Opinião
|
25 de maio de 2018
|
10:40

Democracia e Soberania: Venezuela e Brasil na mira do império (por Jorge Branco, Bernardo Muratt e Ricardo Leães)

Por
Sul 21
[email protected]
Democracia e Soberania: Venezuela e Brasil na mira do império (por Jorge Branco, Bernardo Muratt e Ricardo Leães)
Democracia e Soberania: Venezuela e Brasil na mira do império (por Jorge Branco, Bernardo Muratt e Ricardo Leães)
Nicolás Maduro foi reeleito presidente da Venezuela com 68% dos votos. (Foto: Divulgação/Twitter)

Jorge Branco, Bernardo Muratt e Ricardo Leães (*)

No último domingo, Nicolás Maduro foi reeleito presidente da Venezuela por 68% dos votos. O comparecimento foi de 48%, números normais para um país onde o voto não é obrigatório, com índices semelhantes às últimas eleições estadunidenses, francesas, colombianas e chilenas. O resultado eleitoral, que ratifica a vitória do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), não tem significado restrito ao território venezuelano, mas traz consigo uma série de implicações e reflexos para a correlação de forças entre esquerda e direita, entre os movimentos nacionais-populares e os grupos financeiros internacionais no continente.

A política dos Estados Unidos frente à América Latina sempre consistiu em um esforço de dominação hegemônica, valendo-se da coerção e do consentimento conforme as circunstâncias. Para ilustrar o fenômeno, basta observar os inúmeros golpes de Estado e intervenções na América Latina ao longo do século XX, com base na “Doutrina Monroe”. Apenas nos momentos em que os norte-americanos se mostravam acuados no cenário mundial observam-se momentos de distensão nessa relação. O contexto pré-Segunda Guerra Mundial, por exemplo, ilustra essa situação, com a promoção da “política de boa vizinhança”, que tinha o objetivo de conter o avanço do nazismo no subcontinente. No início da Guerra Fria, porém, a América Latina é vista como um território conquistado e, após a Revolução Cubana, os EUA e as elites locais articulam diversos golpes de Estado contra governos democráticos e populares. Em larga medida, o propósito dessas intervenções era cercear de forma definitiva a autonomia e a soberania dessas nações, assegurando a realização dos interesses do capital internacional.

Ao final da Guerra Fria, nos anos 1990, percebe-se a escalada do neoliberalismo como doutrina hegemônica no subcontinente, o que naturalmente ocorria sob os auspícios de Washington. Esse modelo, todavia, demonstrou sinais de esgotamento no início dos anos 2000, não tendo forças para conter um crescimento de blocos políticos de caráter popular e nacional, ainda que, em alguns casos, em aliança com antigos componentes do bloco neoliberal. Nesse contexto, emergiu uma nova onda de governos populares na América Latina, sobretudo em países da América do Sul. Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e Morales na Bolívia são os pontos de destaque desse processo.

Desde 1999, quando assumiu a presidência da Venezuela, Chávez sofreu pressões de todas as formas por parte das elites venezuelanos, que de tudo fizeram para desestabilizar seu governo. Em 2002, com a anuência dos EUA, promoveram um golpe de Estado e colocaram o empresário Pedro Carmona no poder. Assim, pretendiam que Carmona governasse por um ano por meio de decretos, sem necessidade de processo legislativo. Contudo, respaldado por apoio popular e legitimado internacionalmente por países como o Brasil, Chávez voltou ao poder com mais vigor. A partir desse momento, o chavismo se fortaleceu e pôde viabilizar uma série de transformações sociais que reduziram as desigualdades e a pobreza, fazendo com que Chávez fosse reeleito sucessivas vezes até sua morte em 2013. Seu sucessor, Nicolás Maduro, assumiu o poder em um contexto de baixa internacional nos preços do petróleo, prenunciando uma forte crise da economia Venezuela, principal ativo do país.

A crise econômica advinda da baixa do preço do petróleo criou as condições para um aumento da pressão por parte do bloco articulado pelos EUA em aliança com as petroleiras mundiais e com a elite econômica local, em uma ampliação da coordenação de esforços entre eles, cujo objetivo era enfraquecer e, posteriormente, derrubar o governo de Maduro. Não obstante, em virtude de seu forte comprometimento com as classes populares e de sua articulação em setores burocráticos estratégicos (como o Exército e parte do judiciário), Maduro conseguiu cumprir seu mandato e convocar uma constituinte, obtendo vitórias eleitorais até o mais recente pleito.

A eleição de domingo denota, mais uma vez, a vontade do povo venezuelano e a aposta na continuação do projeto chavista, malgrado todas as sanções políticas e econômicas que vem sofrendo por parte das elites do país e dos interesses do capital dos Estados Unidos. Diante da nova onda neoliberal que foi responsável por golpes no Paraguai e no Brasil, a reeleição de Maduro é um ponto de resistência das esquerdas num planeta e num continente que caminham a passos largos rumo ao conservadorismo. Cientes do caráter transformador do chavismo, antes mesmo da abertura das urnas, os Estados Unidos e os países atualmente alinhados à sua política externa já não reconheciam o processo, chamando-o de farsa. Apesar disso, mais de 100 observadores internacionais se fizeram presentes e nada denunciaram.

A Organização dos Estados Americanos – nascida durante a “política de boa vizinhança” – cujo propósito original era assegurar a hegemonia estadunidense no subcontinente tampouco reconheceu a reeleição de Nicolás Maduro. Essa posição, entretanto, não foi única, uma vez que países concorrentes aos EUA como China, Cuba e Rússia prontamente reconheceram a vitória do PSUV. Esse fato transparece o caráter significativo dessa eleição dentro de um contexto neoliberal, marcado por sanções econômicas internacionais e lock-out interno por parte dos capitalistas venezuelanos.

Em seu tradicional afã de agradar os Estados Unidos, a mídia tradicional afirma que a vitória de Maduro se deveria à “ausência” de candidatos populares de direita. Oras, isso nada mais é do que um efeito do neoliberalismo, pois defender agenda neoliberal e seu pacote de corte de “gastos” como educação e programas sociais é extremamente impopular. Nessas circunstâncias, a direita vem tendo extrema dificuldade para articular lideranças que defendam essa agenda, restando-lhe apenas uma alternativa: responsabilizar a esquerda por todas as mazelas do país. Qualquer paralelo com o Brasil não é mera coincidência.

Em ambos os casos, a investida do capital internacional para retomar o controle das principais reservas minerais e ativos econômicos é intensa. O solapamento dos governos populares, através do incentivo à crise econômica, de uma operação de guerra do oligopólio privado de comunicação e da organização de grupos de agitação reacionários, se constituiu como uma estratégia padrão.

As semelhanças, entretanto, terminam por aqui. Enquanto a resistência popular na Venezuela se constituiu tendo como alicerce as sucessivas eleições e consultas públicas, no Brasil a opção pelo acordo institucional nos padrões da política conservadora e do Estado autoritário cobrou seu preço na forma de uma golpe jurídico-empresarial contra os governos inclusivos de Lula e Dilma.

As elites sul-americanas, articuladas sob o domínio do capital financeiro internacional com centro nos Estados Unidos, não têm qualquer adesão ético-programática aos valores democráticos. Os fundamentos liberais de igualdade formal e de democracia, pressupostos de um momento revolucionário da burguesia emergente nos séculos XVIII e XIX, foram descartados no percurso da evolução para o neoliberalismo. Para as nossas elites, o regime democrático tem uma dimensão meramente ideológica e sua manutenção e preservação apresentam tão-somente aspectos táticos.

Assim, se compreende o descarte dos princípios de autonomia, soberania, justiça e igualdade em detrimento da ordem, do suposto combate à corrupção, do ajuste fiscal, e de uma alegada “modernização”, que terá por resultado o retorno ao período da extrema dependência e pobreza dos povos sul-americanos. Visa-se, com a operação desse retrocesso, ao controle e à erosão da democracia e da resistência popular, materializada em organizações, movimentos, partidos e líderes de esquerda. É nesse contexto que se explicam o impeachment de Dilma e a prisão do Lula, no Brasil, a deposição de Lugo, no Paraguai, e de Zelaya, em Honduras, e a perseguição contra Michelle Bachelet, no Chile, e Cristina Kirchner, na Argentina.

A esquerda deve tirar diversas lições da experiência venezuelana, salientando sua combatividade e sua articulação com setores populares e democráticos para a manutenção do projeto reformista. Mas, acima de tudo, é imprescindível ter em mente que, a despeito das inúmeras adversidades conjunturais ensejadas pela ofensiva neoliberal, os projetos populares são os únicos que têm o respaldo social, de modo que a solução passa necessariamente por um assertivo e contundente projeto de redução das desigualdades e fortalecimento da autonomia nacional.

(*) Jorge Branco, sociólogo, mestre e doutorando em Ciência Política. Bernardo Muratt, professor RI da UNIPAMPA mestre em Ciência Política. Ricardo Leães, analista em RI da FEE, doutorando em Ciência Política.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora