Opinião
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12 de janeiro de 2019
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11:30

Como falar a verdade diante do poder (por Franklin Cunha)

Por
Sul 21
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Como falar a verdade diante do poder (por Franklin Cunha)
Como falar a verdade diante do poder (por Franklin Cunha)
Edward Said (Reprodução/Youtube)

Franklin Cunha (*)

Edward Said (1935-2003), num texto de 2002, aborda o difícil tema do profissionalismo, das especializações e a forma de como os intelectuais enfrentam a questão do poder e da autoridade. Começa contando um episódio que, ao iniciar a ministrar um curso na Universidade de Colúmbia, foi procurado por um estudante que solicitou inscrição no evento. Notou que seu currículo informava que tinha sido um piloto veterano da guerra do Vietnam. Said conta que levou um choque quando o candidato respondeu à pergunta do que realmente ele fazia na força aérea:” Destruição de alvos“. O ex-piloto atuava num avião de bombardeio cujo trabalho – tecnicamente bem feito – era o de bombardear alvos. Mas ele revestia isso de uma linguagem profissional que excluía e mistificava as indagações mais diretas de alguém de fora do ramo. Said diz que o aceitou no curso talvez com a intenção de que ele ao menos abandonasse o espantoso jargão profissional e assim se desse conta do que realmente tinha feito no Vietnam onde apenas cumpria ordens de seus superiores sem qualquer hesitação, sentimento de culpa, sem qualquer preocupação de cunho humanitário. E foi até condecorado ao abandonar a Air Force. Lembrei-me então de Ortega y Gasset: “ Os técnicos são os bárbaros do século XX”.

A partir desse episódio, Said expressou sua interpretação de que os intelectuais que têm condições de formular políticas e controlar mecanismos de protecionismo do tipo que dá ou tira empregos, subsídios e promoções, tendem a vigiar os indivíduos que não se submetem profissionalmente e que, aos olhos de seus superiores, dão mostras de criar controvérsias, de rebeldia e de não-cooperação.

Se quisermos defender – diz Said – os princípios básicos da justiça humana, devemos fazê-lo para todos, não apenas seletivamente para nossos clientes, nossa classe social, nossa cultura e ideologia pessoais. O profissional liberal, o intelectual, o jornalista, o homem comum bem informado devem se preocupar em adquirir uma convicção inabalável em conceitos de justiça social, de direitos individuais e entre as nações, sem atribuir-lhes hierarquias, preferências pessoais e avaliações reais ou dissimuladas. O problema para o intelectual, para o profissional liberal é fazer com que essas noções se relacionem com situações concretas, nas quais há uma grande distância entre o discurso de igualdade e justiça e as contingências reais e muitas vezes brutais.

Há um costume, até uma exigência profissional entre advogados de que, mesmo um homicida brutal,  o assiste a possibilidade de ter um profissional de direito que o defenda da promotoria mais implacável.

Direito e exigência que também devem pautar a atuação dos profissionais da medicina que queiram e mesmo se obriguem a cumprir o juramento hipocrático.

Acontecimentos lamentáveis aconteceram recentemente  em nosso país no atendimento de pacientes por parte de alguns médicos, os quais se negaram a atender certos clientes que não participavam de suas preferências partidárias e/ou. ideológicas.

A propósito, reproduzo, in temporis e ipsis literis, recente pronunciamento do jurista Lênio Streck:

“Uma pessoa doente pode procurar um curandeiro. Uma benzedeira. Ou ajuda religiosa. Mas o correto é ir ao médico. No Direito ocorre o mesmo. Crime não se combate com opiniões morais. A tentação de esfolar criminosos sempre é grande. Quase incontrolável. Mas um jurista tem de tratar (d) o problema com o Direito. Isto é,  com  remédios constitucionais. Ou vira justiceiro”.

Parafraseando o insigne jurista, anoto que doença não se combate com opiniões morais ou ideológicas.

O médico tem de tratar o doente praticando a medicina Hipocrática na qual se inclui o afeto, a solidariedade, o respeito humano e a isenção de particularismos religiosos, políticos, sociais, econômicos, ideológicos ou de quaisquer outras interpretações da realidade.

Não devem existir duas medicinas: a privada e a institucional, a de ricos e a de pobres, a de ideologias políticas conflitantes, mas isso se reflete tanto na prática diária como na visão ampla do ser humano e isenta de preconceitos de qualquer espécie. Não é possível atuar ou pensar com conceitos humanistas para algumas pessoas e, para outras, pensar e interpretar a realidade de forma exclusivista, elitista e sob a ótica de sua classe social.

Para o intelectual contemporâneo – médicos, advogados, jornalistas, escritores – vivendo numa época tão confusa pelo desaparecimento de normas morais objetivas e pela inação de autoridades insensíveis ao sofrimento da população, apoiar cegamente o comportamento das elites dirigentes e fechar os olhos aos seus crimes ou dizer com negligência: “Penso que todos fazem isso e é assim que o mundo funciona“.

Ao contrário, deveríamos  dizer  que os intelectuais não são profissionais desnaturados  pela subserviência a um poder  cheio de falhas e de injustiças, mas são intelectuais  com uma posição alternativa e íntegra que lhes permitirá, de fato, falar a verdade diante do poder.

(*) Médico, Membro da Academia Rio-Grandense de Letras

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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