Opinião
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29 de novembro de 2018
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19:31

Flagrante delito (por Raul Pont)

Por
Sul 21
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Flagrante delito (por Raul Pont)
Flagrante delito (por Raul Pont)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

 Raul Pont (*)

A troca casada de assinaturas entre o presidente Temer e o ministro Fux do STF no caso do reajuste salarial do Supremo pode ser interpretada como um flagrante delito. No mesmo momento em que o presidente da República sancionava o reajuste salarial dos ministros do Supremo, Fux revogava sua anterior decisão liminar que há mais de quatro anos estendeu aos juízes federais e, por cascata, a todo o Judiciário dos Estados e demais órgãos afins, o direito ao auxílio-moradia. Sustentava-se a decisão em parecer do Conselho Nacional de Justiça e na lei orgânica da Magistratura, mesmo sem lei específica que regulamentasse o pagamento.

A troca simultânea de assinaturas escancarou a justeza da crítica que, ao longo destes anos, os opositores e críticos da medida afirmavam: tratava-se de mero reajuste salarial disfarçado.

Concedido agora o reajuste via legal (votação no Congresso) e sancionado pelo presidente da República, dispensa-se o adereço, o penduricalho de mais R$ 4.000 recebido ao longo dos últimos anos.

Tudo certo, “borrão e conta nova”!

E as categorias profissionais que não tem o direito de se autoconcederem liminares ou, simplesmente, se pagarem via administrativa, sem lei correspondente que autorize a despesa com dinheiro público?

O ato simultâneo das assinaturas evidenciou, cristalinamente, que não se tratava de um direito líquido e certo, nem muito menos uma insubstituível verba indenizatória para o exercício da função, ou seja, houve um drible administrativo enquanto não existia a lei. Um escândalo, um flagrante delito, que não ganhou mais que um dia de cobertura na grande mídia sempre atenta e repetidora há anos de desvios éticos em sítios e apartamentos triplex.

No Rio Grande do Sul, ainda em dezembro de 2014, a Assembleia Legislativa diante da cascata que se estendia ao MP, ao TCE, à Defensoria Pública, etc e que passou a custar em torno de R$ 80 milhões ao ano aos cofres públicos, aprovou lei determinando que caso o Judiciário quisesse receber essa complementação, deveria fazê-lo via projeto de lei correspondente que autorizasse o gasto público. Aprovada em dezembro, a iniciativa do Legislativo foi sancionada em janeiro de 2015 pelo governador Sartori que assumia o comando do Estado.

Apesar da competência da Assembleia Legislativa para deliberar o que votara e a sanção do governador, foi interposta ação corporativa questionando a lei e, surpreendentemente, recepcionada via liminar pela Justiça, que considerou a lei aprovada pela AL e sancionada pelo governador como “inconstitucional”.

Mesmo diante do flagrante constrangimento da decisão em benefício próprio a liminar suspendeu a lei e após foi solenemente engavetada e nunca julgada por nenhum órgão colegiado. Ao longo destes quatro anos, administrativamente, o benefício foi pago, ao Judiciário e aos demais órgãos afins.

A bem da verdade, registre-se que alguns juízes e conselheiros recusaram-se a receber a vantagem por sua ilegitimidade e não sustentação legal.

Nesses casos de privilégios e em benefício próprio a quem as categorias funcionais não aquinhoadas, os sindicatos e o povo em geral podem recorrer? Quando não há justiça sobra “ir queixar-se ao bispo”!

Quando a autonomia e a independência dos poderes transforma-se em instrumento de burocratização e acúmulo de desigualdades e privilégios, sem possibilidade de fiscalização e controle pela soberania popular, o regime democrático representativo entra em crise profunda.

O recente processo eleitoral evidenciou a crise do sistema representativo (partidos, sistema eleitoral, Congresso) e suas iniquidades (poder econômico e fraude eleitoral, a falência dos partidos, a ingovernabilidade congressual). Esse processo vivido no Judiciário reforça a crise e revela a necessidade da profunda reflexão e mudança das instituições da República que construímos até aqui.

Neste momento em que mais precisamos de liberdade, pluralismo e meios de comunicação democráticos, estamos vivendo as angústias de um futuro imponderável e imprevisível. Isso aumenta a nossa responsabilidade na luta e na defesa da democracia e do fortalecimento dos espaços de soberania popular.

(*) Professor e ex-prefeito de Porto Alegre.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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