Opinião
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23 de fevereiro de 2019
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16:43

Segundas impressões sobre o voto do ministro Celso de Mello (por Gleidson Renato Martins Dias)

Por
Sul 21
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Ministro Celso de Mello (Foto: STF/SCO/Divulgação)

Gleidson Renato Martins Dias (*)

Segundas Impressões sobre o Histórico Voto do Ministro Celso de Mello sobre a Criminalização da Homotransfobia: preocupação sobre a possível criação da “raça LGBT” (i)

“Se pensarmos o direito como uma linguagem aberta e entendermos que essa é uma área da ação humana anterior aos estudos da norma, da justiça e sua conformação como ciência, podemos iniciar um debate sobre o racismo e a epistemologia no direito. O Direito é da ordem da existência humana e dela não podemos prescindir.

Se colocarmos o Direito numa perspectiva multidimensional, transdisciplinar e numa linguagem aberta, teremos um tipo de saber humano, a partir de um lugar que pensa o todo num horizonte sempre contextualizado e valorativo [ii] (Sergio São Bernardo)

Aqui mesmo neste espaço acabei socializando um conceito em construção, “Hermenêutica Jurídica da Branquitude” no qual faço algumas observações, a partir de uma sentença, de como este fenômeno acaba ajudando a desviar a função teleológica das cotas raciais, em síntese, costumo salientar que a Hermenêutica Jurídica da Branquitude é o fenômeno pelo qual, em qualquer possibilidade de interpretação, quando a matéria refere-se a questões raciais, a interpretação, na enormidade das vezes, prejudicará o avanço do combate ao racismo. HJB é a base ideológica (consciente ou inconsciente, direta ou indireta) que afeta os operadores jurídicos latu sensu, isto é doutrinadores, ministros, desembargadores, juízes, promotores, defensores públicos, advogados, delegados e servidores da Administração Pública. Ao analisarem e/ou produzirem algum regramento e/ou posicionamento jurídico não raras vezes irão materializar uma das formas do Racismo.

Em outras palavras dá para explicar da seguinte maneira: havendo possibilidade de interpretação esta interpretação será contrária aos interesses do combate ao racismo mantendo o que sociologicamente denomina-se de “privilégio branco”. Ela se esconde na tecnicidade (a tecnicidade sempre é apresentada como imparcial, sempre foi utilizada para justificar injustiças e para blindar governantes, políticos, juristas e etc). A tecnicidade esconde a subjetividade da objetividade.

A Hermenêutica Jurídica da Branquitude também se debruça na ignorância e/ou falta de comprometimento de não-negros em estudarem o fenômeno racial (omissão). Bebem da fonte que acredita (real ou retoricamente) na inexistência do racismo ou da vitimização de negros, faz leitura superficial do fenômeno social racismo e todos estes fatos e fatores influenciarão na metodologia interpretativa e, por conseguinte, no resultado final, seja ele um artigo, texto, ato administrativo, um despacho, sentença ou acórdão. Rui Portanova poderia chamar este fenômeno de “Motivações Ideológicas da Sentença” (Portanova, 2003). Este me parece o caso novamente, onde a interpretação de forma consciente ou não acaba fragilizando o combate ao racismo e a discriminação racial.

Neste sentido, volto a este espaço democrático e necessário para o indispensável e respeitoso debate de idéias, argumentos e interpretações para, com o máximo Agô e a máxima Vênia, discordar central e radicalmente da tese apresentada no texto denominado “Primeiras impressões do histórico voto do Min. Celso de Mello sobre a criminalização da homotransfobia[iii], inclusive reverenciando o lugar de fala lembrado pelo autor no texto referido e, também na Tribuna do STF ao defender seu ponto de vista.

E de onde falo? Sou um homem negro, candomblecista, estudioso da temática racial, atualmente membro da Coordenação Nacional do Movimento Negro Unificado, fundador do Fórum Nacional de Comissões de Heteroidentificação, autor de alguns textos e organizador de um livro com o propósito de disputar epistemologicamente, a partir de uma hermenêutica antirracista, o direito enquanto ciência, e/ou, nas palavras de Sergio São Bernardo, analisando, sempre o “racismo e a epistemologia no direito disputando o saber jurídico numa perspectiva racial”.

Não há dúvidas que este debate, e o posicionamento final do STF será histórico, também não há, e nem poderia haver, divergências sobre a cabal necessidade de criminalização da homotrasnfobia, bem como, sobre a omissão do Congresso Nacional. Existem outras preocupações de ordem processual e competência, no entanto não abordarei neste momento, por entender que existem olhos atentos a estes pontos. A mim cabe problematizar algo o qual, talvez só nós temos preocupação visceral. A inquietação que trago é central e preocupante: a criação da “raça LGBT” e a relativização do conceito constitucional de racismo.

O pleito, conforme relatado no segundo parágrafo do texto baseia-se no entendimento que a Constituição Federal exige a criminalização da homotransfobia “pela ordem de criminalizar relativa ao racismo (art. 5º, XLI, na acepção político-social (e não biológica) do termo, enquanto, qualquer interiorização de um grupo social relativamente a outro”.

Diz ainda que a “homotransfobia se enquadraria no inciso constitucional relatado, haja vista que o heterossexismo e cissexismo inferiorizam pessoas LGBTI+ relativamente a pessoas heterossexuais e cisgêneras, configurando-se assim, como ideologias racistas”. Asseverando, que este conceito político-social de racismo já esta afirmado pelo STF “no famosíssimo julgamento, que considerou o antissemitismo (discriminação contra judeus)”

O problema, é que o inciso XLI, do artigo 5º da CF/88 diz, textualmente, o seguinte: “XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.

Ora, não existe relação com o racismo, mas sim, com os direitos fundamentais. O direito a liberdade sexual e/ou afetiva, ou ainda o direito a identidade de gênero são direitos fundamentais, construído pela luta do público LGBT, no entanto não tem relação com o racismo.

Destaco outros equívocos que se complementam: 1º tal relação encontraria amparo na acepção político-social (e não biológica) do termo racismo; 2º é que a relação de pessoas LGBT teria guarida no entendimento político-social do termo racismo por estarem inferiorizados, enquanto grupo, pelo heterossexismo e o cissexismo.

Obviamente a visão biológica de racismo é ultrapassada e inaceitável. Também é verdade que o STF no HC 82.424/RS concluiu que a raça é uma construção social, por este motivo utilizo o termo raça-sociológica (DIAS, 2018). No entanto, há colossal diferença entre um grupo inferiorizado e discriminado por ser fenotipicamente negro/a de um grupo discriminado por orientação sexual e/ou identidade de gênero. Não por acaso chamamos de homolesbotrasnfobia (entre outras nomenclaturas) e não de racismo. O racismo tem direta relação com a raça (sociológica) enquanto a outra forma de discriminação não tem esta relação.

Ao aceitarmos o argumento de que a raça é uma construção social e que esta construção abarca grupos vulneráveis não-racializados, engloba qualquer grupo, independentemente da questão racial, acabaremos possibilitando que qualquer discriminação a grupos seja considerada racismo. Nesta compreensão poder-se-ia dizer que as mulheres não-negras sofrem racismo, pois são inferiorizadas pelo machismo. Da mesma forma daria para aviltar que as pessoas obesas sofrem racismo manifestado por pessoas magras e assim por diante em uma desconstrução interminável e inaceitável do conceito de racismo.

Ademais, de forma consciente ou inconsciente, com dolo ou culpa, com intencionalidade ou não estaríamos construindo a raça LGBT. Pois racismo só pode ser sofrido por grupos racializados (negros/as, indígenas, ciganos, judeus). Ou seja, a população negra é discriminada por ser da raça (sociológica) negra. Os indígenas são discriminados por serem da raça (sociológica) indígena, portanto, o público LGBT só pode sofrer racismo se for um grupo racial. Criaríamos a raça LGBT.

Sublinha-se que a lei 7716/89, trazida à ação como argumento legal para inclusão do entendimento de crime para homolesbotransfobia diz no seu artigo 1º que “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” isto é, em nenhum momento está inserido orientação sexual e/ou identidade de gênero. Não podemos confundir discriminação, latu sensu, com racismo que é uma discriminação stricto sensu, ou ainda, não há de se confundir discriminação a mulheres, a pessoas obesas, a pessoas com deficiência (entre outras) ais quais tem, por óbvio, questões culturais e políticas específicas com discriminação racial a qual tem outra finalidade e natureza sociológica, filosófica e até mesmo jurídica.

Há a necessidade urgente de entendermos o racismo estrutural e estruturante não como uma frase de efeito, mas sim pela sua perversa resultabilidade. Se entendermos isso, poderemos compreender que não é acaso verificarmos o resultado do racismo estrutural e estruturante até mesmo no público LGBT, pois se fizermos um recorte racial veremos que são os gays e travestis negros que sofrem (proporcionalmente) os maiores ataques da homolesbotransfobia e por este motivo são os que mais são assassinados. A solidão do publico LGBT encontra nos negros e negras LGBT’s suas maiores vítimas. A mulher negra lésbica e as travestis negras encontram mais resistência, ataques e violência das que não tem a “marca”, fenotípica da população que foi escravizada por mais de 350 anos neste país. Por este motivo, o da centralidade do racismo brasileiro em todas as relações sociais e culturais é que não podemos descuidar de conceitos e conquistas históricas para o enfrentamento do racismo em todas suas esferas e não podemos arredar um só milímetro da vigia e responsabilidade que temos com as conquistas específicas de determinada temática.

A criminalização da homolesbotransfobia é uma necessidade urgente a qual, todas e todos nós, somos parceiros e parceiras, no entanto a homolesbotransfobia, o racismo, o feminicídio, tem conceitos, argumentos e especificidades da pauta de luta de cada grupo. Ademais a necessidade de criminalização da homotransfobia tem argumentos constitucionais e doutrinários os quais não fazem relação com o racismo exatamente por ser outro fenômeno social como nos ensina, por exemplo, de Roger Raupp Rios em “Direito da antidiscriminação, criminalização da homofobia e abolicionismo penal[iv].

Contudo, cabe parabenizar o momento histórico de possibilidade de criminalização deste crime de ódio, e lutarmos juntos e juntas pela construção de um mundo sem racismo, sem machismo e sem homolesbotransfobia.

Notas

[i] Em referência ao texto “Primeiras impressões do histórico voto do Min. Celso de Mello sobre a criminalização da homotransfobia, publicado no dia 17 de fevereiro de 20 19, no Justificando, disponível em: http://www.justificando.com/2019/02/17/primeiras-impressoes-do-historico-voto-do-min-celso-de-mello-sobre-a-criminalizacao-da-homotransfobia/

[ii] O saber jurídico pode ser disputado dentro da perspectiva racial? Disponível em: http://www.justificando.com/2016/10/31/o-saber-juridico-pode-ser-disputado-dentro-da-perspetiva-racial/

[iii] http://www.justificando.com/2019/02/17/primeiras-impressoes-do-historico-voto-do-min-celso-de-mello-sobre-a-criminalizacao-da-homotransfobia/

[iv] Disponível em: file:///C:/Users/bm2321947/Downloads/Direito_da_antidiscriminacao_criminaliza.pdf

(*) Especialista em Direito Público pelo o Instituto de Direito Contemporâneo – IDC , Bacharel em Direito pela PUC-RS, Fundador do Fórum Nacional de Comissões de Heteroidentificação e Membro da Coordenação Nacional (2017-2019) do MNU – Movimento Negro Unificado .

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 

 


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