Opinião
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28 de setembro de 2018
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19:09

Quem levou os índios para lá? (por Carmem L. T. Guardiola e Marcus A. S. Wittmann)

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Quem levou os índios para lá? (por Carmem L. T. Guardiola e Marcus A. S. Wittmann)
Quem levou os índios para lá? (por Carmem L. T. Guardiola e Marcus A. S. Wittmann)
Vestígios arqueológicos comprovam a ocupação tradicional dos mbya guarani na área. (Foto: Carmem Guardiola)

Carmem L. T. Guardiola e Marcus A. S. Wittmann (*)

Disputas e controvérsias sobre a retomada mbya guarani nas terras do Arado Velho.

Entre os moradores e nas mídias sociais dos bairros do extremo-sul de Porto Alegre, ouve-se com frequência esta pergunta a respeito da chegada de lideranças indígenas e famílias mbya guarani na Ponta do Arado, situada nas terras do Arado Velho:

“Quem levou os índios para lá?”

Essas terras, situadas no bairro Belém Novo, às margens do Lago Guaíba, são habitat de diferentes espécies de animais e plantas – protegido como área de proteção ambiental – e também alvo de um empreendimento imobiliário de grandes proporções. A chegada desse grupo de indígenas mbya guarani para, segundo eles próprios, retomarem essa área como terra tradicional, gerou diversos debates entre moradores do bairro, empreendedores e ambientalistas. Uma das questões levantadas principalmente por parte da mídia, pelos empreendedores do condomínio e por seus apoiadores é: quem teria levado, por interesses próprios e políticos, esse grupo de indígenas ao local.

Contudo, em realidade, a pergunta “quem levou os índios para lá?” esconde um preconceito velado (às vezes nem tanto); a ideia de que os mbya guarani – que hoje ocupam uma estreita faixa da orla da Ponta do Arado Velho – foram usados como massa de manobra por um movimento ambiental e político contra os interesses econômicos e de desenvolvimento que o condomínio de luxo, de 426 hectares, traria para a região. Essa suposição, defendida por alguns como verdade, trata esses indígenas como meros fantoches de interesses e de grupos de pessoas que militam por uma causa própria. Todavia, o que não se nota ao fazer essa simples pergunta é que os motivos que levaram os mbya guarani a ‘retomar’ (e essa palavra é de extrema importância e carregada de sentidos políticos e cosmológicos) essa terra vem de muito antes de um projeto desenvolvimentista para construir um condomínio na área, vem de muito antes da criação de um movimento ambientalista, vem de muito antes daquela região ser conhecida como Belém Novo, vem muito antes de Porto Alegre. A pergunta que se deve fazer, a fim de entender o movimento, as causas e as demandas dos indígenas, não é “quem levou”, mas sim “o que levou os mbya guarani para lá?”.

O que os leva a retomarem as terras do Arado Velho é a ancestralidade e a tradicionalidade delas. Ancestralidade e tradicionalidade expressas, latentes, e materializadas em forma de sítios arqueológicos. Vestígios culturais centenários e milenares da ocupação guarani na região, ao longo de todo o lago Guaíba, quando esse ainda era conhecido como “o lugar onde o rio se alarga” (de Guayba, gua = grande; yy = água; ba = lugar). Dos mais de trinta sítios arqueológicos conhecidos na região, pelo menos dois deles se encontram nas terras do Arado Velho, um deles a poucos metros de onde as famílias mbya guarani agora vivem espremidos e encurralados.

O que levou os indígenas a retomarem as terras do Arado Velho foi seu direito constitucional de viver a partir de sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, possuindo também o direito originário sobre suas terras tradicionais. Cabe ao governo brasileiro demarcar essas terras, protegê-las e fazer com que se respeite tal ato, tal ocupação e os indígenas que nelas habitam. O que levou os mbya guarani para essas terras em Belém Novo não foram apenas esses direitos, mas, e principalmente, o não cumprimento deles. Os indígenas no Rio Grande do Sul ocupam terras que não chegam nem perto de 1% da área total do estado, e sofrem preconceito e ataques violentos – sejam físicos, psicológicos ou religiosos – diários. Se o estado não faz a sua parte, cabe aos indígenas (re)tomarem aquilo que é  seu por direito.

O que levou os mbya guarani para as terras do Arado Velho foi tanto essa violência, quanto uma esperança. Esperança de poder viver do seu modo tradicional, a partir dos preceitos da sua cultura, de sua religião. E como podemos refutar que essa área não serve para isso, se eles mesmos o dizem e repetem para quem quiser ouvir, se até mesmo os seus ancestrais, há muito tempo mortos, dizem o mesmo através de fragmentos de cerâmica e instrumentos de pedra encontrados pelo chão do Arado Velho?

O que levou os mbya guarani para essas terras foi tudo isso, o que eles resumem em uma palavra: “Nhanderu”, “o nosso pai criador”. Foi Nhanderu que, através de um sonho, apontou e guiou as quatro lideranças de volta para essa terra tradicional. E é Nhanderu que as protege e garante seu direito à terra e seus modos de vida tradicional. Se os juruá, os não indígenas, os brancos, não acreditam em Nhanderu, então que acreditem nos vestígios arqueológicos que comprovam a ocupação tradicional dos mbya guarani na área, que acreditem na Constituição Federal de 1988.

Vemos na região embates de formas diferentes de conceituar o mundo em histórias que se cruzam, interesses diferentes em mesmos territórios. Entretanto, pensar no grupo mbya guarani do Arado como massa de manobra para fins capitalistas e interesses políticos regionais, seria um desrespeito a uma longa história de resiliência, conquistas e a sabedoria sobre uma forma de felicidade. Pensar em diferenças culturais em medida ou grau do que é mais desenvolvido ou não, acaba por criar também o primitivo e o civilizado; onde o primitivo é o que não tem capacidade lógica, racional e intelectual para se relacionar em seus modos de economia, religião, saúde e educação. Alguns pensamentos são norteados por esta ideia e colocam no lugar de primitivo os povos que aqui já viviam quando chegaram os homens do além mar. Pensar sobre estes conceitos podem nos remeter a outras indagações, como:

Por que razão não poderiam estes homens de além mar e sua cultura milenar, encontrar aqui uma outra forma de viver também milenar?

O que faz com que um povo pense ser a sua forma de relação com o mundo a melhor ou a civilizada?  Modos tradicionais de viver não possuem capacidade e autonomia histórica e política?

O que mantém estas culturas tradicionais vivas até hoje?

Que verdades e razões, ao final das contas, moveram Timóteo Karai Mirim, Alexandre Kuaray e suas famílias ao retomarem espaços ancestrais? Não seria justamente uma autonomia política e histórica que lhes dá o poder de escolher onde podem ser felizes? O que os levou pode ser, afinal, somente o reconhecer lugares onde podem continuar sendo mbya guarani e ter sua autonomia histórica de relação com a terra.

(*) Pesquisadores associados ao NIT-Núcleo de antropologia das sociedades Indígenas e  Tradicionais/UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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