Opinião
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24 de agosto de 2018
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00:40

O que falta a todos nós? Ou uma história sobre educação e desigualdade (por Priscila Maria Weber)

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Sul 21
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O que falta a todos nós?  Ou uma história sobre educação e desigualdade (por Priscila Maria Weber)
O que falta a todos nós? Ou uma história sobre educação e desigualdade (por Priscila Maria Weber)
“Todos esses meninos que estão pelas ruas poderiam ter muitos sonhos realizados”. (Foto: Marcelo Casal/Agência Brasil)

Priscila Maria Weber (*)

O ano era 2007 e eu ainda cursava a graduação em História. Por ocasião de um evento qualquer na universidade em que eu estudava, fui assistir a palestra de uma psicóloga. Não lembro mais seu nome, mas lembro dos seus traços e sobretudo de uma voz calma que me explicaria coisas que mudariam minha forma de pensar a desigualdade.

A psicóloga contou sobre sua experiência de trabalho em uma casa para menores infratores. Trabalhou nessa instituição por volta de sete anos e, em todos esses anos, inteirou-se de múltiplas histórias cujos protagonistas eram jovens em sofrimento. Segundo ela, eram vidas que nasceram na margem, na pobreza, sem alguém que os acalentasse em qualquer momento que seja. A fome, somada ao o uso de drogas, ou ao não frequentar de uma escola para receber uma educação formal, esvaziava essas vidas que não tinham nada mais do que um futuro sem futuro.

Eu ouvia aquelas histórias contadas na terceira pessoa de um singular que era absolutamente plural. Eram histórias que tiveram como marcação central as violências que a desigualdade produz. Não apenas a escassez de recursos financeiros afetava a vida daqueles menores, mas também a precariedade de sentimentos indispensáveis para existência de qualquer ser humano.

Quero dizer com isso que aquelas crianças faziam parte de famílias desestruturadas e, quando falo em família, absolutamente não estou pensando no modelo tradicional: pai, mãe, filho, cachorro, papagaio. Estou pensando em alguém que olhasse por aquelas crianças, um cuidador, que lhes desse amor e segurança. Isso sim é matéria estruturante para uma família. A falta de estrutura psíquica das famílias que desampararam aqueles jovens pode ser traduzida, também, pelo descaso com a educação que desde sempre assola o Brasil e é um produtor de desigualdades.

Enquanto ouvia a palestra, pensei ainda na seguinte frase: “Amor, somado com um arroz e feijão bem feito”. Essa simples equação poderia ter suprido muita coisa. E teria suprido, talvez. Mas logo me dei conta que apenas em parte. Explico: a psicóloga continuou sua fala e dissertou ainda sobre a história de um menino que possuía muitíssimas passagens pela instituição de correção, sempre pelos mesmos motivos ou furto de eletrônicos como máquinas de fotografia e celulares.

Conversando com o garoto, a psicóloga tenta entender o porquê das reincidências dos furtos e houve uma resposta simples e cheia de sinceridade:

– Eu amo muito fotografia. Quero ser fotógrafo quando eu crescer.

O menino continua:

– Tia, porque eu não posso ter uma câmera fotográfica? Eu queria aquelas com muitas lentes. Sei que se trocar as lentes a foto muda.

O menino tinha apenas 11 anos. Vivia com a avó, tinha um arroz e feijão bem feito, tinha também alguma atenção. Mas o que eu, na altura comecei a perceber, é que o menino tinha também uma porção de sonhos que um prato de comida e um abraço não eram o suficiente para que ele os realizasse. Ele queria mais, e ele poderia querer mais. Afinal, por que uma criança de 11 anos não pode ter uma máquina fotográfica?

Chocada com essa pergunta, eu me revi por dentro. Por que nós não podemos ter o que vai alimentar nossos sonhos? Quantas vezes queremos nos aprimorar intelectualmente e não conseguimos por questões financeiras? A equação é mais simples de resolver do que se pode imaginar, mas precisaria de uma boa dose de investimentos públicos em educação. A educação teria que se tornar uma prioridade do estado para que os sonhos de todos nós pudessem ser reais.

Assim, esse menino, com uma sucessão de furtos de câmeras fotográficas e celulares no currículo, talvez pudesse ter tido acesso a esses aparelhos na sua escola, no seu bairro, em alguma instituição onde ele pudesse fazer oficinas de fotografia, aprender a manusear as câmeras e assim se sentir motivado para estudar e um dia adquirir diversas máquinas de fotografia.

Todos esses meninos que estão pelas ruas poderiam ter muitos sonhos realizados. Poderiam desenvolver muitas habilidades. Todos esses meninos que estão pelas ruas cometendo violências poderiam ter um futuro com futuro, no entanto, cada vez mais, mesmo passados onze anos dessa palestra, vejo nas ruas a lógica de um sistema desumano e que aniquila o estado quando destrói o sonho de meninos como este.

Com investimento maciço em educação o estado se fortaleceria, e se ele se fortalece produz uma memória que também seria estruturante da nação. Mas se isso acontecesse as elites estariam desaparelhadas, pois não haveria mais sonhos frustrados para elas explorarem. O temor em não se distinguir economicamente no Brasil nos acompanha e revela, mais uma vez, a precariedade da educação. No fundo, não importa a classe social, todos nós perdemos com isso, inclusive aqueles que acham que estão ganhando.

Quero com isso dizer que não apenas os mais pobres são afetados com a desigualdade e a falta de investimentos em educação. Você, leitor, poderá argumentar que aos ricos não há falta de educação formal, pois possuem acesso a boas escolas e aos cursos que quiserem e puderem pagar. Mas eu rebato dizendo que também lhes falta educação, pois isso é um dever do estado. Eles suprem por outros meios, no entanto, ainda lhes falta, uma vez que estamos politicamente organizados em um regime que deveria prover a igualdade de acesso a interesses comuns, como a educação, por exemplo.

Aos ricos e pobres falta a igualdade e sobra o que a desigualdade produz: a violência.

(*) Priscila Maria Weber é doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com estágio doutoral pela Universidade de Coimbra (Portugal). Todos os seus estudos e pesquisas receberam incentivo do governo federal através da concessão de bolsas de estudos. E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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