Opinião
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21 de janeiro de 2019
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23:27

Mundo virtual: indignação e vaidade (por Denise Argemi)

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Sul 21
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Mundo virtual: indignação e vaidade (por Denise Argemi)
Mundo virtual: indignação e vaidade (por Denise Argemi)
Ministra da Família e Direitos Humanos, Damares Alves. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Denise Argemi (*)

Quando as nossas convicções são desafiadas pela indignação ou pela vaidade, segundo alguns, este o maior pecado do século XXI, as emoções afloram. E, quando publicados na internet, abrimos uma porta que não pode mais ser fechada, a da nossa intimidade e a dos nossos dados pessoais.

Desde as primeiras declarações governamentais no tocante a áreas nevrálgicas da gestão pública, sob assertivas equivocadas, algumas até inexistentes, temos assistido atônitos e com preocupação, uma série de medidas que estão sendo adotadas. Dentre elas o inciso II do art. 5º da Medida Provisória nº 870, de 1º/01/2019, que estabelece a organização básica dos órgãos da nova Presidência da República e respectivos Ministérios.

Uma delas é a nova atribuição da Secretaria de Governo da Presidência da República, que consiste em “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais (ONGs) no território nacional”. Embora o ministro responsável pela pasta, o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, tenha declarado durante a posse que as portas da Secretaria de Governo estarão sempre abertas, nos parece flagrantemente inconstitucional o supramencionado inciso do art. 5º da MP nº870. E isto porque a CF/88, em seu art. 5º, incisos XVII e XVII, garante não só a plena liberdade de associação para fins lícitos, proibida a de caráter paramilitar, bem como garante a livre “criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”. No caso das ONGs, quando estas recebem recursos públicos, e a maioria não recebe dinheiro do governo, devem prestar contas a órgãos de controle como os tribunais de contas. E mais, o dispositivo contraria o Marco Jurídico Interamericano sobre o Direito à Liberdade de Expressão, liberdade esta consagrada na nossa Constituição. A missão dos governos, nacional e internacional é a cooperação com atividades do terceiro setor e não a interferência, monitoramento, coordenação ou supervisão.

Outro aspecto que nos causa estranheza é a representação judicial pela Advocacia-Geral da União nos casos de “os integrantes da Secretaria Nacional de Segurança Pública, incluídos os da Força Nacional de Segurança Pública, os da Secretaria de Operações Integradas e o Departamento Penitenciário Nacional que venham a responder a inquérito policial ou a processo judicial em função do seu emprego nas atividades e dos serviços (…) de policiamento ostensivo; no cumprimento de mandados de prisão; no cumprimento de alvarás de soltura; na guarda, a vigilância e a custódia de presos; nos serviços técnico-periciais, qualquer que seja sua modalidade…” (Revista Sociedade Militar de 02/01/2019).

Com relação à previdência, sempre alicerçando a necessidade e a premência de fazer uma reforma, o governo continua alegando que existe déficit, um rombo nas contas. O que, segundo os auditores da Receita Federal, não corresponde à verdade. O déficit da previdência é fake. Na verdade, a contrarreforma pretendida e já anunciada pelo governo como sendo importante e benéfica para a nação, não é necessária. Nem tampouco será para todos os brasileiros, porquanto o judiciário, os militares e os políticos não serão atingidos por esta “benesse” que estão oferecendo aos brasileiros. A “reforma” muito provavelmente servirá para engordar as já polpudas contas bancárias dos poucos proprietários de empresas de “previdência privada e/ou complementar”. E, certamente, conduzirá milhões de idosos ao desespero, senão ao suicídio como já ocorre no Chile, por conta da adoção dessa mesma estratégia. Estratégia que, evidentemente, não é do interesse ou de proveito dos contribuintes.

Já na área trabalhista, argumenta a equipe do novo governo que a CLT é arcaica, que a atual legislação torna impossível a vida dos empregadores e empresários e que a solução para este problema é a diminuição dos direitos dos trabalhadores. Com a “flexibilização dos direitos do empregado” teremos mais empregos, esta é a conclusão da cúpula presidencial. Daí ser necessária a extinção do Ministério e da Justiça do Trabalho.

Com relação à educação, muitos ainda desconhecem que o ensino fundamental e talvez o ensino médio deixarão de ser um dever do Estado. Por outro lado, foram suprimidas dos currículos escolares matérias relevantes para a formação do corpo e do intelecto do aluno como a educação física, a filosofia e a sociologia. Como se já não bastasse a herança da gestão anterior que congelou recursos para a educação e para a saúde por 20 anos. Além disso, está em curso a reforma para abolir o que chamam de ideologia de gênero e sustentam que a sexualidade é uma questão que deve ser reservada exclusivamente à família. Eu poderia concordar.

Entretanto, como todos sabemos, não só no Brasil, o maior número de abusadores sexuais das crianças e jovens não está nas ruas. Os abusadores não são delinquentes ou marginais. Eles não vivem nas ruas se esgueirando da polícia ou consumindo drogas nas esquinas. Os abusadores e muitos pedófilos são “pessoas de bem” e vivem dentro das paredes das nossas casas, casas que deveriam ser o nosso “santuário”, o nosso “porto seguro”. Os abusadores usam terno e gravata, toga, batina e até uniforme, para nosso malgrado. Isto é um fato. Não é achismo, vitimismo, esquerdismo ou feminismo, existem dados concretos e alarmantes na Segurança Pública de todos os estados da federação. É importante relembrar que centenas de crianças, meninos e meninas, desde tenra idade vêm sendo molestadas e violentadas em seus lares sem saberem que o são. Somente quando chegam à escola é que compreendem, através do conhecimento o que é e qual a magnitude devastadora do mal que lhes está sendo infligido por um familiar, alguém que, em teoria, deveria lhes amar e proteger. A maioria das crianças é obrigada a conviver durante boa parte da infância e da adolescência acreditando que ela é culpada da violência que sofre. E cala. A violência então continua seu curso natural e silencioso entre quatro paredes, perpetrada por anos a fio. Sem que a criança ou adolescente fale para amigos ou professores, encurralada pelo receio, pelo medo e pela vergonha.

Incrédulos, no setor comercial assistimos o “amém” para a Boeing inicialmente “diluir” e posteriormente “engolir” a nossa Embraer. Embraer, uma das nossas maiores e mais promissoras indústrias. Embraer que faria o Brasil se destacar no cenário mundial, pelo desenvolvimento de tecnologia própria e de ponta que vinha ampliando através da pesquisa contínua.

No setor ambiental, agrícola e indígena, completamente na contramão da história. O avanço do desmatamento na Amazônia que, como é do conhecimento de todos, trará alterações climáticas importantes não só para o Brasil, mas para o planeta, a redução das linhas de crédito e financiamento para os agricultores, a concessão de autorização para que os frigoríficos fiscalizem a si próprios. Sim, é exatamente isso mesmo, autofiscalização. Com relação ao incremento progressivo da política expansionista de madeireiros, grandes latifundiários e exploradores de riquezas naturais, vamos presenciar o favorecimento das invasões de terras indígenas, antes demarcadas, e posterior assassinato dos índios. É só uma questão de tempo.

Nas relações internacionais e na política externa, o quadro também não é muito alegre e nem promissor. Um país antes firme em seus propósitos e sempre cordial com a comunidade internacional, passou a se manifestar notadamente intervencionista, belicoso e reducionista. Ancorado em bases ideológicas conservadoras, agressivas, partidárias e religiosas, embora sejamos um país laico conforme o preâmbulo da nossa Constituição, lemos com estupor os textos publicados no blog do próprio chanceler na internet: “Quanto mais Direitos Humanos mais violência contra o cidadão de bem; quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. O objetivo do globalismo é romper a conexão entre Deus e o homem, tornando o homem escravo e Deus irrelevante; O socialismo apanha causas e conceitos legítimos, instala-se em seu ventre, escraviza-os, suga toda a sua energia e, como o monstro do filme ‘Alien‘, um dia finalmente irrompe com sua cara feroz e horrenda; Esse feminismo – que não tem nada de feminismo autêntico, mas constitui apenas uma ponta de lança dos movimentos esquerdistas – rebaixa a mulher ao nível de subserviência e desempoderamento jamais visto”.

Difícil ler tudo isso sem um breve esclarecimento conceitual: os direitos humanos não foram criados e propagados pelo mundo civilizado para favorecer bandidos, delinquentes e assassinos. Os direitos humanos são inerentes a todas as pessoas, inclusive ao “cidadão de bem”, porque todos são seres humanos.

Com relação ao socialismo, cumpre fazer saber que o Brasil jamais foi ou pretendeu ser socialista. Nem poderia, pois temos uma forte vocação para o acúmulo de capital e a propriedade privada é um dos alicerces da nossa sociedade. Além disso, somos excelentes na distribuição desigual da riqueza que temos e da que produzimos. Em anos recentes foram executadas políticas sociais que beneficiaram milhões de pessoas que viviam na pobreza extrema. E este é um fato inegável. Se foi bom ou ruim para o país que parte da população tenha logrado ascender na escala social e tenha podido consumir alguns bens antes inatingíveis, reservados desde sempre para os mais favorecidos e abastados, somente a história nos dirá. Mas, tenham a certeza de que os mecanismos e as diretrizes utilizadas para a consecução daquelas políticas sociais seguiram de forma exemplar o formato capitalista, dentro de uma política neoliberal.

Nos últimos dias adveio nova legislação que visa combater a “insegurança e a violência” dando ao “cidadão de bem” a possibilidade da “legítima defesa” flexibilizando o porte e o uso de armas de fogo, que passará a ser de 10 anos. Em um país como o nosso onde a taxa de mortalidade de jovens, pobres, negros, mulheres e população LGBT já ocupa um dos primeiros lugares no ranking mundial, é temerário. E certamente cidadãos e cidadãs armados caminhando pelas ruas, dirigindo automóveis, estando em meio a bares, restaurantes, em grandes aglomerações ou durante uma briga de casal, dentro de casas e apartamentos, não trará a tão almejada paz social, nem a segurança que todos buscamos.

E, concluindo, faltava apenas “a cereja sobre a torta”. E ela veio inserida nas épicas e “singulares” declarações da nova ministra das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos. Era de se esperar que levasse adiante as políticas públicas para as mulheres já existentes e implementasse outras tantas e novas. Todavia, as afirmações que temos lido e ouvido da ministra diminuem, criam hostilidade e separam as mulheres, colocando-as umas contra as outras. A mescla de conceitos errôneos que a ministra propaga na imprensa e nas redes sociais como a tal cura gay e o feminismo, somados às convicções pessoais da advogada e pastora Damares não correspondem à realidade do século XXI.

Alguém tem que explicar que ser gay não é uma doença. Alguém tem que fazê-la entender, senão os livros, que ser feminista não é ser contra os homens, ser feminista não significa ser de esquerda, ser feminista independe de ideologia ou partidos. Ser feminista significa ter direitos iguais, nem mais nem menos que os homens. Para ser mulher, feminista ou não, a beleza não é o atributo mais importante, como ela asseverou. O mais relevante é ter dignidade enquanto ser humano. A mulher não deve ser valorada pela sua aparência exterior. Ou por acaso os homens são mais dignos, mais de direita ou mais de esquerda se são mais belos? A ministra prega verdades inexistentes e controversas que não refletem o universo das mulheres em geral, menos ainda o das brasileiras em particular, ao contrário. As declarações da ministra demonstram desconhecimento da causa da mulher e de consequência do bem-estar das famílias. As manifestações da ministra penalizam e conduzem a pauta da mulher à ruína a colocando na condição de cidadão de segunda categoria. E dessa forma resta evidente o grande retrocesso que estamos na iminência de vivenciar. Após tantas conquistas obtidas com suor, boa vontade, coragem e sofrimento, inclusive de mulheres que não estão mais entre nós, ela anuncia: “o Estado é laico, mas eu sou muito cristã; meninas vestem rosa, meninos vestem azul; lugar de mulher é em casa, e outros despautérios.

Alegações que poderíamos considerar pueris e inócuas caso ela não ocupasse o cargo que ocupa. Na condição de autoridade de Estado, sabedora do eco de suas palavras, deveria estar consciente da responsabilidade que carrega nas mãos, poderia e deveria aproximar homens e mulheres. Entretanto, os distancia cada vez mais com enunciados de cunho machista e frases feitas dos anos 1940 que nem mesmo nossas bisavós ousariam dizer em público.

A busca pela paridade, por salários iguais, ascensão na carreira de forma equânime, a diminuição da violência contra as mulheres com políticas eficientes e eficazes, considerando os pronunciamentos da ministra, até agora é verdadeira utopia. Surpresas negativamente, vemos diante de nós terra arrasada para as políticas públicas que vinham sendo construídas, bem como o desalento de serem remetidas às mesmas bases do início do século XIX.

Mas, voltando ao começo o ultraje e a “indignação” têm em comum o desencadeamento de uma determinada reação que pode ser de dor, de incredulidade ou de desconforto.

Porém, pode ser também uma reação espirituosa, que vem expressa através da vaidade. No caso da neo ministra, após as reiteradas manifestações depreciativas que tem feito, veio a nova provocação. Desconstruindo mais uma vez a possibilidade de união ela dividiu o país em: as feministas são feias e as não feministas ou femininas são lindas. A pregação da pastora ministra fez com que milhares de mulheres indignadas, postassem suas próprias fotos nas redes sociais. E, no quadro ao lado, a foto dela, da senhora Damares, na tentativa de evidenciar comparativamente o contrário do que ela afirmara.

Tais comentários podem parecer de somenos importância. Mas essas asserções são perniciosas, na medida em que representam a linha condutora que permeará as políticas públicas a serem colocadas em prática por essa nova gestão. Políticas que irão incluir ou excluir mais de 51% da população, pessoas que têm direitos iguais prescritos e assegurados na Constituição da República e que provavelmente serão mais uma vez desrespeitados. Essa visão equivocada contida nas entrevistas da ministra reverbera, sedimenta e consolida a visão machista, sexista e homofóbica da outra parte da população. Aquela porção de brasileiros e brasileiras que se encontra dividida em um difícil e penoso embate de caráter íntimo, pessoal e sociocultural, entre uma visão de mundo pós-moderna e o conservadorismo.

Coincidentemente, ou não, logo após esses primeiros dias de janeiro, usando subliminarmente a “vaidade” dos usuários como gatilho, homens e mulheres aderiram ao inocente #10yearchallenge ou, em português, o “desafio dos 10 anos”, lançado pelo Facebook, no último dia 16/01/2019, fazendo com que milhões de pessoas postassem suas fotos comparativas entre 2009 e 2019.

Os especialistas em tecnologia, segurança da informação e proteção de dados alertam: o reconhecimento facial pode ter outra utilidade do que simplesmente alimentar a vaidade ou entreter internautas com uma brincadeira inocente e inusitada.

Uma das célebres frases de Simone de Beauvoir permanece sempre atual: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida

(*) Denise Argemi é advogada e Especialista em Direito Internacional Público, Privado e da Integração pela UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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