Opinião
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20 de julho de 2018
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14:37

Alegoria do grotesco nas mídias sociais (por Jorge Alberto Benitz)

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Sul 21
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Alegoria do grotesco nas mídias sociais (por Jorge Alberto Benitz)
Alegoria do grotesco nas mídias sociais (por Jorge Alberto Benitz)
“Antes do advento da internet as pessoas comuns mantinham ocultas ou no âmbito privado suas opiniões mais controversas”. (Agência Brasil/Arquivo)

Jorge Alberto Benitz (*)

A arte e a literatura sempre podem socorrer-nos para melhor entender o mundo e as pessoas. Lendo o Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, escrita no final do século XIX (1891), percebi ali um bom quadro capaz de explicar de modo alegórico o atual estado de coisas. Dorian Gray era um belo jovem aristocrata inglês que serviu de modelo para o pintor Basílio Hallward. Resumindo a trama para o que me interessa, posto que não é meu propósito descrever ou analisar o romance, o retrato assume uma estranha e maléfica condição de retratar a alma do modelo que posou para o pintor. Nele fica refletido toda a carga de bem ou mal do retratado ao mesmo tempo em que preserva imaculada a juventude física deste. Uma variação em torno do tema pacto com o demônio já tratado por Goethe em Fausto no inicio do referido século.

Interessou- me neste belo romance esta simbologia de um retrato portar a fealdade, o grotesco, do protagonista do romance confinado em uma sala que só ele se permite frequentar. Portanto, um lugar privado. Em contrapartida, no publico ele desfilava a sua beleza que não era prejudicada em nada com o passar do tempo devido a este pacto diabólico que transportava para o retrato toda a ignominia e maldade praticada por Dorian Gray. Influenciado pela detestável companhia do Lorde Henry Wotton, um dândi hedonista da pior extração, e instigado por este a colocar como valor máximo de vida o cultivo da vaidade, do prazer e do egoísmo, ele começa uma escalada rumo aos extremos desta visão de mundo, inoculando na alma, e, por extensão, reproduzindo no retrato toda a transfiguração e corrupção auto infligida. Aqui é o ponto de intersecção que me leva a analogias com a realidade atual transpondo e invertendo o disposto no romance.

Antes do advento da internet as pessoas comuns mantinham ocultas ou no âmbito privado suas opiniões mais controversas. De qualquer modo, tinham elas consciência do ridículo e da estreiteza de suas ideias sobre costumes, comportamentos e política. Tanto isso é verdade que recaia sobre este vasto contingente de pessoas com visão de mundo conservadora ou reacionária, o rotulo de maioria silenciosa. Disso resultava que quando instada para se manifestar publicamente caprichavam na fala e muitas vezes escondiam sua visão de mundo, seus pensamentos em temas polêmicos, porque não era de bom tom manifestar publicamente preconceitos e preferencias tidas como típicas de gente desqualificada cultural e politicamente. Assim ele deixava para se manifestar apenas no escurinho da cabine de eleição ou quando percebia que o grupo dos presentes em reuniões sociais e na família era constituído, na maioria, de pessoas com perfis iguais ao seu. Em síntese, eles se pautavam por um comportamento furtivo e constrangido em ambientes públicos no tocante a exposição de opinião sobre assuntos controversos.

Manifestar preconceito sexual, de raça e de classe social apesar de existir não tinha receptividade a não ser quando manifestado a boca pequena. O mesmo valia para o sujeito que cultivava preferências políticas nitidamente de direita. Um fato que ilustra bem esta situação é perceber que mesmo no auge da ditadura e, com muito mais razão, após a redemocratização era muito raro encontrar alguém, que notadamente era de direita, se dizendo de direita e hoje em vídeos e comentários nas redes sociais muitos se manifestam de direita demonstrando orgulho desta condição. Ser enrustido nestes temas era a melhor receita para não se incomodar e a ultima coisa que alguém da então chamada maioria silenciosa queria era ser desmascarado em público e rotulado de atrasado, tosco e/ou de mal com as palavras. Neste caso, o retrato da alma ficava confinado e restrito a ambientes privados.

O paradigma republicano era tão forte que até os conservadores nos costumes e na política tinham que fugir do perfil da maioria silenciosa e demonstrar, quando artistas, escritores, ou homens públicos, qualidades intelectuais e culturais que o diferenciassem deste tipo limitado. Era um mundo em que até para defender o atraso, o conservadorismo e o preconceito de qualquer espécie fazia- se imperativo uma formação intelectual e cultural capaz de rivalizar com a dos adversários e/ou inimigos no campo do comportamento e da política. Como a burrice e a ignorância tem como habitat perfeito o conservadorismo e, principalmente, o reacionarismo, até aqueles homens públicos que sofriam deste mal viam- se obrigados a usar subterfúgios para esconder, digamos, “seu rabo”.

Com o advento da internet, houve uma inversão. Inversão no sentido de que o que antes era cultivado na esfera privada ganhou status na esfera pública que são as mídias sociais. Foi um processo que teve contribuições importantes de outros fatores como o fim do socialismo real que representou a perda de um contrapeso ideológico ao modelo capitalista que obrigava o chamado Ocidente a dar melhores condições sociais, econômicas e políticas ao trabalhador e ao cidadão para que estes não caíssem em tentação diante dos atraentes valores, ao menos para os trabalhadores, do mundo anticapitalista. Outro fator importante decorrente deste novo patamar do capitalismo foi o encurtamento das crises cíclicas devido em parte à velocidade dos avanços científicos e tecnológicos e a financeirização da economia. Fatores que reduziram sobremodo o poder do fator trabalho na relação capital/trabalho.

A internet com as mídias sociais, reproduzindo a narrativa neoliberal e se sentindo amparada pela grande mídia (jornais, revistas semanais, rádios e, especialmente, noticiários de TV), funcionou como uma amplificação deste novo discurso que, em um primeiro momento, consistiu em difamar a politica e os políticos e assim cair no gosto dos setores mais desqualificados intelectual e culturalmente da sociedade para, na sequencia, praticamente incorporar até aqueles que algum dia tiveram valores republicanos e democráticos. Valores republicanos e democráticos que a bem da verdade vinham sendo escorraçados em praça publica sistematicamente desde o inicio do neoliberalismo com Margareth Thatcher e Ronald Reagan no final dos anos 80 e início dos 90 do século passado.

A diferença devido à internet foi o alastramento da defesa dos valores antirrepublicanos e antidemocráticos para a esfera das mídias sociais. Ali, como nunca antes, a outrora maioria silenciosa deu vazão aos seus baixos instintos. Aquilo que ela tinha represado nos tempos de outrora veio à tona. Chancelado pela imprensa amiga e pela maioria dos seus iguais ela se permitiu mostrar a sua verdadeira face. E, ao invés, das caras torcidas dos cidadãos mais ilustrados de ontem, que praticamente os impediam de se manifestar, ela recebeu aplausos, incentivos e manifestações de solidariedade. Dizer- se de direita, manifestar visão preconceituosa contra a mulher, o negro, o pobre, era possível. Os valores bárbaros que antes tinham que ser cultivados escondidos, escamoteados, agora poderiam, enfim, ser manifestados publicamente. O que era privado virou público. Políticos em todo o mundo começaram a perceber esta tendência e abraçaram esta nova faceta de homem público.

Nos EUA, Trump representou o protótipo perfeito deste novo personagem político que é a cara do sujeito sem muito traquejo cultural, analfabeto funcional, com um arsenal de pensamentos típicos do senso comum conservador, intolerante e inimigo de qualquer coisa que cheire a intelectualismo e valores democráticos e progressistas. Aqui, ganha corpo a figura de um candidato a Presidente da República que consegue superar ou empatar com Trump nos quesitos grossura, preconceito e analfabetismo político. Digo superar porque Trump, pelo menos, defende os interesses do americano comum ao defender a indústria nacional e o seu símile na Bruzundanga nem isso defende, ao contrário.

O que era feio, grotesco, que vivia escondido em um sótão ou revelado apenas em recintos privados, como o retrato com a sordidez da alma de Dorian Gray, foi, com o advento das mídias sociais na internet, para o espaço público com direito a aplausos e apupos. Um passe de mágica transformando o feio, o grotesco, em algo bonito, digno de admiração. Palmas para os prestidigitadores de plantão, a grande mídia que é o núcleo ideológico deste feito que tornou o feio, o grotesco, o bárbaro, em algo belo.

(*) Consultor Técnico

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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