Opinião
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24 de maio de 2018
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13:49

Duas senhoras, dois mundos (por Benedito Tadeu César)

Por
Sul 21
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Duas senhoras, dois mundos (por Benedito Tadeu César)
Duas senhoras, dois mundos (por Benedito Tadeu César)
Benedito Tadeu César. | Foto: Ramiro Furquim/Arquivo Sul21

Benedito Tadeu César  (*)

Vou narrar uma história ou melhor duas que aconteceram comigo hoje, dia 21 de maio de 2018, no centro da cidade, uma imediatamente após a outra, próximas no tempo e no espaço, mas separadas por um abismo. Duas histórias que, ocorridas em sequência, parecem até inverossímeis. 

Por volta das 15h30min, estava eu saindo de uma galeria na esquina das ruas Alberto Bins e Pinto Bandeira, em Porto Alegre, quando uma senhora dos seus quase 90 anos, branca e bem vestida, me pediu: 

– Moço, pode me ajudar a atravessar a rua? 

Prontamente lhe dei o braço, levei-a até o meio fio da calçada, acenei para que os carros parassem e, claudicantes, ela e eu, pois tenho 65 anos recém completados, atravessamos a rua. Do outro lado, perguntei-lhe onde ia. 

– Ao Hotel Plaza, logo ali. 

– Pois eu te levo até lá. 

Braços dados, caminhávamos rumo ao hotel mais tradicional da cidade, quando ela começou a me contar que fora assaltada há dias. Tinham lhe roubado a bolsa. 

– Me quebraram toda. Me jogaram no chão, me bateram. 

Contei-lhe que também tinha sido roubado na rua meses atrás, quando me levaram o telefone celular, e como fui derrubado pelo comparsa do ladrão, quando esboçando um movimento de surpresa, me virei e fiz menção de seguir o larápio. 

– Me estatelei no chão, me esfolei todo, mas não quebrei nada. Ainda bem, emendei conformado. Pareceu-me que ela não me ouvira ou não dera qualquer atenção ao que eu lhe falara, mas não me importei. 

– Daqui a pouco vai ocorrer uma revolução, ela me disse. Eu morei na Alemanha; eu estudei na Alemanha. Lá, eles ensinam nas escolas e nas universidades como se começa uma guerra civil. Não é à toa que eles já fizeram duas. 

Não sei se ela se referia às guerras civis alemãs ou às duas guerras mundiais deflagradas pela Alemanha no século passado. 

Nisso, uma jovem senhora e sua filha de cerca de sete ou oito anos se emparelharam conosco na calçada, transeuntes que éramos todos ali. A criança esbarrou na idosa que seguia de braços dados comigo e que com fúria bradou: 

– Cavala! Não encosta em mim, sua cavala! Os gaúchos são todos os cavalos! 

Mãe e filha seguiram sem lhe ouvir e sem sequer se virar, tão insignificante tinha sido o esbarrão. Percebendo meu desconforto, a idosa me disse: 

– Não sei se você é gaúcho, mas os gaúchos são todos uns cavalos. São uns cavalos. São todos uns cavalos, agora ela já gritava. 

Não lhe respondi. 

Seguimos nosso caminho e ela continuou a esbravejar. 

– Já decidi. Agora, quando alguém encostar em mim eu vou chutar, vou quebrar, vou chutar até quebrar. 

– Mas e se a pessoa reagir? Se ela te bater também? Não é perigoso? Arrisquei-me a lhe dizer, surpreso e incomodado diante de tal ataque de fúria. 

Ela estancou. Olhou-me indignada e com ar superior me perguntou: 

– Quem é você para me dizer o que fazer? Quem lhe deu o direito de falar comigo? 

Atônito, só consegui desvencilhá-la do meu braço e lhe dizer: 

– Pois então, fique aqui e caminhe sozinha. 

Virei-me e retomei o meu caminho, que era no sentido oposto ao que estávamos indo. E ainda a escutei dizendo: “fico aqui com meus santos, que me protegem”, talvez em alusão à igreja diante da qual nos encontrávamos. 

Esta senhora havia pedido a minha ajuda e eu estava lhe auxiliando além do que ela me pedira. Tudo isso não lhe pareceu suficiente para me colocar na sua altura, me elevar ao seu nível. Tudo isso não lhe bastou para me dar o simples direito de lhe dirigir uma pergunta questionadora. Eu estava acompanhando uma velha oligarca gaúcha, convicta, com certeza, de sua superioridade em relação a tudo e a todos. 

Tendo que sacar algum dinheiro para pagar a condução, procurei um caixa eletrônico nas proximidades, enquanto me refazia do susto. Sim, porque fiquei assustado e boquiaberto com tamanha arrogância. 

Dinheirinho no bolso – eu sacara míseros R$20,00 – dirigia-me ao ponto de ônibus do T9 IPA, na Praça Dom Feliciano, quando, iniciando a travessia na faixa de pedestre na rua Annes Dias, uma jovem senhora negra e forte, repleta de sacolas plásticas e uma criança no colo, atravessando ao meu lado, teve a alça de uma das sacolas rompida e todo o seu conteúdo espalhado pela rua. 

Colocando a criança no chão, ela tentou, sem sucesso, recolher os pacotes de alimentos do meio da rua. Voltei-me para ela, abaixei-me e comecei a ajudá-la. De tanto peso, um dos sacos plásticos tinha se rompido ao meio. Eram seis ou sete sacolas plásticas, todas abarrotadas, mais uma velha e surrada sacola de viagem, aparentemente com roupas usadas, além da criança. Levamos tudo à calçada e eu lhe disse para esperar, pois iria tentar conseguir novas sacolas plásticas para recolocar seus pertences. 

Quando voltei, ela já tinha acomodado os pacotes nas sacolas anteriores. Utilizamos as novas sacolas para reforçar as antigas, colocando-as umas dentro das outras. 

Perguntei-lhe onde ia e ela me respondeu que “ao ponto da lotação (assim são chamados os micro-ônibus seletivos em Porto Alegre) que fica na rua Independência, logo ali”. Como era perto, resolvi ajudá-la. Peguei quatro  sacolas que me pareciam as mais pesadas e colocamo-nos em marcha. Eu com as sacolas pesadas, ela com a criança no colo, a bolsa de roupas e outras duas sacolas. 

Olhei para seus trajes. Uma blusa fina, não obstante o frio de 17 graus célsius registrados na cidade naquele horário, um par de sandálias havaianas e uma calça de moleton tão compridaque lhe servia de meias para os pés desnudos, e que com certeza pertencera a alguém muito maior do que ela. A criança, de um louro sarará, também com roupas leves, me olhou sem sorrir, mesmo quando brinquei com ela. Perguntei sua idade e a senhora me respondeu: “um ano e oito meses”. 

Caminhamos e caminhamos, passamos em frente da Santa Casa de Misericórdia e nada do ponto da lotação. Bem além do que ela me dissera, chegamos em baixo do viaduto da rua Salgado Filho. Mala e bolsas plásticas no chão, perguntamos ao camelô postado em sua banca na calçada onde ficava o ponto da lotação da Restinga. 

– Não é aqui, não. Aqui eles não param, porque senão chega lotado no terminal. Tem que ir até a Borges. A rua Borges de Medeiros, que fica a cerca de 300 ou 400 metros dali. 

Sabendo que não teria condições de carregar as sacolas por todo o trajeto, devido a uma inflamação no ombro, e consciente de que ela também não teria como levar tudo até o ponto da lotação, olhei no aplicativo do celular e tentei chamar um carro para leva-la até em casa. Perguntei o seu endereço, mas a sua rua não constava no mapa do Uber. 

– É uma invasão. Agora é que o DEMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto) está entrando lá, por isso as ruas ainda não têm nome. O que me fez pensar que as casas daquela ocupação urbana só há pouco começaram a receber água encanada, não possuem esgoto sanitário e, muito provavelmente, sequer dispõem de energia elétrica. 

Parei um taxi que passava. Expliquei à motorista que a corrida era curta, só até o ponto de lotação na Borges, pois a senhora não tinha como carregar tudo sozinha, e ela me perguntou se eu “ia junto”. Seguimos até lá. A motorista nos olhava intrigada. Ela lhe explicou que eu a estava ajudando que ela estava muito agradecida. A motorista lhe perguntou de onde ela vinha, ao que ela respondeu: 

– Ali da 24 – a rua 24 de Outubro. Eu ganho alimentos ali e falou o nome da instituição que lhe fornecia os gêneros alimentícios para o mês e que eu não registrei na memória. 

– É longe. Você veio carregando tudo sozinha? Voltou a lhe perguntar a motorista. 

– Eu peguei uma carona da lotação até a praça. Agora vou pedir carona para o motorista da lotação da Restinga até em casa. 

Descemos. Paguei os seis reais da corrida. Retiramos as sacolas e a bolsa e as depositamos no chão da calçada, em frente ao ponto da lotação. Brinquei novamente com o guri. Ao nos despedirmos, perguntei à senhora o seu nome: Janaina, ela me disse com os olhos sem brilho. 

Voltei para casa com a imagem das duas histórias fortemente gravadas na memória, duas senhoras e seus dois mundos, aparentemente tão opostos, mas na verdade tão absurdamente complementares neste Brasil dos arrogantes que mandam e dos humildes que lhes servem ao longo dos séculos. Até quando? 

(*) Cientista político, professor da UFRGS (aposentado), integrante da Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e do Comitê Gaúcho do Projeto Brasil-Nação

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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