Opinião
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4 de novembro de 2018
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13:40

Hora da democracia reagir (por Jorge Branco)

Por
Sul 21
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Hora da democracia reagir (por Jorge Branco)
Hora da democracia reagir (por Jorge Branco)
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Jorge Branco (*)

“Vil Robespierre! Tu me seguirás. Tua casa será arrasada e o solo que a sustém, semeado de sal”.
Georges Jacques Danton.

A frase acima foi dita por Danton, em 5 de abril de 1794, a caminho do cadafalso, predizendo o futuro do líder do terror na revolução francesa, Maximilien Robespierre. Em 28 de julho do mesmo ano, a profecia se cumpriu.

Bolsonaro não pode ser tratado como um arrivista ou um fenômeno exterior à luta política realizada ao longo do período democrático no Brasil. A vitória do Bolsonaro, neste 28 de outubro de 2018, é a ruptura com esse período do pacto da Constituição de 1988,

Sua vitória é a resultante de uma grande movimentação política iniciada com a crise de junho e julho de 2013, seguida na derrota da direita no segundo turno das eleições de 2014, construída no impeachment da Presidenta Dilma, na operação política fora da lei de parte da magistratura que desembocou na prisão do Lula, em seu impedimento eleitoral e coroada com a vitória nestas eleições.

Bolsonaro é a expressão de um bloco de forças composto pelo capital financeiro internacional, pela burguesia urbana e rural do Brasil, pela pequena burguesia, pela alta tecnocracia estatal (grande parte das carreiras de Estado como as jurídicas, financeiras e militares são compostas por operadores conservadores e, até, reacionários) e pela cúpula das igrejas cristãs neopentecostais. A fração de classe hegemônica desse bloco dominante é o capital financeiro internacional aliado ao nacional subalterno. A essa fração hegemônica associa-se o oligopólio privado da mídia.

Esse bloco político reacionário alia elementos fascistas com elementos neoliberais. Diferente do fascismo clássico, não se contrapões aos preceitos liberais na economia, tampouco propõe uma política nacionalista, de tipo autárquico. Ao contrário, seu receituário econômico é, absolutamente neoliberal, inclusive em seu desprezo pela democracia (haja visto o apoio dos grandes mestres do neoliberalismo mundial, Hayek e Friedman, às ditaduras chilena e argentina). Aproxima-se do fascismo, contudo, a partir das ideias da eliminação do inimigo, do fundamentalismo ideológico de corte religioso e moralista, da supremacia da ordem e do militarismo, do líder forte e da violência social como método. Esse é um bloco de novo tipo, neofascista no campo da política e antinacional e neoliberal, no campo da economia. Isso no que diz respeito aos seus primeiros movimentos, que ainda são insuficientes para uma caracterização mais conclusiva.

O contexto da crise econômica mundial resultou em um encurtamento do espaço de acumulação de capital da grande burguesia financeira internacional e de suas taxas de lucros. A saída encontrada por esses setores foi aumentar o processo de sobre-acumulação em escala mundial, através de subtrações de direitos sociais e normas protetivas do trabalho e transferir os prejuízos às contas públicas em todo o mundo através de políticas de ajuste fiscal e do cumprimento dos pagamentos das dívidas financeiras, tomadas como prioridade absoluta para os governos títeres. A resultante desse processo foi a ampliação da superexploração da força de trabalho. É nesse contexto, por exemplo, que o governo estadunidense socializou as dívidas dos bancos falidos em 2009, caíram os preços mundiais da commodities, em especial do petróleo objeto de um verdadeiro “dumping”, e se ampliaram as dívidas dos estados nacionais, como os casos da Grécia, Espanha e Argentina.

Mesmo realizando políticas que melhoraram significativamente a vida dos mais pobres e tendo lançado bases a efetivação de uma soberania nacional real, a decisão prática dos governos petistas de não realizar reformas cirúrgicas, ainda que parciais, deixou intactos núcleos de poder autônomos que se mobilizaram e articularam para derrubar o governo popular: o sistema político, eleitoral e partidário; o sistema tributário que manteve a oneração principal sobre os mais pobres e de menor e média renda; o aparato estatal coercitivo que manteve as estruturas de poder na mão das elites, como ministério público, sistema judiciário, polícia e burocracia; e a manutenção de uma rede de mídia oligopolizada economicamente e monopolizada politicamente.

Os erros políticos não causaram a crise mas a ampliaram e tornaram a esquerda mais frágil para enfrentá-la. Tanto a subestimação do valor corrosivo da crise de 2013, na incapacidade de reconhecer que, no interior das manifestações daquele ano, se construíam as redes de relacionamento que deram base social à direita reacionária, quanto a subestimação do grau de consolidação dos valores conservadores da maioria da sociedade brasileira, convergiram para um desarmamento político do PT.

Assim, o governo Dilma se mostrou acuado, apontando para uma saída recessiva e neoliberal para a crise, sendo a presença de Joaquim Levy no Ministério da Fazenda sua expressão máxima. Fora do governo o PT, principal partido da base do governo, mergulhado totalmente no sistema político conservador, foi incapaz de avaliar a exata dimensão do tema da corrupção e não mostrou disposição política de iniciar a necessária estratégia de mobilização social e de disputa de valores no campo da ideologia e da cultura política. Já nos primeiros sinais de que a direita não mais estava contida no pacto democrático e iniciava as operações para derrubar o governo Dilma e os primeiro sinais do esgotamento da política de alianças com o centro, a direção do partido ainda claudicava para assumir a denúncia de que se tratava de um golpe.

A vitória eleitoral de Bolsonaro, neste outubro de 2018, não pode ser vista isoladamente, é a resultante de um processo de corrosão e desestabilização da democracia liberal brasileira e suas instituições, corrosão que atinge também os aspectos protetivos de caráter social do Estado brasileiro e os direitos fundamentais, como a legislação trabalhista, o sistema público de previdência e as liberdades individuais e coletivas como a liberdade de pensamento e cátedra.

A organização meticulosa das manifestações anti-sistema de 2013, o questionamento da vitória eleitoral de Dilma Rousseff em 2014, a condução midiatizada das investigações da “Lava Jato”, as condenações seletivas, a cooperação não legal entre os aparatos estatais repressivos dos Estados Unidos e do Brasil, a construção racional de opinião por operações manipulatórias de informações nas rede sociais, a cooptação da elite tecnocrática brasileira pelos valores liberais e reacionários, a assunção da mídia à condição de príncipe moderno da política, o impeachment sem causa da Presidenta Dilma Rousseff, a condenação e prisão inconstitucional de Lula da Silva e o impedimento de sua candidatura, a campanha baseada em farsas e manipulações do oligopólio da mídia e a operação Sergio Moro (agora transformado em ministro do governo Bolsonaro) de liberação de “delações” seletivas em pleno período eleitoral, expressam um processo de radicalização da ruptura democrática a partir da não observância da regra e da normalidade procedimental da democracia e do sistema judiciário no Brasil. Uma ruptura com aqueles elementos que a própria literatura liberal considera como requisitos para a caracterização de um regime político como democracia.

A eleição foi contaminada por operações que cercearam o direito dos brasileiros em decidir autonomamente seu voto, a partir da interferência do sistema judiciário e do aparato policial-coercitivo, do oligopólio da mídia e de uma campanha de mentiras consentidas pelo sistema que afetaram as ideias de eleições justas e limpas.

Essa ação midiática e judicial–policial passou a criminalizar discricionariamente a esquerda e o PT mais diretamente e, como consequência, absolver e legitimar o outro lado da disputa política, a direita e seus candidatos, afetando materialmente a liberdade de expressão universal. Os meios de comunicação, que já eram oligopolizados do ponto de vista econômico, se tornaram monopolizados do ponto de vista ideológico e político, restringindo dramaticamente a possibilidade de diversificação da informação e refutação das notícias falsas, diminuindo as possibilidades de exposição de ideias e o direito ao esclarecimento.

Essa conjunção mídia-aparato estatal repressivo condicionou e diminuiu, mesmo que parcialmente, a autonomia e a liberdade de associação e de ação política com forte repressão aos movimentos sociais e manifestações espontâneas.

Trata-se de um processo de eliminação dos requisitos que caracterizam um regime como democrático, revelando que em momentos de crise do capital e ascenso, mesmo que mínimo, de setores populares a espaços de poder, a burguesia lança mão do aparato repressivo e ideológico do Estado e dessa forma desnuda o fato de que a democracia liberal constitui-se como frágil diante da disputa política de classes.

A marca da democracia liberal é o desequilíbrio em favor do maior poder econômico e do controlador do poder de Estado. Ainda assim, quando e apesar deste desequilíbrio, sempre que os setores populares avançam sobre o campo de disputa das instituições e do Estado democrático, em via de regra na história brasileira, as elites conservadoras buscam resolver essa disputa através do solapamento do sistema democrático. Os elementos apontam, por ação política da extrema direita, para uma desdemocratização e caminha para uma situação autoritária.

A situação autoritária, pode ou não, desembocar em um regime autoritário, mas se caracteriza pela combinação entre a generalização das atitudes coercitivas do Estado, como o aumento da repressão policial aos movimentos sociais e a ideologização da escola como o “Escola sem Partido”, com a ampliação da coerção societária auto imputada, com  refutação e constrangimento de opiniões através de assédios morais e ameaças objetivas, como as ocorridas nas escolas particulares de Porto Alegre nesta última semana, promovidas pelos novos ativistas de direita, organizados em associações ou não, defensores da ordem, da estrutura de privilégios e dos dogmas fundamentalistas.

As perspectivas do início do governo Bolsonaro não nos permitem ser otimistas com o Brasil. Sem mediação de partidos políticos, lideranças centristas e núcleos de pensamento conhecidos o governo Bolsonaro tenderá a sofrer e produzir muitas crises políticas. Isso porque, ainda que desconhecendo sua medida e seu caráter, haverá resistência social e política às iniciativas conservadoras e anti-populares que se avizinham. Mas também porque poderá haver pouco consenso no interior do bloco governista sobre essas medidas. É possível imaginar que a fração financeira hegemônica no bloco imponha duras medidas de arrocho fiscal, altos juros e recessão, amargas inclusive, para grande parte do próprio bloco político que sustenta seu governo.

Entretanto, os mecanismos ideológicos e coercitivos do Estado estão sob controle deste bloco, diferente do que ocorreu durante os governos petistas de 2003 a 2016. Isso poderá criar uma “unidade forçada” deste bloco por um tempo que desconhecemos.

O quadro tende a gerar muita instabilidade. Não há nenhum indicativo que o governo Bolsonaro, ao menos nos primeiros meses, vá adaptar-se ao que se tem chamado de “presidencialismo de coalizão” e buscar alguma forma de pactuação com os partidos tradicionais da centro-direita. Ao contrário, deve estar em nossos horizontes a perspectiva que ele busque sustentação política direta na própria mobilização dos setores mais radicalizados de sua base eleitoral. É possível imaginar que ele busque uma dinâmica impositiva de pautas ultraconservadoras que possam manter essa base mobilizada e pressionando o ‘sistema político” que ele denunciou durante a campanha. O que já observamos antes mesmo de sua posse com o destravamento, na Câmara dos Deputados, de pautas que assumiram caráter ideológico como a liberação do armamento, “escola sem partido”, criminalização dos movimentos e dos símbolos comunistas, diminuição da idade penal, entre outros. Essa estratégia mobilizatória e altamente ideologizada poderá servir para manter a legitimidade e força do governo, acuando o Congresso Nacional e contendo possíveis fissuras no bloco governante.

A dinâmica política, altamente ideologizada, com base em um conjunto fragmentado de premissas reacionárias e protofascistas aponta para um esfacelamento do modo político prevalente, desde o fim do regime autoritários de 1964, o democrático consensualizado, chamado muitas vezes de “presidencialismo de coalizão”, em favor do modo político da “dinâmica de maioria”, mais autoritário e impositivo. Não é sem sentido que se possa imaginar que o bloco reacionário e o governo Bolsonaro lancem mão de instrumentos de mobilização, como consultas e plebiscitos, para manter coesa e mobilizada essa base ultraconservadora e impor sua opinião.

É possível projetar, entre tantos cenários possíveis, que no governo Bolsonaro haja uma certa “divisão de trabalho”: a economia conduzida diretamente pelo setor financeiro, aplicando uma etapa mais radical de um programa de ajuste fiscal e de reformas estruturais com o objetivo de diminuir o custo do trabalho e aumentar a acumulação privada da mais valia, com a complementação da precarização do trabalho, diminuição de sistemas protetivos e previdenciários; e os aspectos políticos sob direção e controle desse campo protofascista, em uma investida sobre a regressão nos costumes e exploração dos valores ideológicos e culturais conservadores, contra as conquistas em direitos humanos, regressão nos conteúdos da educação pública, forte coerção e perseguição à esquerda, tentativa de isolamento, enfraquecimento e, até, eliminação do PT e perseguição e repressão aos movimentos sociais.

A inconstitucional prisão do Lula e a relativa eficácia da campanha eleitoral do PT fizeram-no sair destas eleições com relevante capacidade de resistência. Os demais partidos de esquerda, como o PSOL e PCdoB, igualmente foram capazes de aglutinar forças para a resistência. A centro-esquerda, PSB e PDT, não tiveram unidade mas, majoritariamente, estiveram no campo democrático e na resistência ao reacionarismo. O certo é que qualquer operação de eliminação da esquerda será muito mais difícil para o neofascismo do que ele, próprio, supunha.

Esses resultados apontam que, em que pesa a derrota no segundo turno, a esquerda sobreviveu com relevante força política. Contudo, é preciso compreender esse resultado em um contexto de recuo político das ideias de esquerda e democráticas e um crescimento do antipetismo. Esse antipetismo veio contido em dois outros elementos mais estruturais dos valores políticos da sociedade brasileira, o sentimento antissistema e o anticomunismo, elementos racionalmente explorados pelos centros de poder que construíram esse bloco reacionário e pela campanha de guerra promovida por esse bloco.

A resistência, entretanto, não é só dependente de força ou tamanho de um partido ou bloco de partidos, a capacidade de resistência está relacionada a uma estratégia coerente. A estratégia de resistência e de contraofensiva não poderá ser de um único partido mas de um grande campo popular e democrático. Os movimentos sociais orgânicos, os setores que se articularam em torno das candidaturas Fernando Haddad, Ciro Gomes (a despeito de seu papel minúsculo no segundo turno) e Guilherme Boulos, os setores independentes que ingressaram na luta antifascista, como entre os jovens, e certa reconciliação da esquerda com setores médios de caráter democrático, são elementos fundamentais nessa estratégia de resistência frentista ao bloco neofascista e neoliberal.

Além da resistência e contraposição que venha a ser produzida pelos setores democráticos alguns aspectos institucionais ainda poderão ajudar a “obstaculizar” esse projeto reacionário. Primeiro deles, a Constituição Federal de 1988 ou o que sobrou dela. Ainda que venha a ser emendada e, até, substituída, se tornou um marco político que garante uma certa posição a partir da qual os democratas podem resistir, qual seja, defesa da democracia e dos preceitos constitucionais democráticos e garantistas, que passam a ser uma importante posição a ser defendida. Segundo, o próprio Congresso Nacional, uma vez que suas prerrogativas legais ainda sejam suficientemente fortes para impor ao governo Bolsonaro algum grau de negociação. Pode, assim, ser um fator de desgaste e retardamento de seus projetos em função da fragmentação de sua base além da relevância da bancada de oposição. Terceiro, os tribunais superiores, em especial o STF. Esses tribunais superiores são compostos, em sua maioria, por conservadores liberais clássicos e são alvos de forte pressão da extrema-direita. O sistema judiciário, razoavelmente deslegitimado à esquerda e à direita, agora ainda mais por esse movimento desmascarador da partidarização da magistratura produzido pela nomeação de Sergio Moro como ministro de Bolsonaro, pode obstruir algumas iniciativas em função do espírito de sobrevivência dos próprios tribunais.

Os tribunais superiores e a maioria do Congresso Nacional foram tão ativos na produção das condições do crescimento da extrema-direita que poderão vir a ter o mesmo destino de Maximilien de Robespierre na Revolução Francesa, tornando-se vítimas do terror que eles próprios criaram. Precisamos observar o lugar onde essas instituições e seus sujeitos se posicionarão e quais negociações buscarão fazer para sobreviver.

(*) Sociólogo, mestre e doutorando em Ciência Política

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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