Opinião
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28 de julho de 2018
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11:21

Debates sobre o Plano Diretor de Porto Alegre (por Carla Colossi)

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Debates sobre o Plano Diretor de Porto Alegre (por Carla Colossi)
Debates sobre o Plano Diretor de Porto Alegre (por Carla Colossi)
Secretaria Municipal de Urbanismo/Facebook/Reprodução

Carla Colossi (*)  

O Plano Diretor (PD), definido por lei, é um conjunto de regras e controles que orientam a utilização do espaço urbano pelos agentes, tendo como objetivo uma visão de futuro, ou seja, de longo prazo. O PD tem como base dois pilares: eficiência e equidade. Assim, o objetivo do planejamento é buscar uma cidade democrática para todos.

O PD é composto de três elementos gerais principais: o manifesto, que descreve os valores e princípios, o masterplan, que determina o projeto urbanístico da cidade, a distribuição do uso e ocupação do solo, e o conjunto de controle, que define o regime urbanístico, que define as especificidades do uso do solo e distribuição de densidades. Os Planos contam com diversos instrumentos para diferentes enfoques de gestão e regulação para a intervenção do solo, além dos instrumentos complementares.

O primeiro PD de Porto Alegre foi feito em 1959, que na época não incorporava todo território municipal. Após 20 anos de discussões, foi criado o primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano em 1979, dessa vez incorporando todo o território. Novamente 20 anos depois, em 1999 é criado o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA), que trouxe diversos avanços em relação ao ser antecessor, derivados de sucessivos debates.

A base da concepção do plano mudou, passando de um conceito de planejamento normativo, cujo enfoque é a formulação de normas para a atividade privada, para um planejamento estratégico, onde o Estado passa a ter um papel menos restritivo e mais propositivo, voltado a articular os diferentes agentes. O PPDUA apresentou uma nova concepção de cidade, cuja principal função passa a ser a social, e não a funcional. O Plano teve revisões em 2003 e 2010, baseadas também em discussões e sendo realizadas algumas mudanças importantes, a serem comentadas a seguir.

No documento são explicitados os objetivos do plano de “promoção da qualidade de vida e do ambiente, reduzindo as desigualdades e exclusão social” (ALBANO, 2014). O conceito de desenvolvimento sustentável passar por três pilares: povo, que sintetiza os objetivos de igualdade social; planeta, ou seja, preservação do meio ambiente; e prosperidade, que se refere ao aspecto mais econômico do desenvolvimento, tratando de comércio e trabalho. No entanto, aquele adotado pelo PDDUA conceitua sustentabilidade a partir de condições urbanas consideradas insustentáveis, e desse modo há uma carência de propostas estratégicas para orientar o desenvolvimento urbanístico, ambiental, cultural e econômico.

Essas mudanças mostram parte da contraposição presente nas construções dos PDs. Grupos diferentes, com interesses conflitantes, têm diferentes posicionamentos em relações às questões envolvendo a cidade, e nenhum Plano Diretor consegue satisfazer a todos. Um exemplo disso é a criação do PD de 1999. Conforme descreve Albano (2014), o Plano teve duas versões, e – devido aos interesses conflitantes dos grupos envolvidos – tendo neles entidades, população, técnicos, especialistas, entre outros, nenhuma das duas conseguiu a sustentação necessária.

Outro aspecto dessa dualidade diz questão à flexibilização das diretrizes e normas do PDDUA. Enquanto alguns, como Krafta (2014), alegam que o Plano impõe sua visão aos agentes, limitando sua liberdade e criatividade, Francisconi (2008) expõe que uma das sugestões feitas no fórum “Porto Alegre: uma visão de futuro” foi justamente que se mantivessem as características dos bairros com importância histórica e cultural. Também relacionado a isso está a falta de integração dos projetos da cidade, que seria decorrente dessa maior flexibilização, e acabam se tornando “prédios esparsos, regidos por fortes interesses econômicos (…) construção de um urbanismo medíocre, confuso e agressivo” (FRANCISCONI, 2008, p. 102).

O custo-cidade diz respeito ao custo de um cidadão em ter acesso à cidade, ou seja, não apenas à infraestrutura básica de saneamento, luz e transporte como também seu custo para ter acesso aos demais serviços oferecidos pela cidade, como emprego e lazer. Dessa forma, é defendido por alguns que haja uma maior densidade de edificações em áreas centrais, para que esse custo seja menor.

Por outro lado, os bairros característicos e culturais têm um potencial de atrair renda com turismo. Além disso, sua preservação e investimentos feitos de modo a preservar essas características e promover a utilização desses espaços não apenas geraria uma maior renda, como também aumentaria a qualidade de vida da cidade criando espaços de convivência e lazer, além de geração de renda com essas novas atividades, empregos e investimentos.

Apesar dessas divergências, podem ser destacados alguns pontos fortes e fracos do atual PPDUA. Albano (2014) elenca os pontos fortes como sendo o reconhecimento da função social da cidade, a valorização de instrumentos capazes de potencializar as estratégias, indicação de territórios para projetos de iniciativa governamental que superam a lógica lote a lote e valorização de um sistema municipal de gestão e planejamento, com ênfase na gestão democrática. Apesar de não comentar, é perceptível que todos os pontos levantados como positivos se limitam ao papel, e sua efetividade na prática é limitada.

Ao apontar os pontos fracos o oposto ocorre, sendo todos os destacados pela autora problemas de implementação. Ela fala da “postergação na estruturação de um organismo de planejamento compatível com as demandas do planejamento aprovado e com um planejamento urbano participativo, carente de qualificação” (ALBANO, 2014 p. 154). A falta de um planejamento participativo também é criticada por Kafta (2014), que ressalta que apenas algumas dezenas de pessoas são responsáveis pela elaboração do Plano Diretor, chegando esse número no máximo a algumas centenas se forem consideradas as pessoas consultadas. Ainda assim, é um número irrisório ao ser comparado com a população da cidade. Porém novamente as dificuldades de um processo participativo e a necessidade de aprimoramento de mesmo vem à tona, conforme discutido anteriormente.

Outro problema levantado por Albano (2014) é a postergação de regulamentação e estudos para fiscalizar o não cumprimento de prazos definidos por lei. Não foram definidos no PDDUA instrumentos de fiscalização, de forma que o não cumprimento de acordos e prazos é recorrente. Francisconi (2008) sugere um método de fiscalização social, que seria interessante, pois os próprios agentes afetados seriam responsáveis pela cobrança. A falta de cumprimento de acordos e prazos definidos no PD e nos seus projetos têm impacto não apenas urbanístico, mas também econômico, na forma de externalidades, que, sem fiscalização, não são controladas e acabam não tendo custo para o empreendedor, apenas para a sociedade.

Por fim, Albano (2014) aponta a falta de integração entre planejamento urbano, plano diretor e orçamento, ponderando que, durante a última década, a prefeitura criou inúmeros organismos que se sobrepõe ao planejamento urbano, levando a pulverização do mesmo. Além disso, diferentes programas governamentais de diferentes gestões municipais adotam prioridades próprias, independentemente das definidas pelo Plano Diretor.

Para exemplificar muitos dos pontos levantados de maneira abstrata, apresento a questão dos Projetos Especiais (PE) no planejamento urbano de Porto Alegre. Os PE estão presentes no PD como projetos de atividades que exigem análise diferenciada em função da geração de impactos, e dessa forma representariam – de certo modo – a flexibilização requisitada por muitos, uma vez que os PE podem violar questões de altura, densidade e outras limitações do Plano Diretor. Assim, ao analisar os PEs executados nos últimos anos se percebe que vários PEs possuem características urbanísticas e arquitetônicas desvinculadas do restante do entorno e, mesmo, do bairro, não se integrado à cidade.

A análise desses projetos é feita por um comitê especial, caracterizando um processo não participativo. Cada processo é feito e analisado de forma diferenciada, dificultando assim um sistema de informação e transparência. Devido aos seus impactos, são definidas medidas compensatórias e contrapartidas, que não possuem um órgão ou instrumento regulador para garantir seu cumprimento. Assim, os Projetos Especiais trazem à tona a maioria das questões discutidas acima sobre o PD.

Os PEs são divididos em três tipos, de acordo com seu impacto. Os de primeiro grau possuem um baixo impacto, de forma que não são exigidas medidas compensatórias nem contrapartidas, de modo que não geram termos de compromisso e não há acesso público sobre os projetos. Os PEs de segundo grau geram contrapartidas ou medidas compensatórias, e consequentemente termos de compromisso, que estão disponíveis no site da prefeitura. Por fim, os PEs de terceiro grau são caracterizados como operações urbanas consorciadas, ou seja, são de uma escala maior e tem impactos maiores. Atualmente em Porto Alegre existe apenas um projeto desse tipo, o Projeto Integrado de Desenvolvimento Sustentável da Lomba do Pinheiro (FAGUNDES, 2018).

Apesar dos PEs terem sido originalmente idealizados como sendo a exceção ao PDDUA, apenas em Porto Alegre nos últimos 5 anos foram aprovados mais de 150 PEs, com grande impacto urbanístico e econômico para a cidade (FAGUNDES, 2018). Consideramos que as regras dos PEs devem ser seriamente reconsideradas na próxima revisão do PPDUA.

Em primeiro lugar, em relação às contrapartidas e medidas compensatórias. As medidas compensatórias visam à diminuição do impacto urbano direto causado pelo projeto, enquanto as contrapartidas têm um cunho social. Ao analisarmos os documentos, é possível perceber que um número muito pequeno dos termos de compromisso define contrapartidas, enquanto que a maioria dos termos de compromisso impõe apenas medidas compensatórias. Entretanto, essas medidas compensatórias em sua maioria visam à funcionalidade do investimento, e não à diminuição do impacto urbanístico.

Como exemplo temos a ampliação do Barra Shopping Sul, um grande investimento que não possui contrapartidas e cujas únicas medidas compensatórias são viárias (PORTO ALEGRE, 2018), que seriam necessárias para o acesso ao investimento, de modo que não buscam diminuir o impacto, por exemplo, da maior circulação de carros a serem gerados pela expansão do empreendimento.

Mesmo quando o termo de compromisso define medidas compensatórias que visam efetivamente diminuir o impacto urbanístico ou contrapartidas de cunho social (muitas das quais tratam de reformas em escolas e hospitais), não há fiscalização para o cumprimento das mesmas. Assim, não são aplicados os preços de mercado para os impactos e eles se tornam externalidades, tendo custos econômicos e sociais para a população.

Além disso, muitos dos impactos têm custos que acabam sendo arcados pelo município, ou seja, pela população em geral, como gastos com infraestrutura. A maioria dos PEs de Porto Alegre nos últimos anos foram realizados na zona sul (FAGUNDES, 2018), área que, de acordo com o PDDUA, deveria ser de baixa densidade populacional. É uma região que não possuía infraestrutura urbana (energia, transporte, etc.) e de serviços (postos de saúde, escolas, etc.). Ainda assim foram aprovados nos últimos anos mais de 40 PEs de segundo grau na área, sendo em sua maioria condomínios, ou seja, empreendimentos que aumentaram a sua densidade populacional à revelia das orientações do PDDUA. Isso acarretou altos custos à cidade, que providenciou a infraestrutura necessária, ainda que em certas áreas de forma precária.

Concluindo, o Plano Diretor define a estratégia urbana da cidade. Ele possui diversas virtudes na teoria, como considerar a função social da cidade e buscar uma visão de longo prazo, de modo que a estratégia traçada possa se manter ao longo de diferentes gestões. No entanto, na prática, o PDDUA possui diversas dificuldades. A falta de comprometimento da prefeitura e seus órgãos com o mesmo parece ser a fonte da maioria delas. Os instrumentos não são capacitados, os princípios relevados, e os projetos são aprovados tendo em vista interesses políticos. Dessa forma, a próxima revisão do PDDUA poderia focar nessas questões práticas relacionadas aos Projetos Especiais, que já deixaram de ser a exceção e passaram a definir a paisagem da cidade.

Referências

ALBANO, Maria Tereza Fortini. Plano de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre: entre as intenções e resultados.p. 137 – 156,2014.

FAGUNDES, Júlia Ribes. Projetos Especiais em Porto Alegre: uma análise no contexto da dinâmica urbana contemporânea. XIV SEUR – III Colíquio Cidade e Cidadania. 2018.

FRANCISCONI, Jorge Guilherme. Porto Alegre, uma visão de futuro. Ciclo de eventos 2008. In: Urbanismo Sustentável. p. 89-119, 2008.

KRAFTA, Romulo. Cidades versus Plano Diretor.p. 59 – 75, 2014

PORTO ALEGRE. Procuradoria Geral do Município. Termos de Compromisso. 2018. Disponível em <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/pgm/default.php?p_secao=537>. Acesso em 02 de junho de 2018.

SPOHR, Vitória. O Plano Diretor. Apresentação no Salão de Iniciação Científica, 2017.

 

(*) Graduanda em Ciências Econômicas, UFRGS


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