Opinião
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14 de fevereiro de 2019
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16:15

Criminalização do preconceito contra a diversidade sexual e de gênero (por Ramiro Figueiredo Catelan)

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Criminalização do preconceito contra a diversidade sexual e de gênero (por Ramiro Figueiredo Catelan)
Criminalização do preconceito contra a diversidade sexual e de gênero (por Ramiro Figueiredo Catelan)
Ato pela criminalização da LGBTfobia em Porto Alegre. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

Ramiro Figueiredo Catelan (*)

1. Um estudo conduzido nos Estados Unidos por Hatzenbuehler, Keyes e Hasin (2009) [1] demonstrou que, em estados norte-americanos com presença de políticas públicas discriminatórias (como proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo e/ou proibição do sexo homossexual), a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) apresenta prevalência aumentada de transtornos de ansiedade, transtornos de humor, abuso de substâncias e transtornos mentais em geral. Uma revisão sistemática da literatura realizada por King et al. (2008) [2] apontou que, em comparação com pessoas heterossexuais, pessoas não-heterossexuais apresentam 1,5 vezes mais risco de desenvolver sintomas de depressão e ansiedade, duas vezes mais risco e tentativas de suicídio e 1,5 vezes mais chances de apresentar problema com abuso de álcool e outras substâncias. Outra investigação, realizada em 2014, apontou que jovens LGBT que cresceram em estados norte-americanos classificados como altamente estigmatizantes para minorias sexuais e de gênero tiveram uma resposta ao cortisol reduzida em comparação àqueles que cresceram em estados classificados como menos estigmatizantes, ou seja, os efeitos do estresse crônico a que essas minorias são submetidas impacta em marcadores biológicos, trazendo-lhes prejuízos [3].

2. O Brasil é o país que mais assassina transexuais e travestis, em números absolutos. De 2008 a 2016, 868 pessoas trans foram mortas por crimes de ódio [4] . Esses números certamente são subnotificados, pois as vidas trans parecem ser negligenciadas pelo Estado brasileiro. O despreparo de profissionais da saúde [5] faz com que a população LGBT receba tratamento piorado nos serviços públicos e evitem o acesso, o que pode estar relacionado a dados gravíssimos envolvendo a prevalência de infecções sexualmente transmissíveis na população LGBT. Para se ter uma ideia, a prevalência estimada de HIV em mulheres trans no Rio Grande do Sul é de 25% [6].

3. Diversas evidências poderiam ser descritas neste texto. Existe uma farta literatura nacional e internacional documentando os prejuízos que o preconceito contra diversidade sexual e de gênero causa à população LGBT. Falta de acesso à educação, dificuldades no mercado de trabalho, barreiras no acesso à saúde, risco elevado de desenvolvimento de transtornos mentais, ausência de apoio familiar, bullying, danos à saúde física, maiores chances de sofrer violência e assassinato. Estes são alguns dos muitos entraves que impedem que pessoas LGBT possam construir vidas valiosas e seguras.

4. A ciência vem apontando há algum tempo que países que possuem mecanismos regulatórios e políticas públicas que protegem e garantem os direitos da população LGBT proporcionam diminuição de todos os riscos acima mencionados. Na esteira desta afirmação, podemos concluir que a proposta de criminalização do preconceito contra a diversidade sexual e de gênero proposta pelo Supremo Tribunal Federal é uma questão de garantia de direitos e proteção à vida de milhares de pessoas, que recorrentemente são ameaçadas pela violência e discriminação institucionalizadas no ordenamento social brasileiro. Existências são ceifadas por conta da intolerância, por conta de uma cultura que não valoriza a aceitação, refuta a diversidade da vida e promove ojeriza à dissidência.

5. Precisamos parar de banalizar, infantilizar e patologizar o preconceito. Quem emite preconceito não está doente, como sugere o sufixo “fobia” (que indica uma reação de ansiedade). A pessoa preconceituosa precisa ser localizada como uma agressora, que comete violência, que discrimina, machuca e prejudica. Preconceito é uma forma generalista e estereotipada de avaliação que faz com que julguemos outras pessoas com base em atributos negativos associados ao grupo social à qual a pessoa pertence. É um fenômeno psicossocial complexo e que precisa de medidas individuais, interpessoais e sociais para ser combatido.

6. Criminalizar o preconceito contra a população LGBT não contribuirá para o encarceramento em massa, problema grave que nosso país enfrenta. Não há evidências que sustentem essa afirmação. A criminalização do preconceito e injúria racial – que, frise-se, só ocorreu após muita pressão dos movimentos sociais negros – serviu para garantir no ordenamento jurídico que expressões explícitas de preconceito sejam devidamente punidas. A despeito disso, o Brasil é um país visceralmente racista. Contudo, sem esse mecanismo criminalizante, a situação poderia ser muito pior. O mesmo acontece com o preconceito contra diversidade sexual e de gênero. É preciso criar mecanismos que constranjam e coajam os agressores. A ausência disso provoca permissividade e legitima as agressões diariamente sofridas por uma população absolutamente vulnerabilizada e estigmatizada.

7. Em tempos de ódio e intolerância crescentes, nossa sociedade precisa desenvolver estratégias para mitigar a violência e promover uma cultura de respeito. O estresse e o preconceito que a população LGBT sofrem ensinam que somos fracos, inúteis e errados; que nossas vidas não valem a pena e não merecem ser protegidas. Precisamos promover uma mudança radical em direção ao oposto. A diferença e a diversidade humana, mais especificamente a diversidade sexual e de gênero, precisa ser reconhecida, afirmada, validada e reforçada. Aquilo que diverge do que somos não deve nos ameaçar, reduzir ou aniquilar, mas engrandecer, qualificar e ampliar. Conviver de maneira minimamente harmônica com a diferença é fundamental. Sem isso, estamos fadados à falência social.

(*) Psicólogo, mestre em Psicologia Social e doutorando em Psicologia.

Referências:

[1] Hatzenbuehler, M. L., Keyes, K. M., & Hasin, D. S. (2009). State-Level Policies and Psychiatric Morbidity In Lesbian, Gay, and Bisexual Populations. American Journal of Public Health, 99(12), 2275–2281.doi:10.2105/ajph.2008.153510

[2] King, M., Semlyen, J., Tai, S. S., Killaspy, H., Osborn, D., Popelyuk, D., & Nazareth, I. (2008). A systematic review of mental disorder, suicide, and deliberate self harm in lesbian, gay and bisexual people. BMC Psychiatry, 8(1). doi:10.1186/1471-244x-8-70

[3] Hatzenbuehler, M. L., & McLaughlin, K. A. (2014). Structural stigma and hypothalamic-pituitary-adrenocortical axis reactivity in lesbian, gay, and bisexual young adults. Annals of behavioral medicine : a publication of the Society of Behavioral Medicine, 47(1), 39-47.

[4] https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/

[5] Costa, A. B., Pase, P. F., de Camargo, E. S., Guaranha, C., Caetano, A. H., Kveller, D., … Nardi, H. C. (2016). Effectiveness of a multidimensional web-based intervention program to change Brazilian health practitioners’ attitudes toward the lesbian, gay, bisexual and transgender population. Journal of Health Psychology, 21(3), 356–368.doi:10.1177/1359105316628748

[6] Costa, A. B., Fontanari, A. M. V., Jacinto, M. M., da Silva, D. C., Lorencetti, E. K., da Rosa Filho, H. T., … Lobato, M. I. R. (2014). Population-Based HIV Prevalence and Associated Factors in Male-to-Female Transsexuals from Southern Brazil. Archives of Sexual Behavior, 44(2), 521–524. doi:10.1007/s10508-014-0386-z

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