Opinião
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5 de setembro de 2018
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13:54

A destruição da Progresso e o “progresso” de Porto Alegre (por Douglas Freitas)

Por
Sul 21
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A destruição da Progresso e o “progresso” de Porto Alegre (por Douglas Freitas)
A destruição da Progresso e o “progresso” de Porto Alegre (por Douglas Freitas)
Ocupação Progresso: Cerca de 200 famílias foram postas na rua e tiveram suas casas destruídas. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Douglas Freitas (*)

Na manhã do dia 4 de setembro, cerca de 200 (cem) famílias, de imigrantes haitianos e brasileiros, foram postas na rua e viram suas casas serem demolidas com a Tropa de Choque da Brigada Militar garantindo a operação de destruição. Estas pessoas, que chegaram ao Brasil refugiadas do Haiti, em busca de uma melhor condição de vida, agora se vem na mesma situação na periferia de uma capital estrangeira. Foram acordados não às 6h30min pelo Oficial de Justiça, mas às três e meia da manhã pelo fogo que atingia três casas da ocupação. A casa de uma amiga haitiana – acordada por alguns para fugir das chamas – queimou. A ocupação Progresso tinha 5 anos, em um terreno abandonado há 50. Segundo depoimento no vídeo do Coletivo Catarse (http://bit.ly/2NiQQiW), haitianos compraram, há alguns anos, as casas de brasileiros (“grileiros pobres”), por 3 mil reais. Fora o dinheiro investido nas casas, uma mulher investiu 10 mil reais (http://bit.ly/2NNBwYy).

No dia que aconteceu a reintegração de posse da Ocupação Progresso, vejo o monumento recém inaugurado da multinacional estadunidense UBER na Orla do Guaíba, simbolizando a efetivação da parceria com a Prefeitura de Porto Alegre para a empresa fazer manutenção do espaço. No monumento, o nome da cidade de Porto Alegre esculpido em uma estrutura do que parece um metal moderno, liso e espelhado. Que, dependendo do ângulo da mirada, muda a luz e reflete o laranja do por do sol. Completa o monumento um pino, como os que indicam o destino quando tu solicita um carro do aplicativo. O símbolo da UBER está presente em um círculo pequeno, no miolo desse pino. O círculo gira com o vento ou com um tapa. É possível fotografar os amigos no buraco entre as letras. É possível fotografar o por-do-sol no buraco que formam as letras. Vai bombar no Instagram. “Eu vou postar assim: “A de amigo”. “Boomerang, boomerang!”. Muitos likes nas poses em frente as letras, reproduzindo as fotos turísticas das principais capitais do mundo. Enquanto isso, pessoas passeiam em bicicletas laranjas alugadas com o símbolo do Itaú. Itaú que é um banco multinacional e tem um candidato à presidência no Brasil (João Almoedo). Pessoas se olham no reflexo do monumento, ajeitam os óculos, fazem a selfie. Para completar a cena, ao fundo, sentado nos equipamentos de ginástica, um senhor ensaia, com o auxílio de um aparelho eletrônico, músicas dos Beatles e do Eric Clapton no saxofone para completar. Veja vídeo desse post.

É difícil ver as suas próprias fotos no Instagram, curtir a paisagem da nova orla do Guaíba… E mais, sentir a facilidade que não é mais depender só de ônibus, mas de vez em quando rola pegar um Uber. Tem vez que entre mais pessoas vale mais a pena rachar o Uber que andar de busão. Ou quando tu vê amigos próximos e familiares estarem mal financeiramente e se erguerem trabalhando de motorista do aplicativo.

Mas isso me parece justamente tu olhar a cidade somente mirando a Orla, a vitrine, o centro, os jornais. Enquanto isso, no Sarandi, bairro da Ocupação Progresso, Bairro Farrapos, Bom Jesus, Mario Quintana, Restinga, nas vilas da Região metropolitana, as facções dominam. O desejo da ostentação, camuflando a necessidade de aceitação social, abrindo caminho à bala. Jovens morrem e são encarcerados e a gente não tem condições de saber ou falar sobre quem coloca as armas e as drogas para dentro do país. Não temos condições de oferecer, como sociedade, uma outra perspectivas. Não há retaguarda do Estado. Opções apresentadas pelo Estado. Pelo contrário, a polícia, os governos e políticos que passam pelas instituições públicas são em sua maioria agentes da precarização, de uma privação do direito à vida, desde o nascimento, desde gerações anteriores. Estão envolvidos com o narcotráfico e com as multinacionais que se instalam não só nos pontos turísticos, mas que dominam o Aeroporto da cidade. Que estão caminhando para dominar o transporte público. Tem noção o que é uma empresa dos Estados Unidos sabendo para certeiramente para onde vamos e sendo responsável por esse deslocamento? Que uma empresa alemã é responsável pelo nosso transporte à distância e o transporte de nossas cargas? A Fraport pretende fazer do Salgado Filho o principal posto aéreo do sul do país, ponte do cone sul da América do Sul. Para isso, precisa também remover a Nazaré, vila que há 40 anos existe à Beira da Avenida Sertório, Zona Norte da Cidade e que está ameaçada pelo projeto de ampliação da pista de pouso.

Agradecemos poder andar na segurança do Uber e não ficar à toa na parada ou pelas ruas. Deixamos de cobrar melhoria do transporte público e de pagar R$ 4,30 na passagem para pagar, entre quatro pessoas, cinco pilas para cada um no Uber. Mais cômodo. Agradecemos por aquele vizinho, antes historiador, palhaço, radialista, engenheiro desempregado, agora tá aí de cabelinho penteadinho ganhando a vida dirigindo com o aplicativo, rolando de pagar as contas. Esquecemos dos sonhos abdicados e da transformação das pessoas em máquinas. Quando o carro da Uber for automático, o que farão toda essa galera trabalhando de motorista? Agradecemos por termos uma Orla tão bonita, sem perceber o abandono proposital dos anos anteriores à reforma. Agora ficarmos feliz da vida com uma obra milionária e a gerência de uma multinacional que nem sabemos como argumentar contra. Lembra aquele teu amigo que colocou a empresa na justiça e ganhou uma grana? Que chance de isso acontecer ao processar uma empresa estadunidense, que tu cede todos os teus direitos para poder trabalhar nela?

Não conheço relatos de haitianos envolvidos com o crime. Tampouco de senegaleses. Pelo contrário, os vejo, todos os dias que caminho pelo centro, trabalhando. Há anos. No entanto à que situação o Estado, promovendo uma reintegração de posses como a da Progresso, expõe estas pessoas? Expõe ao fogo, à truculência da Brigada Militar, que tem ódio de pobre – apesar de muitos soldados também serem pobres. A que situação foram expostas pela Humanidade estas pessoas que saíram da América Central para buscar uma vida melhor aqui? Alguns já declararam o desejo de saírem do Brasil. Para onde vão? Qual país da América Latina está alheio aos efeitos do neoliberalismo? Por que uns podem mais que os outros na cidade e no mundo?

As multinacionais estão na Amazônia, com as mãos na reserva de Petróleo do Pré-Sal (Shell) e de olho no Aquífero Guarani (Nestlé Coca-Cola). O colonialismo pulsa no neoliberalismo que se instala no Brasil e de vez em Porto Alegre. O extermínio da diversidade (desmatamento e ditadura dos padrões de sexualidade e beleza) e da ancestralidade (incêndios como o do Museu Nacional, morte de caciques) seguem acontecendo. Na subjetividade. No genocídio da polícia, do tráfico e de outras violências cotidianas.

Pedalamos na Orla, às vezes cientes, do que acontece no Sarandi, na própria Orla, no Aeroporto, mas ainda sem se misturar ou abrir mão do conforto. Só querendo resoluções e não se propor à instabilidade das construções coletivas. Ou das autodestruições cotidianas. Se na tua base não passa uma retroescavadeira ou o fogo não queima tua subjetividade, teus sonhos, sinta-se um privilegiado. Mas e aí o que fazemos com isso? Só reconhecer o privilégio olhando o pôr-do-sol? Como freamos a perda da nossa autonomia enquanto indivíduo, enquanto povo?

(*) Jornalista

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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