Opinião
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20 de setembro de 2018
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11:38

Paul Virilio (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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Paul Virilio (The European Graduate School)

Jorge Barcellos (*)

A morte de Paul Virilio priva o pensamento contemporâneo de um de seus mais originais pensadores. Conheci o pensamento do autor através da leitura do livro “Guerra Pura”, em um seminário de introdução à filosofia ministrado por Maria Carolina dos Santos Rocha, uma notável especialista no pensamento de Virilio. Nos anos 80, sua disciplina era revolucionária: o pensamento hegemônico nos cursos de humanidades da universidade federal era o marxismo. A leitura de quaisquer outras linhas era recebida com certo desdém, “modernidades”, “coisas de estrangeiro”. Não para Carolina. Ali, como diria Virilio, era o seu “bunker”. Era 1984.

Nunca mais parei de ler Virilio. Não dá para abandonar um autor original. Há um filme que circula na internet que apresenta suas ideias, mas ainda assim, o teórico da velocidade teve a maior parte de sua obra traduzida, mas ainda é, 30 anos após Guerra Pura, pouco conhecido. Circulou nos cursos de comunicação, graças a outro discípulo local, o jornalista Juremir Machado da Silva.

Virilio foi o primeiro a vislumbrar os perigos da tecnologia e do cenário urbano. Antes do atentado de 11 de setembro, prenunciou que grandes prédios seriam os novos alvos do terror. Depois, refletiu sobre a transformação da política em direção à “democracia de emoção”, exatamente como estamos vivendo. Denunciou o uso do medo, da manipulação e atualizou os clássicos da estratégia como Sun Tzu. Usou a fotografia, em Bunker Archeology, sua primeira obra, para demonstrar os cenários de desaparecimento e por isso foi citado longamente em um seriado muito moderno à época, “América”, da Rede Manchete, que apresentou o pós-modernismo no Brasil.

Tentei trazer Virilio ao Brasil. Ele não era acessado por e-mail, somente por carta. Escrevi e ele retornou. É uma negativa, é claro: o filosofo que apontou que a invenção do avião corresponde a criação da tragédia aérea não entraria num avião. Preferia falara deles em seus livros. Tenho até hoje. Um não de Virilio. Que orgulho. Escrever cartas na era do e-mail: isto era fascinante.

Era um notável contador de histórias. Veja esta. Ela é real. Ele lembra em uma de suas obras que June Houston, uma americana de 25 anos com medo de fantasmas, encheu sua casa de câmeras, disponibilizando as imagens permanentemente na Internet. Ela só pede ao internauta que, cada vez localizar uma forma estranha, um ectoplasma, mande urgentemente uma mensagem para ela. Para Virilio, Huston, sem saber, construiu assim a primeira casa literalmente exposta ao mundo: exemplos como este mostram que a vigilância, a superexposição, a tecnologia e a Internet são nossa obsessão atual.

Estes temas são explorados pelo autor em Cybermonde, la politique du pire, entrevista que surgiu a partir do debate de um trecho de Virilio colocado na Internet, que segundo Phillipe Petit – que conduz a entrevista – chamou muito a atenção pois coloca a questão paradoxal: afinal, nos anos 2000, sumiu de novo a fronteira entre o público e o privado?

Paul Virilio, arquiteto e urbanista, é um dos mais originais analistas do mundo técnico contemporâneo, desde que descobriu a associação que existe entre a produção, a velocidade e a guerra. Nascido em Paris em 1932, de pai italiano, refugiado comunista, e mãe inglesa, Virilio estudou durante anos a fotografia e o espaço, escrevendo esparsamente sobre as cidades e arquitetura. Contemporânea. Trabalhou com Claude Parent e engajou-se fortemente no movimento de 68, começando a escrever sobre tecnologia em 1972, quando dirigiu a L’École Speciale d’Arquitecture. Dessa época, foram publicados no Brasil Espaço Crítico (Ed. 34, 1993), onde Virilio analisa o universo high-tec e as transformações tecnológicas contemporâneas; A máquina de visão (José Olimpio, 1994), que mostra o processo que transformam a consciência e sua substituição por dispositivos tecnológicos e Velocidade e Política e A arte do motor (Estação Liberdade, 1997) que revelam o mundo da velocidade, necessária para a tomada de poder e o seu vínculo a uma história ligada a invenção de motores (entre eles o informático).

Cybermonde é organizado em quatro partes principais. A primeira, intitulada “Da revolução dos transportes a revolução das transmissões”, Virilio analisa o curto período que vai da revolução industrial no século XIX a era informática. Para ele, a questão fundamental é da relação entre velocidade e poder político – Virilio contesta a ideia de que as tecnologias do tempo real podem contribuir para o aprimoramento da democracia. Na segunda parte, “ A parte do mundo ou como recuperar o próprio corpo”, Virilio se interroga sobre a cidade, os dispositivos que recriam nosso mundo habitado e nosso próprio corpo, exatamente no limite entre o espaço público e o privado. A terceira parte, intitulada “Quaisquer boas razões para entrar na resistência”, Virilio se debruça sobre o que chama de acidente geral, o milagre da inversão e reversibilidade dos objetos. ”

No início da invenção da aviação, Santos Dumont é o que correspondia a um dândi do ar, ou seja, para ele a conquista do ar era uma festa. Santos Dumont era um poeta. Ele volta a Paris, durante a guerra de 14, e assiste ao primeiro combate aéreo em que os pilotos atiram uns nos outros com carabinas, o que o deixa estarrecido. Ele vê que sua invenção maravilhosa leva à guerra aérea, ele volta ao Brasil e se suicida. “A última parte, intitulada “Da guerra provável a paisagem reconquistada”, Virilio explora o campo da guerra em tempo real no espaço dos satélites. Sua pergunta, “o que houve com a guerra? ”, nos coloca a questão de que se o desastre real não está diante de nós, é o tempo de reconquistar o planeta e de inventar uma nova paisagem.

Virilio é o novo ecologista surgido das entranhas da técnica, que se surpreende com o projeto da nanotecnologia, a da elaboração de artefatos em escala atômica e que acelera a nossa entrada na era da simbiose com máquinas. Ao questionar a perda de limites entre máquina e homem, a terceira revolução industrial – a de implantes no corpo – Virilio nos mostra que o sonho de Jonny Minnemonic esconde um mal que não é apenas algo das telas do cinema: em realidade, tudo caminha para a construção de um corpo literalmente tecnológico, uma via para a circulação de informações mecanicamente inseridas: no futuro, os corpos serão híbridos. E os casos extremos – esses acidentes que já estão acontecendo ao nosso redor, a que se refere Virilio – nos chamam a atenção para essa diferença, esse espaço entre a invenção e seu contrário. “Estou trabalhando há anos sobre o tema do museu de acidentes, considerando que o século XX, desde o “Titanic”, é o século dos acidentes. Não dos acidentes naturais, é claro, mas dos artificiais. A invenção de um objeto técnico como o navio é a invenção do naufrágio. Mas este acidente corresponde a condições e época dadas, o que indica tratar-se de um acidente local. Com a tele tecnologia, a informática, a telemática, inventa-se um objeto global, e não mais local, que tem a potência do acidente total, ou seja, de um acidente espontâneo e global. ”

Virilio nos ensina a reconhecer o inimigo. É preciso compreender a negatividade desta revolução tecnológica contemporânea, pois a positividade está clara. “Acho que até agora não há nenhuma crítica verdadeira da Internet, isso está começando. Ao surgir do enfrentamento de blocos Leste e Oeste, a Internet suscitou a criação de uma informação global capaz de resistir à guerra nuclear – a ancestral da Internet se chamava Arpanet, um objeto militar do Pentágono destinado a resistir aos efeitos eletromagnéticos de destruição de comunicação durante uma guerra atômica. Não tivemos a guerra atômica, mas temos tecnologias de captura de informação de um lado e de outro para evitar qualquer surpresa e foi dada esta tecnologia à sociedade civil através da Internet.” Diz Virilio.

Outro livro de Virilio, “O museu dos acidentes” onde ele quer mostrar como o século XX cumpriu a idéia de progresso, na paz e na guerra. “O século XX, dizia Albert Camus, é um século implacável. Para mim é um século monstruoso. Acho que é o século dos acidentes em todos os domínios. É claro que conseguimos muitas coisas, mas também fizemos coisas terríveis e faremos pior. Vamos acordar! Não dou razão aos ecologistas, que acham que devemos abandonar tudo e voltar a pescar. Sejamos razoáveis: o progresso científico é uma catástrofe. O que não quer dizer que devemos abandoná-lo. ”

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017), é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a coluna Democracia e política no Jornal O Estado de Direito e a página jorgebarcellos.pro.br.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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