Opinião
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6 de maio de 2018
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11:57

“Eu até tenho um amigo assim”… (por Gabriel Duarte Costaguta)

Por
Sul 21
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Ato em 2016, no Parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Gabriel Duarte Costaguta (*)

Recordo recorrentemente da infância e das relações sociais que compunham meu ambiente de convívio. Éramos uma família de classe média – como ainda somos – mas tínhamos o privilégio de, em boa parte desta infância, contar com o trabalho de empregadas domésticas que auxiliavam em nossas formações, minha e de meu irmão. Às vezes íamos, a contragosto de meu pai, passar o final de semana na casa de nossas cuidadoras, residência humilde, parte da casa sem piso, mas com muito calor humano e sorrisos que apenas uma vida doída é capaz de despertar. Jogávamos futebol em campinhos, cantarolávamos samba, desfrutávamos uma comida temperada e escutávamos histórias de vida. Mas mais do que isso, experimentávamos, mesmo que de forma incipiente ou inconsciente, o modo de sobrevivência em um espaço sem sistemas de esgoto e coleta de lixo, sem asfalto, com intervenções policialescas ostensivas, etc., ou seja, com enormes problemas sociais. Nesse sentido, essas relações, tão palpáveis em minha memória, tornando presente aquilo que é da ordem do campo de experiência, compõem minha individualidade, tornaram-me o que sou, já diria Nietzsche. No entanto, é indispensável levar em consideração que esta realidade se fazia presente apenas nos finais de semana como um grande brinquedo, umas férias em um espaço divertido e livre de pomposidades, pois, ao final dos domingos, eu retornava a “casa grande”, e minha pasárgada quixotesca continuava a existir com todos os seus problemas, excluída e esquecida socialmente.

O que estou a apresentar não é a discussão acerca da situação social das classes menos favorecidas – tema recorrentemente abordado em diversos textos e trabalhos científicos -, mas uma reflexão sobre a maneira pela qual a opinião expressada por uma parcela da população nos últimos tempos (lembremos das paneladas que já não mais se escutam, das acusações raivosas para com o assassinato Marielle Franco, das conclamações para intervenção militar, da indignação contra programas sociais como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, cotas em universidades, Prouni, etc.) pode nos ajudar a compreender sua recepção frente à mínima e ainda encabulada, poderíamos dizer, redução das diferenças sociais operadas nos últimos anos, ainda que já importantes.

Recorrente é a interpretação de que a sociedade brasileira se encontra polarizada político-ideológicamente, o que podemos verificar com o ódio não mais velado em redes sociais e em manifestações públicas não só de parte da população – em que valores morais de “cidadãos de bem” são evocados como salvaguarda ética de uma sociedade que nunca existiu – mas também de agentes políticos de posição extremista. Ao que tudo indica, as manifestações de 2013, em que parcela plural e significativa da população foi às ruas expondo sua indignação contra “tudo o que está aí”, situam-se na conjuntura ainda em curso. Portanto, mais do que interpretar o que as mesmas significaram (o que seria difícil neste momento), é importante perceber o que as mesmas ampliaram em sentido político e social: uma nova face da oposição política, até então hegemônica das esquerdas radicais. Com esse “desenvergonhamento” das parcelas conservadoras da sociedade, hoje escancaradas, uma classe média insatisfeita com a divisão de seus espaços de sociabilidade (universidades, aeroportos, restaurantes, etc.), antes restrito ao seu convívio, apresentou-se em contraposição às mudanças sociais que, em suas perspectivas, oferecem perigo à ordem vigente e a valores que se concebem “naturais”, como, por exemplo, o discurso em defesa da família brasileira em sentido católico no mais das vezes.

Lilia Schwarcz, ao trabalhar em perspectiva histórico-antropológica as reminiscências da herança escravocrata em nossa sociabilidade em sua obra Nem preto nem branco, muito pelo contrário (Editora Claroenigma, 2012), apresenta uma pesquisa sintomática do que aqui optei por refletir. Segundo a historiadora “em pesquisa realizada em 1988, 97% dos entrevistados afirmaram não serem racistas, mas 98% deles declararam conhecer alguém que fosse”. Digo isso, pois, os que se colocam contra políticas de distribuição de renda, cotas raciais, direitos LGBT, entre outras políticas de diminuição de segregação social, recorrem ao chavão popular do “não sou racista, até tenho um amigo assim”, “não sou homofóbico, não tenho preconceito, eu até tenho um familiar que é homossexual”, “não sou contra os direitos dos trabalhadores, apenas acho um absurdo cobrar impostos para termos empregadas domésticas, assim não conseguirei mais pagar, e a culpa é do governo”, como arma de contestação e defesa de seus ideais de sociedade, conscientes ou inconscientes de que estão operando na lógica de manutenção de uma sociedade que, aparentemente, criticam. Triste e revigorado conservadorismo brasileiro.

Somos uma sociedade plural e heterogênea, em que a história pode ser contada sob diferentes focos de análise (político, social, cultural…) como, por exemplo, através de nossa história escravocrata de mais de três séculos; pelas confusões entre o público e o privado por parte dos grupos que dirigiam (e dirigem) o país; pela dificuldade de inserção social de tudo o que é “estranho” aos olhos das classes médias e altas reacionárias (com visão romantizada do que já não é, como pedidos de retorno aos “tempos áureos” da ditadura civil-militar) ou conservadoras (que esbravejam a necessidade de conservar privilégios vigentes, em sentido reagente às mudanças sociais, como, por exemplo, a possibilidade de não pagar direitos trabalhistas para trabalhadores domésticos e do campo, ambicionar uma educação pública sobre bases religiosas, estabelecer parâmetros para expressões artísticas, etc.); ou, quem sabe, pela simples reflexão acerca de lembranças carinhosas de infância. Seja como for, é necessário termos em mente que modificações sociais no Brasil são difíceis não apenas pela inoperância da classe política, pelos obstáculos que agendas progressistas encontram em meio à lógica de operar politicamente dentro de um sistema insuficiente e em colapso, mas também pela construção secular de um inconsciente coletivo elitista, conservador e autoritário.

Nesse jogo de disputa entre discursos, muitos preferem a praticidade e o pragmatismo de movimentar as peças a gritos; poucos se dedicam ao silencio trabalhoso da análise do tabuleiro construído historicamente. Ou compreendemos as mudanças sociais que se expressam enquanto demandas da realidade existente sem espaço no desafio democrático, ou restemos entre as bravatas estéreis e superficiais que nos lançam à cegueira branca saramaguiana.

(*) Mestrando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, na linha de “Sociedade, Política e Relações Internacionais”.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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