Opinião
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20 de dezembro de 2018
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16:54

Travessia (por Carlos Alberto Steil)

Por
Sul 21
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Travessia (por Carlos Alberto Steil)
Travessia (por Carlos Alberto Steil)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Carlos Alberto Steil (*)

Este texto dirige-se àqueles que compartilham o mesmo sentimento de pesar diante da vitória do ódio e da violência. Quero estender a mão e abraçar os amigos que juntos estão atravessando este deserto e que sabem que, do outro lado, nos aguardam tempos difíceis de lutas e enfrentamentos. Conforta-me, contudo, a convicção de que a batalha que travamos é digna e justa. Prefiro estar com os que perderam, mesmo porque não quero nem posso me imaginar do lado daqueles que venceram.

Penso que este não é o momento de se apontar culpados que possam ser responsabilizados pela escolha que 57,5 milhões de brasileiros fizeram ao eleger como seu presidente um homem que prega a violência, que faz apologia à tortura, que incita a discriminação aos homossexuais e que promete eliminar todos aqueles que pensam diferente dele. Mesmo porque, buscar culpados, pode ser uma maneira fácil de desincumbir-se da tarefa de compreender os vários fatores que conjuntamente concorreram para que este pleito eleitoral tivesse o resultado que teve.

Ao eleger-se os grupos de WhatsApp como o instrumento privilegiado da disputa eleitoral, a política transferiu-se da ágora, seu lócus tradicional de debate de ideias e propostas, para o espaço privado. Este movimento de deslocamento da política do público para o privado produziu rupturas não apenas no nível dos laços societários, mas também nos vínculos pessoais e familiares. Estas rupturas, provavelmente, não serão superadas com o fim do “tempo da política”, mas adentrarão o cotidiano da vida que segue depois das eleições.

Para muito além da disputa política, estas eleições permitiram emergir, na cena pública e na vida pessoal, estruturas e sentimentos latentes de ódio de classe, de racismo e de homofobia. Em termos culturais, fomos confrontados, mais uma vez, com a estrutura escravocrata, racista, autoritária, machista e patriarcal que atravessa a nossa história como um traço marcante de nosso ethos nacional. Contida pela frágil hegemonia do Estado democrático, instituído pela Constituição de 1988, após a ditadura militar, esta estrutura foi novamente liberada, autorizada e exaltada pela figura bufônica do candidato eleito, retornando à cena pública com a força do recalcado.

No nível da estrutura psíquica, estas eleições possibilitaram que as forças agressivas da  pulsão de morte, que nos habitam e nos constituem como humanos, se expressassem livres de qualquer constrangimento imposto pelos vínculos amorosos da pulsão de vida. Ou seja, um número significativo de brasileiros pôde extravasar, pelo seu voto, o desejo primário de eliminação de tudo e de todos que se interponham à fruição do gozo de dominação e objetificação do outro.

Por fim, percebo dois desafios que se impõem àqueles que recusam render-se à vitória conjuntural dessa estrutura de longa duração que retorna, legitimada pela via democrática, na atual conjuntura política brasileira. O primeiro é a defesa irrestrita das instituições republicanas para que consigam conter as forças da violência e da morte que já se voltam contra as populações mais vulneráveis. O segundo é mantermos a potência da ação que se expressa no amor, na amizade, na arte e na criatividade como antídotos à política do ódio e do terror.

(*) Antropólogo, professor da UFRGS e ex-coordenador do PPG de Antropologia da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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