Opinião
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20 de setembro de 2018
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23:52

Hitler, o nazismo e a extrema-direita brasileira (por Gabriel Duarte Costaguta)

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Sul 21
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Hitler, o nazismo e a extrema-direita brasileira (por Gabriel Duarte Costaguta)
Hitler, o nazismo e a extrema-direita brasileira (por Gabriel Duarte Costaguta)
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Gabriel Duarte Costaguta (*)

Nunca pensei que fosse necessário escrever um texto como este. Tal é a complexidade do cenário político brasileiro atual que o passado é reinterpretado a golpe de frases feitas sem parâmetros analíticos e, o que mais preocupa, sem a mínima responsabilidade crítica. Nesse duelo entre falas absurdas e acefalias coletivas, esvai-se liquidamente o pouco que resta de nossa experiência democrática, emergindo, nos momentos eleitorais, a necessidade de lançar as fichas políticas com responsabilidade, pois as chances estão em jogo e em risco na atual conjuntura.

Conversando em tom amigável com um “conselheiro Acácio” eleitor de Bolsonaro, fiquei espantado com sua veemente defesa em relação ao que chamou de “fenômeno esquerdista-hitlerista alemão”, para ele tão óbvio. Em suas palavras, seria Hitler, de fato, comunista e, para minha surpresa (ainda maior!), Carl Schmitt – jurista alemão crítico do liberalismo que consubstanciou juridicamente o regime nazista – seria outro “esquerdopata ditatorial”. Tonto por tantas novas acusações históricas e buscando elementos simples para contrapor a visão de mundo de meu interlocutor, interei-me de um material produzido pelo governo alemão que procurava esclarecer aos defensores desta jabuticaba teórica reacionária que o fenômeno nazista teria sido um movimento claramente de extrema-direita. Na visão deste conhecido pessoal, o 7 a 1 foi um evento racionalmente aceitável e um legado “educacional” ao povo brasileiro, mas que não venham os alemães nos ensinar o que foi o nazismo – cada um no seu quadrado.

A partir da exposição desses complexos paradoxos, a questão que retumbava em minha cabeça era compreender (para além da acefalia aparente) quais as razões que levavam o homem branco heterossexual posicionado em minha frente (talvez a materialização típico-ideal de um representante de nossa extrema-direita) a acreditar que o nazismo (Hitler, Goebells, holocausto, campos de concentração, extermínios humanos, etc.) fora, de fato, de esquerda? A esta altura, me perguntava se Plínio Salgado (intelectual católico brasileiro declaradamente alinhado à ideologia nazifascista) também seria de esquerda? Francisco Campos, intelectual autoritário brasileiro (muito próximo ao pensamento antiliberal de Carl Schmitt) que escreveu a constituição de 1937 e que, por sua vez, legitimou juridicamente a ditadura estadonovista (1937-1945), seria um comunista enrustido? Outra questão: em que mundo fantástico – de causar inveja a qualquer Garcia Marques ou Mikhail Bulgákov – vivia a pessoa que defendia a tese do nazismo de esquerda?

Na tentativa sobre-humana de tentar encontrar os porquês dessa crença descabida, uma palavra ecoava de forma recorrente a cada dez palavras de contestação, a saber, a tão usurpada democracia. Sim, era em nome dela que se defendiam os ideais extremistas. Na lógica teórica do “medalhão machadiano”, seria, por bem, Bolsonaro um democrata puro (um mito), enquanto as experiências autoritárias e totalitárias do mundo, todas elas (sim, acredite leitor!), experiências ditatoriais de esquerda (sabe-se lá o que o cidadão estaria compreendendo por direita ou esquerda. Com medo de correr o risco de imbecilizar, não quis empreender outra seara teórica com o mesmo). Em outras palavras, apenas por conter a palavra “socialista” no nome do partido de Hitler (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP), a anedota popular de que “tudo que é social é de esquerda” passou a ser, tamanha inconsciência política, uma verdade defendida a unhas e dentes por grande parcela de cidadãos brasileiros que irão às urnas no próximo dia 7 de outubro. E nesta esteira interpretativa, democracia seria a antítese de tudo que leva social no nome (como a bolacha clube social, tipicamente coisa da esquerda, não?), logo, Bolsonaro (o antissocialista) seria o patamar de democracia a ser alcançado.

Em minha visão, o que leva cidadãos brasileiros brancos, de classe média/alta e escolarizados a destinarem seus votos a Jair Bolsonaro apresenta várias interpretações, tendo em vista a análise de seu perfil social e as mudanças sociais – ainda que tímidas – ocorridas desde 2002. No entanto, o que intriga é o porquê de os defensores de um candidato machista (e sua defesa de melhor remuneração para homens do que para mulheres), homofóbico (e a ideia de pureza e qualidade superior de seu sangue frente ao sangue de homossexuais), declaradamente admirador de um dos maiores torturadores da ditadura militar (o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II exército), que lamenta o erro da ditadura em “apenas torturar e não matar”, que vê na miscigenação a característica maléfica de nossa identidade nacional, que alega não estuprar uma deputada porque ela “não merece”, que “prefere ter um filho morto a um filho gay”, que defende a ideia de “bandido bom é bandido morto” num país racista em que “bandido” é quase sinônimo de população negra e pobre de periferia, de quererem se posicionar enquanto antítese dos ideais de Hitler e do nazismo?

Há pouco o embaixador da Alemanha no Brasil, Georg Witschel, alegou que essa confusão pode ser fruto de ignorância ou simplesmente desonestidade. Concordo plenamente, apenas adicionaria o medo de um espelho que expressa a versão repaginada do nazifascismo em uma sociedade de “homens de bem” defensores de Deus, Pátria e Família. Para o embaixador alemão “foi uma surpresa que, mesmo no Brasil, haja pessoas que neguem o Holocausto e que falem do movimento nazista como se ele fosse de esquerda”. Escutar tais defesas é admitir a ignorância política existente em parte da sociedade brasileira, caminho percorrido entre o trágico e o cômico.

Explanar uma caracterização básica do regime nazista enquanto movimento de extrema direita, de caráter nacionalista, tributária do darwinismo social em que alemães – de raça ariana – deveriam subjugar outras raças, com seu antissemitismo escancarado e suas ideias sobre racismo biológico, parece transformar-se, no ambiente político brasileiro, em simples sofismas. Tentar explicar que a adoção do termo “socialismo” no nome do partido fazia parte de uma estratégia política de captação de votos e de distanciamento dos tradicionais partidos de direita em uma sociedade em processo de urbanização passa a ser inaudível para grande parte dos defensores de Bolsonaro. Alertar para o fato de que em 1933, momento em que Hitler alcança o poder máximo, os partidos socialdemocrata e comunista foram proibidos e seus integrantes levados aos campos de concentração e assassinados, tornou-se algo pseudo-histórico à intelligentsia bolsonariana. Como reforça o embaixador alemão, o holocausto foi obra dos nazistas, “com certeza não foram os socialistas”. Com isso, observamos uma prática política corrente, a saber, a distorção e a disputa de conceitos com intuitos claramente políticos. No Brasil os exemplos são fartos, como o termo “progressista” do atual Partido Progressista (PP) brasileiro, que mais atua como bandeira do que se ajusta de fato ao conceito.

Poderíamos passar horas caracterizando o regime nazista como movimento de extrema-direita (tal qual tentou, ingenuamente, o governo alemão), e apontando aproximações entre o discurso estéril do candidato da extrema-direita brasileira com o discurso hitlerista, assim como contestar o porquê de seus elogios a um torturador inconteste. Mas pessoas que sairão de casa para efetuar este tipo de voto, para materializar suas posições pessoais, suas visões de mundo, são pouco adeptos não apenas ao ato de pensar, mas também ao debate como meio de desenvolvimento do pensamento crítico. Sim, amigos, Bolsonaro tornou-se a representação simbólica de um inconsciente coletivo autoritário, misógino, racista, homofóbico, etc., etc., etc.. Caso revisitemos tanto o “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, quanto análises acerca do empoderamento da grande mídia no cenário político contemporâneo, teremos uma ideia da força que mobilizações simbólicas já desempenharam ao longo da história mundial e, assim, da emergente necessidade de combatermos, veementemente, esse tipo de discurso extremista.

Com medo de uma reação mais enérgica, não quis alertar a este conhecido (pai de uma filha mulher, acredite-se!) que na categorização social de seu herói, ele estaria na prateleira dos que “fraquejaram”. No entanto, fazia uma noite linda e apenas sussurrei boa sorte em sua trajetória e lhe desejei uma boa noite. Estava tarde para emburrecer.

(*) Mestrando em História na linha de “Sociedade, Política e Relações Internacionais” na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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