Opinião
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23 de agosto de 2018
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18:01

Bang Bang do Rio Branco (por Thiago Köche)

Por
Sul 21
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Bang Bang do Rio Branco (por Thiago Köche)
Bang Bang do Rio Branco (por Thiago Köche)
“O transporte individual reforça a lógica do “eu” a cada ida e vinda do seu destino”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Thiago Köche (*)

Há algum tempo optei pelo transporte público (ônibus) como meio de transporte diário. Os elevados custos do carro e seus gastos relativos tornaram-se inviáveis. Além de ter ganho financeiro, de saúde com as caminhadas diárias extras e um tempo de leitura precioso, acima de tudo ganhei aprendizado de convivência coletiva em sociedade: ceder (vez, espaço, lugar), ser paciente (com pessoas que escutam música sem fone de ouvido) e tolerar (se tem um obeso do meu lado, ele não me aperta porque quer, mas porque não tem como ser diferente neste momento). Aprende-se e reaprende-se diariamente a compartilhar espaço com pessoas brancas, pardas, negras, indígenas, das classes ricas, médias e pobres, homens e mulheres, héteros e LGBTs, evangélicos, cristãos e ateus, gremistas e colorados, ximangos e maragatos, brasileiros, gaúchos e haitianos. A diversidade incorpora-se no dia a dia como um todo. Um grande veículo desses leva mais de 70 pessoas sem grandes apertos. 4 automóveis (tamanho aproximado do ônibus) levam no máximo 20 pessoas mas normalmente levam apenas 4.

Toda essa introdução para contar que esses dias peguei o carro para dar carona minha irmã e a levei no seu trabalho. Cedinho do dia, o trânsito no bairro em que ela trabalha, o Rio Branco, é movimentado e tenso. Gente não dando vez, cortando o outro, buzinando, impaciência e estresse é o ambiente comum daquela terça-feira nas primeiras horas do dia. Lotado de caminhonetes e carros acima de 150 mil (não querendo generalizar, mas empiricamente se nota que são os campeões da falta de educação e regras do trânsito, inclusive em vagas de estacionamento), tinha uma fila de carros numa rua de 2 mãos que um cidadão (provavelmente “de bem”) cortou todo mundo e foi indo na contramão até encontrar um carro vindo e quase se chocar. Buzinaço de todos os lados e ninguém dando vez pro cara voltar pra fila. Xingamentos e palavrões no rol das primeiras movimentações bucais diárias de cada um, além do bocejar matutino com o bafo de enxofre. Um outro inventou uma quarta via entre as 3 existentes, entre eu (faixa do meio) e a faixa da direita, e foi-se indo. Deixei passar e via ele xingando insistentemente as filhas no banco de trás. A esposa ao seu lado botava a mão na cabeça, parecendo entristecida, e ele de uma forma descontrolada, passava os longos dedos nos longos cabelos negros até o ombro. Comentei com minha irmã, “só eu notei isso?”. Ela responde: “fiquei assustada”. Nos primeiros momentos de convivência social o estresse estava instalado para a maioria dos envolvidos por um coletivo de egoísmo que se auto-alimenta, formando um soneto caótico embalado por buzinas de diferentes tons. Todo mundo preocupado apenas com si e dane-se o resto. Eu tô atrasado, eu preciso chegar logo, eu, eu, eu. O nós inexiste. Como ter um feliz, bom e produtivo dia após a primeira experiência do cotidiano ser essa?

Fiz um exercício de imaginação. Uma catástrofe nacional. Bolsonaro vence as eleições, o armamento irrestrito é liberado e amplamente difundido a la estadunidense, tipo Texas, abre-se uma conta bancária e ganha uma escopeta para “proteger suas posses”. Imaginei o cara que foi na contramão, mesmo errado, saindo do carro com uma .38 na mão para cima, disparando ao céu, para mostrar poder. O motorista que vinha na direção certa não deixaria por menos, afinal estava “certo”, pegaria sua calibre 12 e estouraria os miolos do seu inimigo. Os motoristas enfileirados do lado não deixariam por menos e os filmes do Sergio Leone ficariam no chinelo. Pronto. Instalou-se o bang bang no Rio Branco. O Rio além de Branco, elitista, burguês e individualista, seria tomado pelo vermelho do sangue, desta feita de dar inveja no Quentin Tarantino.

Por ter feito recentemente a transição do automóvel pro ônibus, notei essa discrepância. Eu mesmo repetia as infelizes lógicas acima citadas de egoísmo e ao trocar de módulo de transporte, esta experiência com minha irmã me pareceu tudo muito latente. A arte da coletividade vs a arte da individualidade. Enquanto o transporte público nos educa diariamente para uma necessária saúde de convivência social coletiva, ponto que a sociedade parece cada vez mais esquecer, o transporte individual reforça a lógica do “eu” a cada ida e vinda do seu destino. Fora que, dentro daquela armadura de aço que é o carro, isolado em (mais) uma bolha social (além de todas outras, redes sociais, ambiente de trabalho, classe social), a individualidade é tida como a única lógica possível e reforçada pelo poder de ter essa armadura, além de estar surdo para as outras pessoas, tendo somente a irritante e agressiva buzina como meio de comunicação.

Porto Alegre, que já foi referência mundial da participação popular com Orçamento Participativo, que já foi capital de todos os continentes para reunir milhares de pessoas de diversos países para debater a vida em sociedade, hoje é um reflexo da política nacional – e internacional – da intolerância e do ódio. Não tolero os outros e seus problemas e tenho ódio deles. Logo irei buzinar, cortar a frente, acelerar, brigar. E a desaprendida e essencial arte de enxergar o outro esvai-se pelos carros enfileirados buzinando, ignorando não só os colegas munícipes mas principalmente que essas pessoas também tem problemas, dias ruins, dificuldades, crises. Porto Alegre já “caminhou” de ônibus, coletiva e participativa, em rumo para uma referência de como uma sociedade deve se organizar. Hoje Porto Alegre dá ré e de carro, cada vez mais para a individualidade e acima de tudo, a indiferença, deixando a humanidade atropelada pela gigante fila indiana de carros que estressam o Rio Branco todo dia pela manhã.

(*) Thiago Köche é videomaker.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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