Opinião
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23 de dezembro de 2018
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21:50

Uma noite de 12 anos nesta noite (por Katarina Peixoto)

Por
Sul 21
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Filme de Alvaro Brechner é baseado no livro de Rosencof e Huidobro, Memórias do Calabouço. Reprodução/Youtube

Katarina Peixoto (*)

Uma noite de 12 anos é um filme sobre o lugar da humanidade entre homens e mulheres quando o jogo acaba. É baseado em fatos reais: a prisão, pelos despachantes fardados da ditadura uruguaia, que assumiu o poder após um golpe em 1973, de três dirigentes políticos da esquerda uruguaia, os Tupamaros José Pepe Mujica e Eleutério Fernando Huidobro e o comunista Maurício Rosencof, que foram submetidos a um experimento de tortura com dois objetivos ignominiosos. O primeiro objetivo, declarado, era tornar os presos políticos reféns do regime, a fim de garantir o poder de interdição das ações da resistência aos militares. O objetivo não declarado, senão dos quartéis para dentro, era quebrar os três militantes. Esta expressão, “quebrar”, não é muito usada em português e eu não sei por que (ou é minha ignorância). A guerra teria sido vencida pelos militares e agora, os que não haviam sido por eles exterminados, iriam ser por eles quebrados, isto é, destruídos moral e psiquicamente.

O filme de Alvaro Brechner, baseado no livro de Rosencof e Huidobro, Memórias do Calabouço, não é mais um filme sobre ditadura e tortura na América Latina, entretanto. É um filme sobre presos políticos torturados que sobreviveram — a história é baseada e, mais raro, fiel ao livro de memórias de dois deles — a mais de 12 anos de um sequestro, levado a cabo por um aparelho repressivo militar estatal, dedicado a enlouquecê-los para assegurar, fora dos quartéis e no país, o triunfo autoritário. Este aspecto, que é o elemento explorado diretamente no filme, garante o seu universalismo e sua urgência. Talvez nenhum outro filme seja capaz de tocar as mentes e corações de quem está (mesmo que nas mentes e corações) na América Latina, hoje, como este.

É meio difícil não pensar em Foucault e nos mecanismos de controle e a tentação de enveredar por esse caminho é legítima, inclusive conceitualmente. É possível que alguém tenha se dedicado a esse tema, dos mecanismos de controle psíquico e comportamental, como ele (mas não tenho essa notícia). Mas esse filme me levou para outro lugar, se posso dizer assim. Talvez somente a linguagem cinematográfica seja capaz de se aproximar da narrativa dessa experiência, em larga medida, resistente ao encaixe conceitual. Penso em pedir perdão aos amigos que foram torturados e que tiveram entes desaparecidos, supliciados e assassinados, porque talvez somente ontem à noite eu tenha conseguido imaginar, verdadeiramente, o sofrimento por que passaram e, em larga medida, ainda passam. O cinema pode isto, mais do que a literatura: unificar a narrativa objetivamente, com imagens em movimento e música, usando o silêncio e usando o absurdo para iluminarem e deixarem os conceitos às claras. No jogo de sombras e luzes se libera os conceitos para eles existirem. O conceito de humanidade, o conceito de ditadura, o conceito de democracia. Esses conceitos são projetados pela metáfora que somente a realidade, a autoconsciência e a linguagem podem lastrear. O filme de Brechner mostra isso. É sobre isso, na verdade.

A busca pelo outro em batidas na parede, o estabelecimento dos códigos, as cartas escritas por outras mãos, o pacto imaginativo que subjaz a essas coisas. Como é ter uma filha? O que posso dizer-lhe? O que fazer com as mãos algemadas? Uma mariposa, ora essa. O filme tem um fio nessas cenas que oscilam entre a história, a história dos calabouços e a história dos calabouços mentais. O volume do rádio, o sargento refém do refém, se quiser virar gente. O triunfo da palavra e da imaginação, não como criação de mundos, mas como mundos criados com o que podemos. Não tem jogo, mas Ñato, o apelido de Huidobro, protagoniza a jogada mais genial, e o gol mais decisivo na história das resistências, em uma das cenas do filme que nos pode arrancar um orgulho triunfante, quase delirante, de que o autoritarismo sempre é débil e que a imaginação é sempre algo que se faz junto e com e apesar dos outros, que é o que nos enlaça, por mais desfigurados e loucos que tenhamos ficado. São anos de sofrimento deliberado, de confusão como método, de mentira como escárnio, de perdas, de manipulações, de abusos e de absurdo. A dignidade resta como uma garantia do que não é ridículo, só isso, e tudo isso, como diz um grande amigo, que passou por prisões, na ditadura argentina. São anos em que a loucura visita e revisita e eventualmente comanda. E em que as trevas parecem conformar um mar aberto e imenso, em uma escuridão de delírios paranoicos e desespero. Dois anos em um buraco; nenhum texto é capaz de dizer, como acontece neste filme, a potência aniquiladora dessa ignomínia. E dessa metáfora.

O que garante algum jogo? Pedras na parede, um código. A astúcia diante do ridículo autoritário, claro. A compaixão. Uma médica. Uma mãe que chama o filho de volta para si mesmo, em uma das cenas que explicam por que Pepe Mujica é o homem que é. Uma mãe daquelas, bicho. Que mulher maravilhosa. A literatura. A semeadura. A lealdade. A ditadura uruguaia se torna universal, na medida em que penetramos nas mentes em luta contra a quebradura que lhes é imposta. Por isso que cada palavra e o uso de palavras é tão raro e tão decisivo, em todos os momentos. Nada é ocioso, no filme. Tudo é potência e urgência: é preciso viver, é preciso remendar-se pra não se deixar matar, é preciso não deixar-se enlouquecer, o que há em mim é a minha vida. É acachapante, entre outras coisas, porque nada é vão nas mentes que estão lutando para não serem quebradas. Nem as formigas passeando na pele, nem o risco branco no chão, nem os dedos sobre a uma água parada. Um papel, um lápis, um penico, o sol.

É notável a contenção e o respeito, na narrativa da redemocratização e do peso da derrota, sobre o triunfo que fosse possível (para muitos não o foi). Não ter se quebrado e ter resistido não foi nem foi, mesmo, suficiente, para, ao contrário do que afirma todo militarismo, sobreviver e perder, e não vencer ou morrer. Sobreviver e perder, como acontece no jogo, como é a vida na luta cotidiana, seja pela integridade mental, seja pelo salário. A cena que marca o início da abertura democrática, após o referendum de 1980, quando a imensa maioria rechaça a tutela militar do poder político no Uruguai, contra a expectativa dos militares (o autoritarismo tem esse vício da autorreferência permanente, o que também explica sua debilidade imaginativa), é já um dos momentos mais esplendorosos da história do cinema. Silvia Pérez Cruz (que também atua) cantando The sounds of silence e nos contando de novo, e pela primeira vez, aquilo que custa e custou e sempre custará, em nossa liberdade, a luz nua. Vai demorar e talvez não ocorra algo tão bonito, profundo e potente, na história do cinema político. A luz nua vem da escuridão. Esta escuridão que está aqui, de novo.

Quantos de nós estão lutando, agora, para não se deixar quebrar? Quantos desistiram neste ano, quantos se quebraram e quantos estão conseguindo se remendar? E os remendos, quando rasgam, dilaceram, fazem-no deixando alguma pele regenerada, unindo o que foi rasgado? Uma Noite de 12 anos não é um filme sobre o que aconteceu, mas sobre o que acontece e pode acontecer. O fato de que aconteceu torna o inominável ainda mais assustador, porque é verdade, porque foi verdade e, esperamos, seja verdade. E foi ontem. Eu escutava Madonna quando Mujica foi liberto. Quando menstruei, pela primeira vez, eles estavam presos. Sarney era presidente e eles estavam presos, ainda. Lula está preso, hoje. Sem provas, sem processo penal, sem justiça, sem direito a Habeas Corpus. Um homem de mais de setenta anos. Há mais de cem mil enjaulados ilegalmente no Brasil.

Amigos dão aula com medo. Amigos são espancados por serem gays. Humilhações, medo, paranoia, perdas, ataques, mentiras, desinformação, ameaças, desenlaces, isolamento. Eles venceram e agora vão nos enlouquecer. Éramos bandidos, fomos todos tratados como ladrões, desonestos e, depois, fanáticos. Para garantir o novo regime, é preciso aprisionar e aterrorizar, e para garantir a duração, é preciso certificar a impossibilidade da transmissão. Censura, então, controle e terror, se for o caso. Quando for o caso, isto é, quando negros, favelados, indígenas e desvalidos organizados estiverem em questão, querendo, suprema audácia, jogarem algum jogo.

O que nos liga à vida e à integridade psíquica é muitas vezes algo sutil, invisível e frágil. Um olhar, um gesto, uma presença, um paratiquieto da mãe presente, o sorriso de Rosencof no pátio iluminado pela resistência às trevas, a humanidade. É verdade que somente humanos criam máquinas de extermínio e são capazes das atrocidades a que os militares latinoamericanos são tão chegados, os seus parquinhos de tortura, sevícias e curra, onde cultivam suas taras de despachantes, desde sempre. É por isso também verdade que somente a humanidade, em cada uma e cada um de nós, pode chutar a gol, desnutrida, esquálida, louca, reconhecida, como Ñato o fez, na vida e no filme. E nos devolveu, ontem, hoje e, espero, amanhã, aquilo de que se faz toda e qualquer envergadura mental e moral: a imaginação.

A loucura não é um destino e as derrotas não são definitivas. Ñato, Mujica e Rosencof estão aí, estiveram aí e, espero, seguirão conosco. Talvez quem nunca tenha se quebrado não venha a saber do que se faz um jogo, e siga na miséria dos que carecem de imaginação para ligar palavras e coisas. Espero que não. Não é bom e não deve ser requerido quebrar-se. O filme de Brechner é um sinal de esperança, uma luz no litoral deste mar escuro e agitado. Ñato se foi em 2016, enquanto exercia o papel de ministro da defesa do Uruguai. Mujica é ele mesmo e Rosencof é um dos maiores escritores da América Latina. Nossa democracia está quebrada e, junto com ela, muitos de nós. Tem um efeito de transmissão nas quebradeiras, que é ele também silencioso e invisível. Nesse terreno, o remendo ou a envergadura só se mede pela imaginação e pelas mãos estendidas, quando tudo e qualquer coisa se torna urgente e demandante de respeito e cuidado.

O repositório dos nossos restos seja também o lugar da semeadura de nossa integridade, de nossa valentia e de nossa pontaria diante do goleiro imaginário, no jogo interditado. Obrigada a todos e todas, a cada uma e a cada um dos macabeus e macabéias desta noite. Seguiremos jogando, nem que em nossa imaginação. É o que temos, por ora, e é muito. É a luz nua. Ninguém nos tira isso.

(*) Doutora em Filosofia pela UFRGS; atualmente é pesquisadora de pós-doutorado vinculada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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