Opinião
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3 de dezembro de 2018
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16:43

Ensinamentos de 2013 a 2019 – diálogos entre as lutas de ontem e as de amanhã (por Alexandre Haubrich)

Por
Sul 21
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Ensinamentos de 2013 a 2019 – diálogos entre as lutas de ontem e as de amanhã (por Alexandre Haubrich)
Ensinamentos de 2013 a 2019 – diálogos entre as lutas de ontem e as de amanhã (por Alexandre Haubrich)
Marcha Nacional pelo Passe Livre, em junho de 2013, em Porto Alegre. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Alexandre Haubrich (*)

É difícil negar que está em 2013 um marco fundamental do que aconteceu no Brasil nos anos seguintes, na política institucional e na sociedade. É a partir das mobilizações daquele ano que temos muitas lutas populares se desenvolvendo – as ocupações de escolas e universidades, a Primavera das Mulheres, até mesmo o #EleNão. E também é a partir daquele ano que as forças reacionárias partem para as ruas e as redes para chegar ao poder via golpe de 2016 e, agora, a ultradireita ganha força com a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL).

Este texto parte do entendimento de que as lutas de 2013 abriram várias portas, algumas positivas, outras negativas, por onde estão passando os principais acontecimentos políticos e sociais do Brasil no último período.

Isso não significa acreditar que temos em 2013 e 2019 dois contextos iguais – muito pelo contrário. Entendo, sim, que 2013 é um divisor de águas na história recente do Brasil e que muito do que aconteceu ali estendeu-se pelos cinco anos seguintes e seguirá estendendo-se, queiramos ou não, de forma que é necessário que o campo popular aprenda com aquela experiência. 2013 tem muito a ensinar a 2019, e, em cinco itens, como cinco são os anos que nos separam e nos unem a 2013, escrevo aqui um pouco sobre esses ensinamentos, sabendo que muitas outras lições também podem ser tiradas de tudo o que aconteceu naquele momento.

Não subestimai as classes dominantes

O primeiro ensinamento que quero discutir é: não subestimai as classes dominantes.

Esse é um ensinamento que já deveria ter sido aprendido em 2013 e o não-aprendizado é parte do que nos custou a eleição deste ano. Em 2013, faltou a todo o campo popular – uns de uma forma, outros de outra – a noção clara de que a direita estava se reiventando – não no conteúdo, mas na forma. Ali, enquanto parte do campo popular deslumbrava-se com as ruas tomadas e outra parte negava-se a ouvir as ruas, setores liberais e/ou ultrarreacionários disputaram e, em grande medida, ganharam as mobilizações.

As lutas daquele ano nasceram pela esquerda, em Porto Alegre, com a defesa do transporte público como parte do direito à cidade. Evoluíram, ainda no primeiro semestre, para lutas mais amplas e profundamente democratizantes, da manutenção do espaço público à ampliação da participação popular. Mas em junho, quando tudo estourou a partir de São Paulo, as direitas – midiática, empresarial e rentista – começaram a agir, empurraram às ruas uma massa indignada – em parte com razão – mas que até aquele momento era totalmente alheia à política – ou seja, facilmente influenciável. Conseguiram direcionar a indignação social contra o governo federal, enxertaram nas ruas pautas alheias ao que originalmente propunham os manifestantes. Aprenderam que as ruas e as redes também podiam ser disputadas à direita e, assim, deram início ao processo social que resultaria no golpe de 2016, no avanço conservador e, agora, na vitória de Bolsonaro.

Entre o final de 2017 e meados de 2018, muitos analistas e militantes, cientistas políticas e jornalistas cravaram que Bolsonaro havia “batido no teto”. Mais uma vez subestimaram a direita. Fizeram pouco da História, que nos mostra que o dinheiro sempre tem seus caminho. Com uma campanha construída no subterrâneo e na carona do antipestismo e da antipolítica, o “teto” de 10 ou 15% foi subindo até derrubar do sonho ingênuo os que subestimaram as classes dominantes e seus recursos ideológicos. Um ensinamento que 2013 já nos deixava e que não foi aprendido a tempo de evitar um desastre maior.

Organizai-vos e formai organicidade

O segundo ensinamento de 2013 que precisa ser aproveitado em 2019 não é menos importante do que o anterior: organizai-vos e formai organicidade.

As mobilizações de 2013 foram abertas e se desenvolveram, em suas primeiras etapas, com uma enorme potência de luta popular. Eram pautas progressivas, democratizantes, por mais direitos. Mês a mês, os protestos cresceram e levaram às ruas e às ações nas redes muita gente que sempre esteve alheia à política. E o campo popular não soube ouvir essas pessoas, não soube falar com elas e, sem ouvir nem falar, não foi capaz de trazer para o lado de cá a (muitas vezes justa) indignação, o desejo de mudanças, a crítica ao estado das coisas.

As organizações não estavam preparadas para receber essas pessoas – discutirei isso no próximo texto – e, mais do que isso, não estavam preparadas para que essas pessoas se vissem representadas nelas. A horizontalidade – muito positiva – daquelas mobilizações e dos grupos que as conduziram não foi combinada com a organicidade – formação, reflexão, construção de pensamento coletivo – necessária para transformar ativistas – ação pura – em militantes. Assim, não foi possível formar um corpo coletivo democrático.

Por sua vez, a direita não precisa – e não gosta – de um corpo muito grande de militantes. Às classes dominantes interessam os ativistas, sujeitos políticos capazes de ir às ruas e às redes defender interesses contrários aos seus próprios, desde que estimulados da forma correta. A organicidade, a reflexão, a troca, o diálogo, são as forças do campo popular. Os grupos dominantes, por serem compostos necessariamente por tão poucos indivíduos, precisam hegemonizar o pensamento social – ou seja, vender como “de todos” interesses apenas seus – e, para isso, precisam da fragmentação, do não-debate, da despolítica.

Apenas como construção coletiva constante podemos trilhar caminhos sólidos para mais democracia. Para isso, é preciso saber ouvir e saber falar.

Democratizai as organizações populares

O terceiro ensinamento: democratizai as organizações populares.

Parte do que travou uma possível organicidade dos ativistas de 2013 como potenciais militantes de movimentos e organizações populares democratizantes foi, justamente, a falta de atratividade desses movimentos e organizações para grande fatia da população. Parte muito importante dessa falta de atratividade está, é certo, diretamente relacionada a décadas de criminalização pelos donos dos poderes econômico, político e midiático. Mas também está relacionada a algo que aparece à sociedade como uma imagem vaga mas está, de fato, baseado na realidade: as estruturas pouco democráticas, burocráticas e verticalizadas de muitos desses movimentos e organizações.

Essa é uma lição que em parte foi aprendida. Parece haver movimentações democratizantes em muitas organizações do campo popular. O machismo interno é cada vez menos aceito, por exemplo. E caminha-se – a passos de formiga, é verdade – para uma relativa horizontalização, forçada por um contexto social em que militantes mais jovens aceitam cada vez menos o comando de chefetes burocratas e/ou autoritários.

Partidos, sindicatos, organizações estudantis e de juventude e movimentos populares estão, aos poucos, abrindo-se. A renovação obrigatória do próprio ciclo humano força a isso, já que pessoas envelhecem enquanto outras vão chegando. Mas é preciso mais, é preciso permitir a oxigenação dos espaços de militância, aprender com o que de positivo os processos horizontalizados de 2013 nos ofereceram, conectar esses espaços com a realidade e construir, dentro de cada organização ou movimento, algo do modelo de sociedade que defendemos. O exemplo como parte da ação.

Conectai redes e ruas

O quarto aprendizado fala de uma característica contemporânea fundamental para os movimentos que esperam espalhar-se e disputar consciências: conectai redes e ruas.

Esse é um ensinamento que já vinha sendo gritado em várias partes do mundo alguns anos antes. As principais mobilizações dos últimos dez anos por todo o planeta traziam como elemento fundamental a complementação entre ações no território e na web, nas ruas e nas redes. Em todas essas mobilizações, um não vive sem o outro, e essa interdependência, ao menos no médio prazo, parece insuperável. 2013 trouxe em definitivo essa nova realidade para o Brasil.

Esse caminho foi utilizado, depois, pelos grupos reacionários que derrubaram Dilma Rousseff da Presidência em 2016 e elegeram Jair Bolsonaro em 2018. Mas também foi o caminho das ocupações nas escolas e universidades, das lutas protagonizadas pelas mulheres contra Eduardo Cunha e Marco Feliciano, da articulação do #EleNão, entre muitas outras ações do campo popular.

Falhou-se, nesse sentido, em outros momentos, como a própria eleição presidencial, na qual as redes foram tomadas pela ultradireita no primeiro turno e apenas no segundo turno os setores progressistas aproximaram-se de empatar o jogo – tarde demais.

Ao menos no futuro próximo, está claro que as ruas dificilmente poderão estar afastadas das redes. A conexão entre as lutas nos territórios e as disputas online é necessária para construir o diálogo com o conjunto da sociedade e para manter as mobilizações constantemente em movimento e em vigor.

Confiai que é possível

Chego aqui ao último dos ensinamentos que discuto neste texto, voltando a ressaltar que há muitos outros que podem ser repisados. O quinto ensinamento de que trato aqui é, talvez, o mais importante e atemporal de todos eles: confiai que é possível.

2013 mostrou que é possível em dois sentidos. Primeiro, no sentido mais prático, mais concreto: em diversas cidades, as lutas nas ruas, combinadas com ações judiciais e parlamentares, derrubaram os aumentos nas tarifas do transporte público, principal pauta do início das mobilizações. Naquele momento, foi reduzido a quase nada o entendimento coletivo comum anteriormente de que protestos “não servem pra nada, não dão em nada”. 2013 nos ensinou que, com luta, se pode vencer.

O segundo sentido é o do movimento. 2013 ensinou que, mesmo quando não se avança em pautas concretas, a luta coloca a história em movimento. As mobilizações daquele ano aceleraram o andar da história. Vivíamos em um momento de certa apatia social poucos anos antes. Embora avanços importantes fossem construídos pelo governo federal, o movimento popular parecia, em alguma medida, engessado. 2013 liberou essas forças e acelerou o moinho da história. Moinho esse que pode “triturar teus sonhos tão mesquinhos” e “reduzir as ilusões a pó”, como cantava Cazuza, mas também pode proporcionar a força da mudança popular.

É possível obter vitórias concretas imediatas e é possível colocar a história em movimento.

Há muitos outros ensinamentos que devemos carregar de 2013, e o que virá no futuro próximo exige do campo popular a capacidade de desarmar-se do próprio ego e permitir-se ampliar o olhar. Por isso, 2019 precisa nascer com essas lições aprendidas.

(*) Jornalista e cientista social, autor de “Nada será como antes – 2013, o ano que não acabou, na cidade onde tudo terminou”, Editora Libretos.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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