposta de legislação pressupõe disposição dos atuais proprietários deixarem pacificamente seus imóveis a um preço justo. Tecnologia e eficiência de gestão nas propriedades já são de domínio público. A morosidade e o controle sobre o domínio das terras poderia ser modernizado, através de instrumentos como blockchain[3], substituindo o arcaico sistema cartorial brasileiro. O financiamento externo poderia ser reorientado conforme o controle e interesse nacionais, focado no valor da produção e externalidades positivas sociais e ambientais, e não na especulação imobiliária. Tal proposta alternativa poderia atingir os mesmos objetivos do projeto de facilitação da compra por estrangeiros, e ainda democratizar o acesso a terra no Brasil.

Notas

[1]Projeto que libera compra de terra por estrangeiro é … – Folha – Uol.” 3 mar. 2019,  Acessado em 3 mar. 2019.

[2]Lei nº 5.709, de 7 de outubro de 1971 – Planalto.”  Acessado em 6 mar. 2019.

[3]Entenda o que é blockchain, a tecnologia por trás do bitcoin ….” 1 fev. 2018, . Acessado em 6 mar. 2019.

(*) Analista do Incra, ex-Presidente do Incra entre junho de 2012 e março de 2015

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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