Opinião
|
5 de janeiro de 2019
|
11:50

Tempos difíceis (por Franklin Cunha)

Por
Sul 21
[email protected]
Tempos difíceis (por Franklin Cunha)
Tempos difíceis (por Franklin Cunha)
Eichmann e seus superiores achavam que podiam escolher com quem coabitar a Terra. (Reprodução/Youtube)

Franklin Cunha (*)

“Os psicopatas estão sempre entre nós. Em tempos tranquilos nós os examinamos. Em tempos difíceis eles nos governam”. Ernst Kretschmer ( 1888-1964), psiquiatra alemão.

Uma das acusações de Hannah Arendt contra Eichmann foi a de que ele e seus superiores achavam que podiam escolher com quem coabitar a Terra. A voz firme e lúcida de Arendt proclamou na ocasião que nenhum de nós tem condições de fazer essa escolha e de que os seres humanos com quem coabitamos a Terra são dados definitivos que antecedem a escolha e a qualquer contrato social, econômico político e humanitário. Para Eichmann, a tentativa de escolher quem poderia coabitar a Terra era uma tentativa de aniquilar parte da população, portanto a liberdade na qual ele psicopatologicamente argumentava era um pavoroso e gigantesco genocídio. Não havia compreensão alternativa em suas afirmações. Sob uma perspectiva de uma filosofia humanística, não importavam se eram cem mil ou seis milhões os seres humanos escolhidos para serem eliminado. Ambas hipóteses são uma estatística e uma tragédia, pois além de não podermos escolher com quem coabitamos a Terra, devemos manter ativamente o caráter não escolhido da coabitação inclusiva e plural.

Arendt: “Não só vivemos com quem não escolhemos e com quem podemos não compartilhar nenhum sentido social de pertencimento, como também somos obrigados a preservar suas vidas e a pluralidade vivencial da qual fazem parte. Nesse sentido, normas políticas concretas e ordenações éticas surgem do caráter não escolhido desses modos de coabitação”.

Uma vez que nosso adversário político é considerado um intruso traumático, alguém cujo modo de vida diferente nos perturba , abala nossas práticas sociais, quando ele chega perto demais, esse fato pode dar origem a uma reação agressiva visando afastar o intruso incômodo.

A capacidade da fala estrutura a socialização e se caracteriza pela renúncia à violência e isso define o núcleo da existência humana. São os princípios da não violência que construíram a humanização do homo sapiens, a coerência e a importância dos princípios morais baseados nas convicções e num sentido da responsabilidade, pelo que a violência é uma perversão radical da humanidade. Na medida em que a linguagem esteja infectada pela violência, a emergência desta acontece sob a influência das circunstâncias psicopatológicas do momento histórico e político, as quais distorcem a lógica imanente da comunicação simbólica. A linguagem é subvertida, trocada, infectada e todo o significante perde seu significado normal. As comunidades linguística, política e social adoecem e raros cidadãos conseguem manter o equilíbrio emocional e o contato com a realidade.

Os preconceitos de toda a ordem tomam conta do imaginário coletivo e como uma peste, acabam se tornando uma epidemia. E aí então se dissemina a Black Death da cultura, da civilização.

E como naqueles obscuros tempos do medievo os preconceitos sociais, políticos, religiosos, econômicos e sexuais são os que mais contaminam as mentes e os corações dos homens. Talvez os sexuais, por conta de nossa religião judaico-cristã e de nossa ignorância da histórica, serão os últimos a serem eliminados de nossas discussões e inquietudes, quando, afinal, terão sido compreendidos e tolerados.

Enfim, o que sentimos falta em nossa cultura, em que as difíceis revelações contrastam com o medo politicamente correto do assédio que mantem os outros à distância , é o espírito que Gore Vidal caracterizou muito bem. Vidal deu a resposta perfeita a um jornalista vulgarmente opinativo que lhe perguntou à queima-roupa se o seu primeiro parceiro sexual tinha sido um homem ou uma mulher: “Fui demasiado bem-educado para perguntar, respondeu”.

Penso que a elegância intelectual e o savoir faire de Vidal são condições ausentes muitos homens públicos, pois trata-se de uma condição demonstrativa de uma ampla tolerância e de lucida interpretação a respeito da extensa diversidade de gêneros e de objetos do desejo sexual.

In finis não posso me furtar de transmitir por tempestiva, lúcida e corajosa, uma declaração recente do Papa Francisco:

“É um escândalo ir à igreja e odiar os outros”.

Sic transit…

(*) Médico, Membro da Academia Rio-Grandense de Letras

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora