Opinião
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23 de março de 2019
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11:50

A história da ditadura contada pelo Brasil Paralelo (por Fernando Nicolazzi)

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Sul 21
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A história da ditadura contada pelo Brasil Paralelo (por Fernando Nicolazzi)
A história da ditadura contada pelo Brasil Paralelo (por Fernando Nicolazzi)
Manifestação contra a ditadura no Rio de Janeiro em 1968 | Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Fernando Nicolazzi (*)

Estreará em alguns cinemas brasileiros, no próximo dia 31 de março, o vídeo 1964: Entre armas e livros. A produção é da Brasil Paralelo, uma produtora gaúcha que se define como “sociedade empresária independente, apartidária e imparcial”. Segundo o jornal O Globo, a produção defenderia a ditadura e por isso contaria com Eduardo Bolsonaro entre seus principais divulgadores. A empresa, contudo, afirma que, “como todo conteúdo gerado pela Produtora”, o vídeo “não possui qualquer viés político ou ideológico”: trata-se de “uma análise puramente historiográfica do Regime Militar no Brasil”.

Como seria imprudente afirmar algo a respeito do que não foi ainda disponibilizado ao público, tomo aqui ao pé da letra a expressão “como todo conteúdo gerado pela Produtora”, e sugiro analisar outras produções da empresa para avaliarmos a justeza ou não daquelas definições. Assim, utilizo um material intimamente ligado ao mesmo projeto sobre o “regime militar”, prefigurando em certa medida o que se poderá encontrar nos cinemas no contexto das comemorações do golpe de 64.

Trata-se do livro digital Entre mitos e verdades. A história do regime militar. A obra não tem um autor ou autora claramente identificados, mas parece indicar que Henrique Zingano e Mariana Goelzer são os responsáveis pelo conteúdo que é carimbado com o selo da marca Brasil Paralelo. Ou seja, é um objeto válido para testarmos a “imparcialidade” e a falta de “viés político ou ideológico” de todo “conteúdo gerado pela Produtora”.

Embora seja intitulada “a” história do regime militar, a proposta da obra é basicamente tentar refutar três “fatos” particulares a respeito do período. Antes disso, porém, um preâmbulo insere o leitor no universo ideológico da empresa. Logo na primeira página e sem maiores mediações, o livro aborda uma realidade complexa que é ali resumida em uma perspectiva puramente dicotômica. Segundo ela, ao longo do século XX o mundo estaria dividido em apenas duas formas antagônicas de compreender suas “engrenagens sociais”, o capitalismo de um lado, o socialismo de outro (p. 5 e 6). (Ver abaixo vídeo sobre o mesmo tema , produzido pelo canal Historiar-se, no Youtube)

Esta polarização política teria interferido no ambiente intelectual, contaminando as ciências sociais com “investigações enviesadas” que ainda hoje organizariam nossa forma de perceber o mundo. A razão disso seria a “infiltração” de intelectuais marxistas nas universidades patrocinada pela União Soviética, sobretudo nas áreas das humanidades. O resultado dessa situação é apresentado no livro: se no “mundo direto e concreto” os EUA foram vitoriosos, no “universo das ideias” a vitória foi da “esquerda” (p. 7 e 8).

Isso parece dar margem para se defender que “uma parcela majoritária dos historiadores” teria mentido sobre os fatos. A ideia da mentira não é dita literalmente, mas disfarçada por uma estratégia retórica, sugerindo que tal parcela “nem sempre se manteve fiel à veracidade dos fatos” (p. 8). Como não há dados substantivos para sustentar essa afirmação, não é errado supor que nos encontramos no reino da mera opinião ou, mais precisamente, da desonestidade intelectual: uma acusação desprovida de provas.

O preâmbulo termina afirmando que em função daquela referida “infiltração”, a história do regime militar iniciado em 1964 no Brasil teria ficado impregnada pelas fabulações de um relato “parcial e impreciso” oferecido (imagino eu) pela esquerda soviética. A proposta da obra, nesse sentido, é “resgatar a outra parte, silenciada, dessa trajetória” (p. 8).

Ora, a expressão não poderia ser mais contundente para colocar em xeque aquela “imparcialidade” sustentada pela empresa, já que esta se situa claramente em uma das partes que constituem a realidade dicotômica do mundo. Assim, não durou dez páginas a primeira afirmação feita pela empresa. Estamos, portanto, diante de um relato confessadamente parcial, restando averiguar se ele é também impreciso. Vejamos fato a fato.

Fato 1, “a ameaça comunista nunca existiu”. O intuito aqui é provar que havia uma ameaça comunista no Brasil e que tal ameaça seria condição suficiente para justificar, ontem e hoje, o golpe de 1964. O capítulo começa afirmando que os ecos da Revolução Russa chegaram ao Brasil e que “essa reverberação não derivou exclusivamente de um desejo espontâneo dos brasileiros”, mas contou com o papel decisivo da estratégia leninista para expandir o comunismo pelo planeta (p. 9). Deixando esta estratégia de lado, destaco a informação anterior de que havia de fato “um desejo espontâneo dos brasileiros” pelo comunismo.

Cabe de início destacar que parte do fato que supostamente se pretende refutar já é senso comum há décadas nas pesquisas historiográficas acadêmicas. O conhecimento disponível hoje mostra muito bem como perspectivas comunistas agiram na cena política brasileira desde o início do século XX, da mesma forma como conhecemos bem o anticomunismo que procurou combatê-las. Quanto a isso, não há o que contestar em relação ao capítulo.

O que, todavia, o livro não consegue explicar é porque se tratava efetivamente de uma “ameaça”, como sugere o título do capítulo. Se havia um “desejo espontâneo dos brasileiros”, por que tal desejo deveria ser algo tratado como “ameaça” e evitado por meio de uma quebra violenta da constitucionalidade como foi o golpe de 64? Por que razão tal anseio revelava “os riscos a que a democracia brasileira estava exposta”, como lemos na obra (p. 18)? Enfim, o livro é impreciso ao sustentar uma incongruência entre um “desejo espontâneo dos brasileiros” e a “democracia brasileira”. Ou, talvez, manifesta uma compreensão de democracia desligada da vontade popular.

A imprecisão persiste quando é sugerido que João Goulart desrespeitou as “demandas populares” no famoso discurso da Central do Brasil, em março de 1964, onde enunciou medidas socialmente engajadas de seu governo (p. 24). Estão disponíveis hoje para a análise historiográfica pesquisas de opinião feitas à época pelo Ibope logo após o discurso, mostrando que um número expressivo dos entrevistados aprovava as medidas anunciadas por Jango na ocasião. Outras pesquisas ainda indicavam a aprovação ao governo (em São Paulo, 42% o considerava ótimo e apenas 19% péssimo) e que a maioria das pessoas entrevistadas era favorável às reformas propostas (em São Paulo, 79% as consideravam “necessárias”).

Ou seja, com base em que dados empíricos a empresa fundamenta a interpretação de que Jango não acatava “demandas populares”? Ficamos com a impressão de que não era efetivamente o socialismo o que aparecia como “ameaça”, mas sim a vontade popular. Afinal, nem todas as classes sociais no Brasil estão dispostas a respeitá-la e nossa história é repleta de exemplos disso.

Em seguida, percorremos o Fato 2, “o regime militar foi um golpe, pois não teve apoio popular”. O intuito aqui é tentar, após desconsiderar as pesquisas que mostravam o respaldo social do governo de João Goulart, sustentar que o golpe era um anseio da sociedade como um todo. Permanecemos, contudo, sem saber o que ocorreu com aquele “desejo espontâneo” pelo comunismo que simplesmente desapareceu de uma hora para outra, cedendo espaço a manifestações que procuravam “enfrentar as ofensivas comunistas” (p. 32).

Além disso, tampouco sabemos se neste caso era algo igualmente “espontâneo” ou se era apenas um apoio interessado de determinados setores da população, que provavelmente enriqueceram com o aumento da concentração de renda promovida logo após o golpe. Esta dúvida surge levando em consideração os setores sociais que são mencionados no livro como exemplos de “apoio popular”. Destacam-se camadas conservadoras da classe média urbana, apoiadas pela Igreja Católica, e parte do empresariado nacional. Some-se a isso a atuação de grandes empresas de comunicação e o apoio de “relevantes instituições”, como a OAB e a CNBB após o golpe consumado.

Ou seja, se é inegável que o golpe teve uma considerável participação civil e um amplo apoio de elites sociais conservadoras, inclusive com empresários financiando e frequentando grupos de sequestro e tortura, qual o fundamento empírico que torna possível discutir o “apoio popular” que dá título ao capítulo? Qual é a lógica que se estabelece por trás desta problemática junção entre “golpe” e “apoio popular”? Deveríamos concluir que, havendo apoio quantitativamente relevante ao golpe (algo, de resto, não demonstrado na obra), a quebra da constitucionalidade e suas consequências (tortura e repressão) estariam justificadas? Novamente aqui, o relapso documental e as imprecisões interpretativas longe de elucidarem alguma coisa apenas lançam os fatos em nova sombra.

Chegamos, enfim, ao Fato 3, “os guerrilheiros lutavam pela democracia”. Trata-se de discussão que igualmente já possui significativa fortuna crítica na historiografia, mostrando a atuação de grupos pouco afeiçoados à democracia lutando contra a ditadura. Nada de novo no ar. Tampouco é novidade a estratégia usada pela Brasil Paralelo, ao se valer do que ficou conhecido como teoria dos dois demônios, por meio da qual se pretende justificar as restrições democráticas realizadas desde o início do golpe como uma mera reação a supostas restrições que seriam realizadas pela outra “parte” (a despeito mesmo do apoio popular, mapeado por pesquisas, a esta outra parte).

Em outras palavras, o golpe teria sido na verdade um contragolpe para conter o socialismo que seria implantado no país. Nas palavras contidas no livro, “o risco de um golpe socialista no Brasil era evidente. A ocupação do poder não era leviana”. A sequência do argumento é bastante curiosa, pois indicaria quais os objetivos dos militares com a violência cometida: “desmantelar as estruturas de poder da extrema esquerda, a fim de restaurar um ambiente de plenitude democrática; e promover uma reorganização econômica e o combate à corrupção” (p. 41 e 42).

Obviamente, não encontramos nem uma linha a respeito do insucesso da missão, já que os anos seguintes, como comprova a historiografia contemporânea, viram a implementação do terrorismo de Estado, o aumento das desigualdades sociais e casos hoje conhecidos de corrupção sistêmica no governo militar. Seria o caso de entendermos que, na verdade, estes foram os sucessos da missão para a empresa?

O capítulo continua com inacreditáveis distorções factuais. No primeiro ano do golpe tudo teria seguido na mais completa normalidade e os militares “tinham se limitado” a cassar direitos políticos de algumas poucas pessoas, definindo um cenário de “baixo nível de intervenção” (p. 42 e 43). O leitor fica sem saber se as conhecidas práticas de repressão e tortura iniciadas logo em 1964 e documentadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) entrariam no cômputo deste “baixo nível de intervenção”.

De todo modo, a normalidade logo cedeu espaço para o aumento da violência estatal, já que “os militares eram impelidos” a oprimir “para se protegerem” da esquerda que queria chegar ao poder (p. 45). Seguem páginas onde os variados grupos políticos de esquerda que optaram pela luta armada são descritos suscintamente. Aqui, um flagrante anacronismo é observado, já que a obra conduz ao entendimento equivocado de que a violência estatal teria ocorrido apenas a partir do AI-5 em 1968 e tão somente como resposta à formação destes grupos radicais, desconsiderando as evidências disponíveis que comprovam a existência de centros de detenção e tortura funcionando, por exemplo, em universidades, refinarias e navios desde 1964.

De saltos em saltos, chegamos enfim à Constituição de 1988 cujas diretrizes a empresa sustenta, sem comprovar, terem sido pautadas pela “extrema esquerda” (p. 65). A obra se encerra com o já gasto chavão propalado há anos por Olavo de Carvalho, de que após a ditadura o socialismo teria dominado a “guerra ideológica” por meio de narrativas inverídicas. Assim, o livro seria “um esforço de jogar nas sombras as mentiras, para que a luz finalmente possa recair sobre a parte da realidade que, calada, permaneceu na penumbra” (p. 65).

Como se percebe, se a ideia de imparcialidade efetivamente não se aplica a esta produção, tampouco podemos supor tratar-se de uma “análise puramente historiográfica”, já que faltaria um tanto para que pudesse ser definido como análise e outro tanto para que pudesse ser chamado plenamente de historiográfico.

Não obstante, concordo que a obra conta sim uma história (e não “a” história, como se pretende) e que ela segue um método bastante particular. Eu o definiria como método Tonho da Lua, por meio do qual a realidade é encarada sob um viés puramente dicotômico, separando a Rutinha-boazinha de um lado e, de outro, a Raquel-malvada. Aí, bastaria encaixar o que quer que seja em cada um dos lados e pronto, a ilusão do entendimento estaria feita.

Porém, é sabido que o produto final do método Tonho da Lua são apenas esculturas de areia que não resistem ao mais leve movimento das águas. O mesmo ocorre com o livro aqui resenhado, pois uma simples leitura já é suficiente para constatar equívocos factuais, erros interpretativos, desleixo documental e certos disfarces terminológicos. O termo tortura que nunca aparece no livro, por exemplo, se transforma em “extorsão de informação” e terrorismo de Estado é convertido em “política coibitiva”.

Ou seja, trata-se de uma obra com claro viés político e ideológico, resultando paradoxalmente em algo que seus próprios autores e colaboradores condenam. O problema, gostaria de deixar claro, não é a existência do viés, mas sua vergonhosa negação. Supondo, assim, ser este um produto que mostre como são “todos os conteúdos gerados” pela Brasil Paralelo, podemos já fazer algumas inferências a respeito do vídeo que estreará em 31 de março.

Se este for, então, o padrão de história que a empresa tem para oferecer, sugiro aos interessados em conhecer nosso passado, gostem eles da Rutinha ou da Raquel, que busquem outras fontes de conhecimento menos imprecisas. Ou mantenham sempre à mão o código de defesa do consumidor, pois ele poderá ser útil para quem achar que comprou gato por lebre.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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