Opinião
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17 de fevereiro de 2019
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02:03

A Constituição a caminho da ruína? (por José Felipe Ledur)

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A Constituição a caminho da ruína? (por José Felipe Ledur)
A Constituição a caminho da ruína? (por José Felipe Ledur)
“O Judiciário acabou contribuindo ao esvaziamento de direitos e garantias fundamentais”. (Arquivo/Valter Campanato/ABr

José Felipe Ledur (*)

A Constituição, sinteticamente, conforma o pacto político que estabelece os direitos e garantias fundamentais que a sociedade se reservou no processo constituinte e estabelece as atribuições dos poderes do Estado. A vinculação dos três poderes estatais aos direitos fundamentais é uma exigência inequívoca reconhecida pelo constitucionalismo quando se cuida de Estado que orienta suas ações de acordo com o Direito e com o princípio democrático.

No § 4º do art. 60, a Constituição Federal (CF) protege seu sistema de princípios, direitos e garantias fundamentais em face da atuação de maiorias parlamentares circunstanciais. Proíbe a abolição de “cláusulas pétreas” por intermédio de emenda constitucional. A CF também impõe ao legislador o dever de conformar, por meio de lei, direitos fundamentais asseguradores das liberdades clássicas e de liberdades reais que encontram expressão nos direitos sociais. E o § 1º do art. 5º é definitivo ao estabelecer que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Isso vale para os três poderes da República.

Nestes 30 anos de vigência da CF, o Judiciário acabou contribuindo ao esvaziamento de direitos e garantias fundamentais. O STF oscilou entre a afirmação e a negação a esses direitos e garantias. Por um lado, afirmou direitos de segmentos vulneráveis ao determinar, por exemplo, a demarcação de terras indígenas e respaldar a adoção do sistema de cotas raciais nas universidades; também atuou na afirmação de direitos fundamentais dos trabalhadores ao reconhecer a ampla substituição processual pelos sindicatos, ao afirmar os direitos da mulher gestante e ao decidir que a proporcionalidade do aviso-prévio é imediata.

De outro lado, o STF atuou de forma tíbia ao limitar a força jurídica do mandado de injunção e da ação de inconstitucionalidade por omissão dirigidos a fazer valer os direitos e liberdades constitucionais. Além disso, declarou a ineficácia da Convenção 158 da OIT, instrumento útil diante da omissão legislativa em conter dispensas imotivadas (art. 7º, I, da CF). Recentemente, concorreu à erosão do núcleo do direito fundamental à relação de emprego com a validação de terceirização irrestrita. Também notável é a jurisprudência do STF que invocou “mutação constitucional” para, na prática, suprimir texto de garantia fundamental que exige o trânsito em julgado de decisão condenatória para justificar a prisão.

Por fim, a respeitabilidade do tribunal resta abalada em razão de pedidos de vista que impedem julgamentos, de manipulação da pauta ou de decisões liminares que não são levadas ao julgamento pelo Plenário.

Já os tribunais do trabalho neutralizaram o esvaziamento dos direitos fundamentais dos trabalhadores mediante a imposição de limites à terceirização. Entretanto, toleraram jornadas de trabalho em muito excedentes ao limite de 08 horas diárias (art. 7º, XIII, da CF) e, em lugar de sancionarem responsáveis por atos abusivos no curso da greve, sancionam de maneira reiterada toda a categoria profissional por meio de declarações de abusividade de greves. Com isso, concorrem para esvaziar direito de liberdade clássico assegurado no art. 9º e parágrafos da CF.

O legislador brasileiro historicamente se recusou a conformar direitos fundamentais dos trabalhadores, impedindo o seu exercício pleno ou uso eficaz. Com a reforma trabalhista de 2017, divulgou-se que “nenhum direito fundamental estava sendo atingido”. Em realidade, regras da CLT que até então conformavam direitos fundamentais dos trabalhadores receberam configuração dirigida ao esvaziamento do núcleo desses direitos. São exemplos as regras relativas ao emprego, ao limite do horário de trabalho, à proteção da saúde e do salário, além de possíveis sanções ao titular do direito à assistência jurídica gratuita. Propostas adicionais de esvaziamento do sistema de direitos fundamentais dos trabalhadores encontram-se na PEC 300.

O atual governo compromete o direito fundamental de acesso à informação pública mediante o suspeito Decreto 9.690/19. No terreno das liberdades individuais, o ministro da Justiça visa fazer tábula rasa, por meio de lei, da garantia fundamental da presunção da inocência mediante prisão após julgamento colegiado. Mas concede que em “questões relevantes” isso pode não valer. Para favorecer a quem? Sua solução para a criminalidade passa pelo endurecimento de medidas voltadas a prender acusados e agravar a situação de condenados. Em sintonia com a apologia à violência “contra os bandidos” da campanha eleitoral, propõe o reconhecimento de legítima defesa em caso de escusável medo ou violenta emoção de agentes policiais. Isso quando o contribuinte tem o direito de contar com agentes treinados para agir de modo intimorato e sem paixões… Já o ministro da Economia propõe a criação de subcategoria de trabalhadores, que desista de direitos fundamentais.

Encontra-se na história alemã algo similar ao que se observa no processo de desconstrução material da nossa Constituição. A Constituição de Weimar, de 1919, previu sistema de direitos fundamentais clássicos e sociais. Mas ela sofreu processo inicial de erosão causada pela fraca adesão de parte da população. Jurisprudência e teoria jurídica se restringiram a ver nas normas jusfundamentais um programa sem caráter vinculativo. Mais adiante, no início da ditadura nazista, decretos e leis proibiram os sindicatos e a livre negociação coletiva, removeram a vigência dos direitos fundamentais e suspenderam o princípio democrático, federativo e da separação dos poderes. Suprimiu-se também a liberdade de imprensa e limitações legais foram removidas para permitir a prisão preventiva indefinida, sobretudo de comunistas ou de quem supostamente com eles alinhado. Muniu-se a polícia de poderes que suprimiam limites jurídicos e de fato a sua ação. Já o direito vigente e a competência da Justiça eram mantidos na exata medida em que se conformassem com os objetivos do regime (Frotscher/Pieroth, Verfassungsgeschichte, 2014, p. 297-337).

Enfim, o parlamento, já dominado pelo partido nazista, e com a morte ou exílio de dezenas de deputados socialdemocratas e comunistas, conferiu ao Führer poderes ilimitados. A Constituição de Weimar restou materialmente esvaziada. Nem foi preciso revogá-la formalmente. Carl Schmitt, jurista de Hitler considerado o “coveiro da República de Weimar”, escreveu que é o Führer quem protege o Direito.

A comparação com experiência estrangeira deveria chamar à reflexão e à responsabilidade cidadãos, imprensa, partidos políticos democráticos e agentes públicos diante do processo de degeneração e deformação do sistema político e de direitos e garantias fundamentais que o país atravessa. Resta ver se cidadãos e sociedade civil serão capazes de superar a paralisia e se o Judiciário será capaz de recuperar padrões éticos que o habilitem a exercer a responsabilidade pela prevalência do sistema de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e do Estado Democrático de Direito, com recusa à tutela ou ameaça, seja qual for a sua origem.

(*) Desembargador do trabalho aposentado e doutor em Direito do Estado.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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