Opinião
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11 de dezembro de 2018
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11:53

Bolsonaro presidente: como será o futuro de um governo voltado para o passado? (por Erick Kayser)

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Sul 21
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Bolsonaro presidente: como será o futuro de um governo voltado para o passado? (por Erick Kayser)
Bolsonaro presidente: como será o futuro de um governo voltado para o passado? (por Erick Kayser)
Foto: Alessandro Dantas/Fotos Públicas

Erick Kayser (*)

Como será o futuro governo Jair Bolsonaro? Esta pergunta paira no ar e possivelmente, mesmo passada a sua posse em janeiro, ainda levará um tempo para o caráter deste governo se estabelecer. A vitória de um candidato que até setembro de 2018 muitos acreditavam improvável, torna a projeção dos rumos da conjuntura política brasileira marcada por incertezas e, para piorar, as certezas restantes não são nada alvissareiras. Constatar o elevado grau de imprevisibilidade do governo Bolsonaro não significa que não devamos nos esforçar em tentar apontar cenários (e como enfrentá-los), mas para concentrar nossos esforços com maior eficácia.

É difícil não lançar um olhar para o passado ao tentar projetar a configuração política de Bolsonaro na presidência. Isso independe de ser historiador, área afim, ou ainda apenas alguém com curiosidade sobre os temas do passado mas, principalmente, fruto direto da retórica passadista reacionária do candidato eleito. Para além do revisionismo e da apologia ao autoritarismo de Bolsonaro em seu discurso elogioso à ditadura militar, este apelo regressivo se faz mais evidente nos efeitos do “bolsonarismo” expresso, por exemplo na caça às bruxas nas universidades e escolas, censura à imprensa, além de uma escalada de atos de violência.

Para algum leitor incrédulo que imagine que este apelo ao passado seja uma perspectiva apenas denunciada pelos críticos, são inúmeros os exemplos entre seus apoiadores que exaltam e tornam explicita esta relação. Um caso (entre tantos) que beira ao grotesco é do SBT, de Sílvio Santos, cuja emissora de TV vinculou, poucos dias após o resultado do 2º turno, uma série de vinhetas de tom nacionalista, em apoio ao presidente eleito, onde um locutor anuncia: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. O resgate da frase que serviu de slogan na ditadura não foi casual.

Para além de um uso político do passado que beira ao demagógico, sua efetividade é questionável, pois sabemos que a história não se repete. Quando muito, como apontou Marx, se repete como farsa ou tragédia. No caso de Bolsonaro, não é muito difícil projetar uma sinistra mescla de tragédia e farsa na condução do governo federal. Contudo, apesar dos desejos do Bolsonaro e seus apoiadores, não estamos mais em 1964, o Brasil (e o mundo) de hoje, para o bem e para o mal, em muito diferem daquele.

Por esta razão, mesmo que possa parecer paradoxal pensar em termos de futuro para um governo cuja simbologia se volta para um passado, entendo que este esforço é necessário. Mais do que se reter observando semelhanças em experiências brasileiras pretéritas, nos parece fundamental agora destacar as atuais singularidades. Nesta perspectiva, faremos a seguir um breve esforço de prospecção. Antes que alguém questione: “mas pode um historiador falar sobre o futuro?”, me valho aqui das lições do historiador britânico Eric Hobsbawm, que no ensaio “A História e a previsão do futuro” (1981), lançou importantes questões sobre a tentativa de historiadores “preverem” o futuro. Apontando as limitações desta empreitada, mas igualmente sua importância, ele afirmava: “A história só fornece orientação, e todo aquele que encarar o futuro sem ela não só é cego mas perigoso, principalmente na era da alta tecnologia”. Ainda que seja um esforço eivado por limites óbvios, afinal, não existem “leis históricas” que predeterminem o porvir, se mostra útil na tentativa de estabelecer uma perspectiva histórica do período que se iniciará.

Em termos globais, a eleição de Bolsonaro pode ser apontada como o capítulo brasileiro de um processo mais geral de recuo do capitalismo democrático e de erosão de sua institucionalidade de matriz liberal. Processo este que tem suas raízes na hegemonia neoliberal e que, acompanhado por outros fatores, aprofundou-se a partir da crise econômica de 2008. Esta guinada para uma ordem pós-democratica é capitaneada por um renovado populismo de direita, que tem no presidente dos EUA, Donald Trump, seu paradigma maior. Este fenômeno geral de recuo (ou mesmo ocaso) do liberalismo democrático, ainda que aponte para uma lógica sistêmica do atual estágio do capitalismo, também deve ser observada nas peculiaridades locais deste processo. Exemplificando, ainda que Trump seja a fonte de inspiração declarada de Bolsonaro, em termos políticos o brasileiro se situa à direita do líder norte-americano. Suas posições com relação aos valores democráticos e aos direitos humanos, por exemplo, são muito mais regressivas que as de Trump, o que torna Bolsonaro mais semelhante a Rodrigo Duterte, o autoritário presidente das Filipinas que tornou-se mundialmente conhecido pelas milhares de vidas ceifadas com sua “guerra as drogas”.

Este cenário internacional onde forças de extrema-direita buscam estabelecer uma agenda iliberal e que vê o renascimento de nacionalismos, enfraquece uma lógica multilateral nas relações internacionais. O enfraquecimento do multilateralismo, associada ao protecionismo dos EUA e sua guerra comercial, para as nações periféricas, será bastante danoso, face o desequilíbrio de força frente as potências ocidentais. Ainda que o Brasil esteja sintonizado a este movimento pós-democrático, isto não torna o cenário mais favorável ao governo Bolsonaro. Não existe neste momento qualquer laço de organicidade política e estratégica entre estes diferentes governos autoritários, prevalecendo em muitos casos rivalidades e o aprofundamento de uma lógica concorrencial entre estas nações. Basta ver as relações bilaterais entre a Polônia ou a Hungria com os EUA ou a Rússia. Assim, o futuro governo Bolsonaro não deverá contar com um suporte econômico internacional substancial derivado de seu alinhamento ideológico. Terá de buscar contornar os problemas brasileiros de outra forma.

Bolsonaro surge no horizonte da longa crise política brasileira como o herdeiro e vencedor do butim ao Estado desencadeado pela coalização promotora do golpe que destituiu Dilma Rousseff da presidência em 2016. Expressão grotesca de uma extrema-direita que até então ocupava um espaço residual na política nacional, Bolsonaro habilmente ocupou um espaço onde ao mesmo tempo capitalizou os efeitos da queda do PT da presidência, e por outro lado, ficar imune ao desgaste do governo Michel Temer. Neste ponto há um aspecto importante a ser observado: o governo Bolsonaro, a despeito de sua retórica “mudancista”, não representa uma ruptura com o atual governo, pelo contrário. Já durante a campanha, mas principalmente no período de transição, o novo governo assumiu compromisso de continuidade das principais políticas de Temer. Para um observador externo pareceria pouco lógico um governante recém-eleito se associar de alguma forma a um governo que encerra atingindo as piores marcas de aprovação desde a redemocratização. No entanto, não há nada de ilógico nesta opção, mas puro cálculo pragmático.

Para viabilizar sua vitória e ser palatável para um conjunto mais amplo de setores, Bolsonaro precisou assumir publicamente um claro compromisso de classe para seu futuro governo. O grande empresariado e os rentistas ligados ao capital financeiro pouco se importaram com o evidente desapego à democracia e aos direitos sociais do deputado militar da reserva, o fundamental para eles lhe apoiarem era a garantia de uma continuidade do programa radical de reformas neoliberais iniciadas por Temer. A escolha de um Chicago Boy como Paulo Guedes para comandar a área econômica foi a forma encontrada de assumir publicamente este compromisso. Assim, o neoliberalismo vêm funcionando como uma máscara para tentar esconder sua natureza fascistoide. O mecanismo discursivo, em linhas gerais, opera dentro da seguinte lógica: apesar da verborragia violenta e irracional de Bolsonaro, sua adesão as políticas econômicas neoliberais mostrariam que há “sensatez” em suas decisões. Paradoxalmente, o programa neoliberal, sempre rejeitado nas urnas pela maioria da população, é usado agora como elemento legitimador do presidente eleito.

Em termos gerais, pelo histórico político do presidente eleito e das principais figuras que lhe apoiam, assim como pelo conjunto de decisões anunciadas durante a transição de governo, como a composição ministerial (formado por diversos militares da reserva ao lado de algumas figuras exóticas e controversas da direita radical) e as políticas que poderão ser adotadas (privatizações, fim das ações de preservação ambiental, alinhamento subserviente aos EUA, etc) o viés regressivo é por demais evidente. Em sua simbologia política maior, será um governo obscurantista e odioso para toda e qualquer pessoa identificada com valores democráticos e humanistas.

Seus primeiros movimentos já como eleito indicam a continuidade de sua tática eleitoral ofensiva e não convencional. Será uma forma de tentar contornar as dificuldades de governar e a impossibilidade de atender a totalidade contraditória de anseios de seus eleitores, onde as crises não tardarão a surgir. Com poucas promessas e em geral vagas e sem debater coisa alguma, Bolsonaro se elegeu com o voto contrário “a tudo isso que está aí”, como afirmava em um de seus jargões. Esperam os que o elegeram que satisfaça todas as suas expectativas. E aí que está o grande nó. São tantas e tão difíceis de serem atendidas que logo começará a frustração. Para manter sua base de apoios coesa, buscará adotar uma tática de conflitos permanentes, contra os inimigos internos e externos. A “guerra cultural” em defesa de valores conservadores e autoritários, além de tentar reter uma sustentação popular, funcionará como um “espantalho político”, desviando as atenções tanto de sua base como da oposição (que será obrigada a reagir), escamoteando os problemas reais do governo e do país.

Pelo que já foi aqui apontado, parece lógico prever que a crise política brasileira estará longe de um fim com o governo Bolsonaro, pelo contrário, deverá entrar em uma nova e perigosa fase. Tudo leva a crer que teremos uma continuidade, ou até mesmo a ampliação, de um padrão de alta conflitividade política e social. O aprofundamento das políticas econômicas neoliberais não tardarão a produzir seus efeitos regressivos, tornando uma perspectiva de recuperação da economia brasileira, na melhor das hipóteses, efêmera, sendo o mais provável um aprofundamento da recessão. As condições econômicas adversas serão um obstáculo formidável para que o novo governo obtenha a sonhada estabilidade política.

Se uma “normalidade democrática” é algo impensável num governo Bolsonaro, mesmo em situações de instabilidade e caos político, algum ordenamento, ainda que frágil, se impõe. Assim como, nunca é demais lembrar, existe uma longa distância entre as intenções políticas de um presidente e seus aliados e o que ele de fato terá força e meios de executar. Assim, surgem questões que nos exigem alguma tentativa de resposta: qual será o real caráter político deste governo? Como será a presidência de Bolsonaro do ponto de vista institucional?

Para encarar estas questões, o cientista político Rogério Bastos Arantes no artigo “Três cenários para Bolsonaro”, publicado pouco depois do resultado do 2º turno das eleições, traz alguns importantes elementos para buscarmos respostas. Em linhas gerais, aponta quais seriam os três cenários mais prováveis: Bolsonaro aderir ao presidencialismo de coalizão, adotar um autoritarismo legal ou fazer um governo errante.

O primeiro cenário hoje parece ser o mais improvável, pois pressupunha gestos mais decididos do candidato eleito, já durante a transição, junto aos diversos partidos para compor uma coalizão majoritária no governo, tal como fizeram seus antecessores. Para assegurar isso, além de declarações de boas intenções entre as partes, necessariamente teria de vir acompanhado de espaço no governo para os partidos que o apoiam. Bolsonaro, no então, tem optado por privilegiar as chamadas “bancadas temáticas” (ruralistas, evangélicos, etc), mas estas são pouco coesas e não lhe assegurariam maioria necessária para aprovar mudanças constitucionais. Entendo que o cenário de um governo de coalizão não deve ainda ser de todo descartado, podendo ser adotado ao longo do primeiro ano de governo como forma de “domesticar” a presidência e garantir alguma estabilidade.

O segundo cenário, o de uma legalidade autoritária, seria do Bolsonaro tentando cumprir o que prometeu, e na forma como prometeu, desvencilhando-se da política tradicional e de suas instituições. Como corretamente aponta Bastos, já existem elementos para viabilizar esta via. Além do fato de o próprio candidato ter passado 4 anos em campanha reivindicando o retorno a uma ordem autoritária, inegavelmente o regime democrático vem se esfarelando desde 2014. O autoritarismo legal ressurgiu pelas mãos dos homens de leis e os militares já detém posições estratégicas no regime atual e ocuparão lugar central no núcleo do governo Bolsonaro. A indicação do agora ex-juiz Sergio Moro para comandar o ministério da justiça aponta para esta via autoritária, através de um aprofundamento da seletividade política já vista durante a operação Lava Jato.

Este cenário de uma escalada autoritária também apresenta obstáculos importantes: primeiro, o eleitorado e os partidos de oposição terão força razoável para organizar a resistência; segundo, haveria pressão internacional contra o fechamento do regime; terceiro, é pouco provável que as instituições independentes se curvem ao arbítrio do executivo. Neste último aspecto, Bastos argumenta que, embora nossos homens de leis tenham contribuído para esse estado de coisas e haja fonte da qual extrair a tecnologia para uma legalidade autoritária, é improvável que Judiciário, Ministério Público, Defensorias Públicas e outros órgãos de controle se curvem, como instituições, ao autoritarismo institucional.

Acrescentaria ainda um quarto obstáculo: dentro das forças políticas organizadas que sustentam Bolsonaro, e parcela significativa de seu eleitorado difuso, muitos não apoiariam uma guinada ditatorial. Para adotar esta via, é indispensável deter uma força social coesa para impor a “virada de mesa”. Hoje Bolsonaro está longe de deter apoio para isso.

Por fim, o terceiro cenário seria de um governo errático, e possivelmente de vida curta. Os dois primeiros cenários ilustram hipóteses extremas que dificilmente se realizarão por completo por suas próprias contradições. Assim, devemos trabalhar com uma situação onde o futuro governo pode caminhar para uma situação errática e de paralisia em curto espaço de tempo. Com um governo errante, que busca manter um apoio social, mas não consegue dobrar as instituições, Bolsonaro poderá recorrer à mobilização popular direta, através de plebiscitos e referendos. Estas consultas plebiscitárias privilegiariam pautas voltadas para questões de comportamento, hábitos e costumes, assim como segurança pública e autodefesa individual. Longe de representar uma “democratização do Estado”, deverão surtir o efeito inverso.

Um outro efeito provável desta tática seria um acirramento de sua base social mais radicalizada, tendo o ódio e a violência política, tal como já visto na campanha eleitoral, como grande combustível para um aprofundamento de cisões sociais no país. Este caminho mobilizador cumpriria o papel de delimitar com maior força a noção de um “nós” contra “eles”, essencial para estabelecer os “inimigos internos” indispensáveis a qualquer governo autoritário. Na hipótese de num cenário de enfraquecimento extremo do governo, devem buscar “inimigos externos” como tática diversionista. A conjuntura regional sul-americana permitiria, a despeito da tradição diplomática brasileira, uma possibilidade de beligerância aberta. As consequências, por exemplo, de uma guerra contra a Venezuela, por óbvio, seriam desastrosas. Neste último cenário, Bolsonaro não terminaria o mandato, ou no máximo, o encerraria de forma ainda mais melancólica que o rejeitado governo Temer.

Estes exercícios de prospecção conjunturais por certo deixam escapar certas nuances que deverão ter influência importante na conjuntura nacional. O fundamental aqui é constatar que, a eleição de um presidente com um perfil político “anormal”, não terá como produzir um governo que não seja tão anormal quanto ele. Este entendimento é fundamental para a esquerda e o conjunto das forças democráticas. E por fim, trabalhamos aqui com a perspectiva que Bolsonaro será empossado e seguirá a frente do cargo em seu mandato. Não especulamos as chances de conspirações internas ganharem força e aplicarem um “autogolpe”, expediente já ventilado pelo vice-presidente eleito, General Mourão, ainda durante a campanha eleitoral. Suas declarações durante a transição, buscando se diferenciar da família Bolsonaro como uma “voz sensata”, alimentam esta possibilidade. Hoje parece difícil imaginar que isso ocorra, mas devemos ter cautela em descartar por completo essa possibilidade. Afinal, depois da recente conspiração de Temer para derrubar Dilma da presidência, quem ousaria, honestamente, afirmar que um novo golpe é impossível?

(*) Historiador

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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