Opinião
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27 de fevereiro de 2019
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11:10

A rebeldia de meu pai (por Gustavo de Mello)

Por
Sul 21
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Reprodução

Gustavo de Mello (*)

Nas minhas mãos há uma edição do livro Examen de mi Padre, de Jorge Volpi (editora Alfaguara), Cidade do México. O livro existe em e-book para ler no tablet, eu é que sou um prisioneiro do objeto papel, livro impresso.

“Meu pai morreu dia 2 de agosto de 2014. Ele tinha nos contado que, quando morreu sua mãe, ficou um ano de luto no qual jamais deixou de usar uma gravata preta”. “Eu”, descreve o autor Jorge Volpi na contracapa, “decidi viver meu luto literário e dediquei o ano de 2015 a um livro que me permitisse recordá-lo. Durante dez meses escrevi dez ensaios: acorde sua condição de médico cirurgião. No início sabia que um deles deveria fazer referência a uma parte do corpo, assim como a suas metáforas culturais e políticas. O livro mais íntimo que escrevi também se converteu em uma análise pública: uma autópsia do nosso país, com especial ênfase na guerra contra o narcotráfico, a desaparição dos estudantes de Ayotzinapa, o incêndio da creche ABC de Hermosillo ou os problemas decorrentes da imigração, e com a presença de algumas figuras emblemáticas destes anos de chumbo, em um espectro que se estende de Marcial Maciel a Mamá Rosa. Estas páginas têm como aspiração ser uma memória do meu pai e da minha relação com ele, uma divagação em torno ao corpo e ao nosso degradado corpo social e, em última instância, um réquiem por este país meu, teu, nosso, pragado de fantasmas e cadáveres”

Jorge Volpi poderia estar entre os autores mexicanos contemporâneos mais lidos no Brasil, mas é editado com cautela comercial. Sua obra é bem mais ampla do que a publicada até agora. Sua obra é a mais importante para entender o México de hoje, de AMLO e da última década. Volpi nasceu no México em 1968. É formado em direito, mestre em letras e doutor em filologia hispânica.

Em 2016, a Companhia das Letras publicou Memorial da fraude, onde um respeitado gênio financeiro (com o mesmo nome do autor!) é acusado de cometer um dos maiores desfalques da história. Diretor e fundador da JV Capital Management, prometeu rendimentos incríveis a seus investidores. Uma narrativa que apresenta a construção do capitalismo moderno aos segredos obscuros de Wall Street.

Das dez lições em que se dividem os capítulos de Examen de mi Padre, entre eles o cérebro, coração, escolhi para apresentar este ensaio, comovente, um trecho do “A Mão, ou Do Poder” (a tradução é minha):

(…) “Convertida em amuleto de políticos, investidores e especuladores a mão invisível justificou a desregulamentação do sistema financeiro dos anos 90 que atingiu seu zênite com a revogação, decretada por Clinton, da lei Glass-Steagall que desde a crise de 1929 impedia aos bancos comerciais atuarem como bancos de investimento, e a falta de normas para os produtos financeiros de última geração, duas ações que detonaram a catástrofe econômica.

Aplicadas como se fossem infalíveis, as diretrizes do Consenso de Washington se transformaram em severos planos de austeridade, massivas privatizações de bens estatais, desmonte de serviços públicos – incluindo educação e saúde – e uma liberalização da economia que deixou nossa sociedade à mercê de uns quantos empresários e especuladores. Como se não bastasse, o renascimento do nacionalismo e da religião, com seus subprodutos: intolerância e a xenofobia, ampliaram suas bases. No decorrer deste processo, a esquerda ou foi capaz de propor alternativas ou adotou as medidas econômicas dos neoconservadores sem compreender que se encaminhava em direção ao suicídio. Sem remeter ao descrédito posterior à queda do Muro, a esquerda foi praticamente apagada da tomada de decisões dos países avançados, enquanto que só as suas variáveis populistas ou autoritárias ganharam novos espaços na América Latina (as que começaram a perder nestes meses).

No entanto, os responsáveis pela crise financeira, quer dizer, os políticos de direita ou de esquerda direitizada que desregulamentaram os mercados e patrocinaram a bolha imobiliária, foram os encarregados de enfrentá-la, em particular nas nações europeias. Após a queda do Lehman Brothers em 2008 e o subsequente resgate de centenas de bancos e instituições financeiras com fundos públicos – a maior transferência de capitais da classe média aos ricos da história -, se anunciou uma reforma das finanças internacionais: a oito anos de distância, se comprovou o quanto era vazia a promessa. Nos EUA Obama apenas conseguiu aprovar uma tímida regulamentação e o resto do mundo se conformou com as migalhas. E muito mais grave: ninguém foi responsabilizado pelo que aconteceu. Afora uns quantos defraudadores, nenhum político, especulador, diretor financeiro ou regulador foi sancionado ou levado a juízo, julgamento ou prisão. As elites recuperaram seus privilégios enquanto os serviços sociais continuam sucateados. Depois da queda do comunismo, se exigiu da esquerda democrática uma sonora dissidência e ainda assim sua reputação foi quebrada em mil pedaços; no entanto agora ninguém exige da direita – nem dos liberais que os acompanharam – uma autocrítica comparável.

Mas, insisto, o mais grave é que a ideologia neoconservadora e neoliberal, revestidas de senso comum, egoísmo heroico e ultra individualismo se infiltraram em todos nossos comportamentos e hoje estamos cercados em todos os lugares, como se nadássemos em areias movediças. Seus valores e medos estão presentes nos grandes meios de comunicação; em filmes de Hollywood e na cultura mainstream; nas palavras dos líderes de direita, extrema-direita, centro-direita, nacionalistas, liberais, libertários e da esquerda direitizada; nessa atitude apolítica que prefere não intervir e não se manifestar; e, por último, em uma vida social em que a solidariedade e a persistência na busca da equidade desapareceram como metas centrais da ação política e da discussão pública. Obrigado a escolher entre uma postura e outra me declaro, sim, à esquerda. Meu pai, no entanto, escolheu sempre à direita. Acredito que foi sua particular forma de enfrentar o sistema priista e de se opor ao mundo que lhe tocou viver. Figuras como Camus ou Paz compartilhavam da mesma atitude: sua solitária luta, que lhes redundou em inúmeras críticas e inimizades, que não tinha como principal inimigo a esquerda, senão a ordem intelectual do seu tempo. Em um mundo dominado por um comunismo dogmático, ocupado em esconder os crimes do estalinismo, se atreveram a dissentir.

Pouco importa que agora sejam vistos como direitistas ou queiram englobá-los entre os liberais: eram rebeldes que não se deixaram intimidar pelos pressupostos do seu tempo. Para honrar seu exemplo e do meu pai penso que hoje não fica outra alternativa que se opor a ideologia que nos aprisiona, esse novo dogma que, sob os propósitos da democracia e do livre mercado, são suficientes para resolver todos os nossos problemas, resistem em ver os milhões que não recebem nenhuma de suas bondades. Preservar a rebeldia que meu pai me inculcou desde criança é a única forma que encontro de voltar a apertar sua mão (…)“.

(*) Gustavo de Mello é consultor na área ambiental ([email protected])

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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