Jorge Alberto Benitz (*)
A arte e a literatura sempre podem socorrer-nos para melhor entender o mundo e as pessoas. Lendo o Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, escrita no final do século XIX (1891), percebi ali um bom quadro capaz de explicar de modo alegórico o atual estado de coisas. Dorian Gray era um belo jovem aristocrata inglês que serviu de modelo para o pintor Basílio Hallward. Resumindo a trama para o que me interessa, posto que não é meu propósito descrever ou analisar o romance, o retrato assume uma estranha e maléfica condição de retratar a alma do modelo que posou para o pintor. Nele fica refletido toda a carga de bem ou mal do retratado ao mesmo tempo em que preserva imaculada a juventude física deste. Uma variação em torno do tema pacto com o demônio já tratado por Goethe em Fausto no inicio do referido século.
Interessou- me neste belo romance esta simbologia de um retrato portar a fealdade, o grotesco, do protagonista do romance confinado em uma sala que só ele se permite frequentar. Portanto, um lugar privado. Em contrapartida, no publico ele desfilava a sua beleza que não era prejudicada em nada com o passar do tempo devido a este pacto diabólico que transportava para o retrato toda a ignominia e maldade praticada por Dorian Gray. Influenciado pela detestável companhia do Lorde Henry Wotton, um dândi hedonista da pior extração, e instigado por este a colocar como valor máximo de vida o cultivo da vaidade, do prazer e do egoísmo, ele começa uma escalada rumo aos extremos desta visão de mundo, inoculando na alma, e, por extensão, reproduzindo no retrato toda a transfiguração e corrupção auto infligida. Aqui é o ponto de intersecção que me leva a analogias com a realidade atual transpondo e invertendo o disposto no romance.
Antes do advento da internet as pessoas comuns mantinham ocultas ou no âmbito privado suas opiniões mais controversas. De qualquer modo, tinham elas consciência do ridículo e da estreiteza de suas ideias sobre costumes, comportamentos e política. Tanto isso é verdade que recaia sobre este vasto contingente de pessoas com visão de mundo conservadora ou reacionária, o rotulo de maioria silenciosa. Disso resultava que quando instada para se manifestar publicamente caprichavam na fala e muitas vezes escondiam sua visão de mundo, seus pensamentos em temas polêmicos, porque não era de bom tom manifestar publicamente preconceitos e preferencias tidas como típicas de gente desqualificada cultural e politicamente. Assim ele deixava para se manifestar apenas no escurinho da cabine de eleição ou quando percebia que o grupo dos presentes em reuniões sociais e na família era constituído, na maioria, de pessoas com perfis iguais ao seu. Em síntese, eles se pautavam por um comportamento furtivo e constrangido em ambientes públicos no tocante a exposição de opinião sobre assuntos controversos.
Manifestar preconceito sexual, de raça e de classe social apesar de existir não tinha receptividade a não ser quando manifestado a boca pequena. O mesmo valia para o sujeito que cultivava preferências políticas nitidamente de direita. Um fato que ilustra bem esta situação é perceber que mesmo no auge da ditadura e, com muito mais razão, após a redemocratização era muito raro encontrar alguém, que notadamente era de direita, se dizendo de direita e hoje em vídeos e comentários nas redes sociais muitos se manifestam de direita demonstrando orgulho desta condição. Ser enrustido nestes temas era a melhor receita para não se incomodar e a ultima coisa que alguém da então chamada maioria silenciosa queria era ser desmascarado em público e rotulado de atrasado, tosco e/ou de mal com as palavras. Neste caso, o retrato da alma ficava confinado e restrito a ambientes privados.
O paradigma republicano era tão forte que até os conservadores nos costumes e na política tinham que fugir do perfil da maioria silenciosa e demonstrar, quando artistas, escritores, ou homens públicos, qualidades intelectuais e culturais que o diferenciassem deste tipo limitado. Era um mundo em que até para defender o atraso, o conservadorismo e o preconceito de qualquer espécie fazia- se imperativo uma formação intelectual e cultural capaz de rivalizar com a dos adversários e/ou inimigos no campo do comportamento e da política. Como a burrice e a ignorância tem como habitat perfeito o conservadorismo e, principalmente, o reacionarismo, até aqueles homens públicos que sofriam deste mal viam- se obrigados a usar subterfúgios para esconder, digamos, “seu rabo”.
Com o advento da internet, houve uma inversão. Inversão no sentido de que o que antes era cultivado na esfera privada ganhou status na esfera pública que são as mídias sociais. Foi um processo que teve contribuições importantes de outros fatores como o fim do socialismo real que representou a perda de um contrapeso ideológico ao modelo capitalista que obrigava o chamado Ocidente a dar melhores condições sociais, econômicas e políticas ao trabalhador e ao cidadão para que estes não caíssem em tentação diante dos atraentes valores, ao menos para os trabalhadores, do mundo anticapitalista. Outro fator importante decorrente deste novo patamar do capitalismo foi o encurtamento das crises cíclicas devido em parte à velocidade dos avanços científicos e tecnológicos e a financeirização da economia. Fatores que reduziram sobremodo o poder do fator trabalho na relação capital/trabalho.
A internet com as mídias sociais, reproduzindo a narrativa neoliberal e se sentindo amparada pela grande mídia (jornais, revistas semanais, rádios e, especialmente, noticiários de TV), funcionou como uma amplificação deste novo discurso que, em um primeiro momento, consistiu em difamar a politica e os políticos e assim cair no gosto dos setores mais desqualificados intelectual e culturalmente da sociedade para, na sequencia, praticamente incorporar até aqueles que algum dia tiveram valores republicanos e democráticos. Valores republicanos e democráticos que a bem da verdade vinham sendo escorraçados em praça publica sistematicamente desde o inicio do neoliberalismo com Margareth Thatcher e Ronald Reagan no final dos anos 80 e início dos 90 do século passado.
A diferença devido à internet foi o alastramento da defesa dos valores antirrepublicanos e antidemocráticos para a esfera das mídias sociais. Ali, como nunca antes, a outrora maioria silenciosa deu vazão aos seus baixos instintos. Aquilo que ela tinha represado nos tempos de outrora veio à tona. Chancelado pela imprensa amiga e pela maioria dos seus iguais ela se permitiu mostrar a sua verdadeira face. E, ao invés, das caras torcidas dos cidadãos mais ilustrados de ontem, que praticamente os impediam de se manifestar, ela recebeu aplausos, incentivos e manifestações de solidariedade. Dizer- se de direita, manifestar visão preconceituosa contra a mulher, o negro, o pobre, era possível. Os valores bárbaros que antes tinham que ser cultivados escondidos, escamoteados, agora poderiam, enfim, ser manifestados publicamente. O que era privado virou público. Políticos em todo o mundo começaram a perceber esta tendência e abraçaram esta nova faceta de homem público.
Nos EUA, Trump representou o protótipo perfeito deste novo personagem político que é a cara do sujeito sem muito traquejo cultural, analfabeto funcional, com um arsenal de pensamentos típicos do senso comum conservador, intolerante e inimigo de qualquer coisa que cheire a intelectualismo e valores democráticos e progressistas. Aqui, ganha corpo a figura de um candidato a Presidente da República que consegue superar ou empatar com Trump nos quesitos grossura, preconceito e analfabetismo político. Digo superar porque Trump, pelo menos, defende os interesses do americano comum ao defender a indústria nacional e o seu símile na Bruzundanga nem isso defende, ao contrário.
O que era feio, grotesco, que vivia escondido em um sótão ou revelado apenas em recintos privados, como o retrato com a sordidez da alma de Dorian Gray, foi, com o advento das mídias sociais na internet, para o espaço público com direito a aplausos e apupos. Um passe de mágica transformando o feio, o grotesco, em algo bonito, digno de admiração. Palmas para os prestidigitadores de plantão, a grande mídia que é o núcleo ideológico deste feito que tornou o feio, o grotesco, o bárbaro, em algo belo.
(*) Consultor Técnico
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